Opinião

Contaminação ideológica da acusação no caso triplex é evidente

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9 de junho de 2017, 15h39

O processo penal está repleto de regras de procedimento, de tratamento das partes, da igualdade e de preceitos relativos à aplicação das penalidades cabíveis. Tais comandos naturalmente prestam reverência aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório processual e do devido processo legal, no sentido de que essas são medidas inafastáveis em caso do cidadão ser levado à Justiça Criminal, particularmente quando a lide penal se refere a episódios da chamada operação "lava jato" e diz respeito ao ex-presidente Lula.

Essas garantias, entretanto, reduzem-se muito na proporção em que os aplicadores da lei penal, em especial órgãos do Ministério Público e juízes se deixam persuadir por ideias próprias ou as professam deliberadamente, em particular quando encorajadas por fatos ou atos recolhidos na instrução processual.

Pesquisas recentes, aqui e no exterior, têm dado conta de que a magistratura é formada por juízes recrutados de determinadas camadas sociais cujos condicionamentos de classe, de família, de religião, de formação, de convicção politica-ideológica — o que são fenômenos normais e previsíveis — muito seguidamente infiltram em seus julgados pressupostos (não necessariamente ilegítimos), mas claramente insuscetíveis de controle por contraditório, pela ampla defesa, vulnerando dessa forma o devido processo legal substantivo.

A esse respeito, a Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (o mesmo que vai ler as provas e decisões desse processo criminal) produziu e publicou no seu número 31 (7/1998) os resultados de uma pesquisa entre os magistrados (e o padrão encontrado a despeito das alterações pontuais aparentemente mantém-se, bastando conferir pesquisa realizada em 2014 pelo Conselho Nacional de Justiça com resultados no site respectivo).

O magistrado dessa região era majoritariamente urbano, masculino, branco, de classe média/média alta, com família organizada e bens próprios, a indicar que seu perfil e extrato social poderiam ser facilmente identificados e rastreados e, com a mesma facilidade, os condicionamentos a que sua educação, instrução e atuação profissional ficaram seguidamente expostos.

Esse importante fator processual, nada obstante as ditas garantias constitucionais, não é alcançado pelo mecanismo de controle do contraditório ou dos recursos cabíveis, e assim, ao menos por essa perspectiva, o demandado, o acusado ou o réu, não têm como questionar ou defender-se, sobretudo quando, sem integrar o universo sociocultural dos “operadores do direito”, dele seja, ao contrário, crítico ou adversário.

Ora, a coleta da prova material, a orientação das inquirições das testemunhas, as do próprio interrogatório do réu e tantas outras medidas de natureza processual, e em especial as de cunho cautelar ou restritiva e limitativa de direitos, naturalmente se sujeitam a esse quadro de contingências subjetivas do magistrado para os quais a lei processual não oferece resposta formal.

A instrução processual, de outra parte, constitui, observadas as regras correspondentes, o método legal de formação da convicção do juiz que, por essa razão, logicamente não se esgota numa suposta “livre apreciação da prova” embora o texto da lei ainda a abriga de modo antiquado (artigo 155 CPP), a despeito de hoje por certo desqualificada, senão pela doutrina seguramente pela evidência de que afronta as garantias constitucionais.

Além disso, o conjunto dos elementos de prova pode propor uma conclusão afirmadamente objetiva, mas será indiscutivelmente será também apoiada em pressupostos e condicionamentos subjetivos os quais por sua vez podem inserir-se involuntária ou deliberadamente na formação das convicções do Juiz.

Nessa linha de compreensão, a sentença de mérito vai refletir as convicções formuladas à base desse mesmo conjunto probatório assim como vai reproduzir os ditos condicionamentos de classe, de formação, de família, religião e, em muitos casos, os de caráter político-ideológico que ajudaram a construção da prova e das convicções dela resultantes.

A questão, todavia, não é simplesmente demonizar tais fragilidades que de qualquer sorte tendem a sobreviver pois não há cultura, política ou posições ideológicas “puras” enquanto obra humana. Entretanto, se essa é um universo em que necessariamente se movimentam os agentes do processo é essencial que tais condutas sejam sempre e invariavelmente submetidas ao escrutínio do debate público ainda que seu critério de convencimento — conquanto desprovido dos elementos da prova processual — não é distinto daquele que empregam juízes e membros do Ministério Público na formulação de juízos condenatórios e, no caso, ainda enriquecido pela variedade e diversidade.

Resolver esse dilema perpétuo que se instala na causa penal principalmente nos casos de repercussão, reclama ao menos duas diretivas.

Uma, de que na análise de qualquer dos fatos, atos ou circunstâncias da causa penal, sempre e incondicionalmente, qualquer dúvida ou inconsistência seja obrigatoriamente interpretada em favor do réu ou acusado, pois essa é uma consequência igualmente obrigatória da salvaguarda constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, até o trânsito em julgado, observado em qualquer hipótese o processo justo.

Outra, a de que ao magistrado condutor do processo, também por essa superior razão constitucional, deve, sempre e invariavelmente, despir-se de suas condições pessoais mediante autocritica reiterada e, portanto, como requisito mínimo desse despojamento obrigatório, oferecer à parte demandada, garantindo-as, todas as oportunidades de manifestação e de participação nos atos do processo.

Tanto é certo isso quanto é certo ser ilimitada a disposição constitucional garantidora do exercício da ampla defesa donde remanesce claro que não há paridade de armas no processo penal se se leva as garantias constitucionais do réu às consequências logicamente compatíveis.

O nosso regime processual penal constitucional é, ou deve sê-lo, declaradamente em favor do réu e a jurisprudência histórica da Alta Corte do país tem seguido essa concepção de justiça processual exatamente porque sendo muitas e imperceptíveis as variáveis na formação e formulação da convicção dos magistrados criminais, cabe controla-las através da intransigência no rigor da produção das provas e da benevolência na interpretação delas em respeito à presunção da inocência, donde ressai que a condenação de alguém não resultará de convicções senão de certezas objetivas e que ante a menor dúvida irrelevam.

As razões finais do órgão do Ministério Público Federal no caso triplex, dadas a público há poucos dias e que vão subsidiar a decisão judicial, quando submetidas a esse quadro de considerações, ao invés do pretendido pela acusação, ressaltam a procedência dessas criticas.

Afirma-se no resumo introdutório das razões que “[e]m vez de buscar apoio político por intermédio do alinhamento ideológico, Lula comandou a formação de um esquema criminoso de desvio de recursos públicos destinados a comprar apoio parlamentar de outros políticos e partidos, enriquecer ilicitamente os envolvidos e financiar caras campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT) em prol de uma permanência no poder assentada em recursos públicos desviados. A motivação da distribuição de altos cargos na Administração Pública Federal excedeu a simples disposição de cargos estratégicos a agremiações políticas alinhadas ao plano de governo. Ela passou a visar à geração e à arrecadação de propina em contratos públicos.”.

E mais adiante,

“Os presentes autos partem da revelação de um cenário de macrocorrupção para além da Petrobras, no qual a distribuição dos altos cargos na Administração Pública Federal, incluindo os das Diretorias da Petrobras, funcionava como instrumento para a arrecadação de propinas, em benefício do enriquecimento de agentes públicos, da perpetuação criminosa no poder e da compra de apoio político de agremiações a fim de garantir a fidelidade destas ao governo federal, liderado à época por Lula. Nesse contexto, a distribuição, por Lula, de cargos para políticos e agremiações estava, em várias situações, associada a um esquema de desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas. Trata-se de um complexo esquema criminoso praticado em variadas etapas e que envolveu diversas estruturas de poder, público e privado”

Como a denúncia em apreciação refere tão só o episódio do apartamento Tríplex, a guarda de volumes e correlatos, tais conjeturas tentam buscar consistência a partir de diversas afirmações oriundas de “delação premiada” em outros processos que notoriamente envolvem comportamentos de caráter estritamente político ou de cunho administrativo externos aos fatos em questão nesta causa.

Como evidenciado pelo conjunto dos fatos desse modo reunidos, é inviável destacar um de outro ato do então presidente da República no correspondente campo de atuação, de modo que a deliberada generalização, como mostra o texto acima reproduzido, além de converter-se em pressuposto indiscutível a iluminar as ponderações subsequentes, transforma ex-presidente, por definição, em “vértice comum dos casos de corrupção”.

Assim apropriadas pelo MPF, resulta daí um complexo de condutas interelacionadas com grande número de outros envolvidos e outros interesses diversos, que passa a ser severamente perturbador de uma instrução límpida, clara, e objetiva, bastando ver, pela voz do próprio MPF que são crimes de difícil elucidação onde a lógica comum autoriza a atenuar a rigidez da valoração e a maior elasticidade na admissão da prova de acusação.

Esse quadro pré-valorizado e pleno de pressupostos subjetivos revela de modo claro a insistência dessa generalização que, inclusive, termina por responsabilizar o réu pela “devolução” de R$ 87,6 milhões embora tenha supostamente recebido e lavado tão só R$ 3,7 milhões.

Ora, conquanto em determinadas situações criminosas seja admissível aceder a uma flexibilização como ponderado pela acusação, no ambiente de disputa eleitoral ou marcadamente politizado, ao contrário, essa inteligência acaba revestindo-se de um caráter autoritário em tudo contradizendo as garantias e direitos do processo penal democrático.

Aliás, toda a construção acusatória, diz-se confessadamente indiciária e, à base da afirmação de que são crimes de difícil elucidação, propõe implicitamente, na prática, uma virtual e injusta inversão do ônus da prova. De fato, pela invocação de “teoremas” ou “teorias” racionalistas impregnadas de ideias de origem anglo-saxônica, estranhas ao nosso costume e história, destinados a justificar teoricamente uma condenação, tais indícios bastariam sem prova real precisa.

Contudo, mesmo a pretendida probabilidade, para além do standard de uma “reasonable doubt,” a legitimar em certos casos as presunções e indícios, aqui não se compadece com o regime constitucional brasileiro, dados os limites expressamente referidos no artigo 5º da Carta, de acordo com os quais o pressuposto para uma condenação criminal justa é a ausência de dúvida e a necessidade de certeza objetiva, tanto que aplicação das teorias de domínio do fato ou de culpa objetiva, no campo penal, em geral, afrontam diretamente os fundamentos éticos e axiológicos do regime adotado pelo direito brasileiro.

Resumindo, a presunção de autoria pelo domínio do fato e a certeza da materialidade, autoria e dolo, decorrentes apenas de indícios, ao revés, na verdade completam um quadro de violação de direito.

É que, percorrendo as 300 e tantas páginas das razões finais da acusação não fica claro em momento algum qual a exata e efetiva conduta do ex-presidente, com autoria, materialidade e dolo precisamente descritos e provados que caracterizassem a figura típica da corrupção passiva e a lavagem de ativos, de pouco valendo as referências a casos julgados pelos Tribunais pois quando vistos de perto são distintas as condutas de cada caso, e não há, no adágio popular, dois casos iguais.

Ademais, a suposta lavagem de ativos (de suposto crime anterior de corrupção) convertidos em um apartamento supõe a titularidade do imóvel mas até o momento não se esclareceu jurídica e formalmente sequer do ponto de vista civil a propriedade do mesmo que, é intuitivo, se prova pela transcrição ou registro e matrícula respectivos.

Por isso, as seguidas indicações na peça em questão de que o ex-presidente “orquestrou o esquema de arrecadação de propinas” e ainda “atuou para que seus efeitos se perpetuassem” porque era ele o responsável pelo provimento e distribuição de cargos da administração pública, “voltados a perpetuação no poder”, e adiante descrevendo as diversas movimentações político-partidárias como se fossem única e exclusivamente manobras da “organização criminosa”, constitui expediente para envolver e transformar condutas singelas provocando repercussão artificiosa.

Não se trata de negar fatos ou evidências delituosas e até mesmo circunstâncias conhecidas e provadas de caráter indiciário (artigo 239 CPP) que por certo existiram, impõe-se, todavia, recusar a simplificação e a generalização baseadas em premissas elas próprias fundadas em suposições derivadas de suas conclusões [1], de resto ainda exaradas em tonalidade raivosa e agressiva, quiçá revanchista.

Talvez por isso tenha o réu razão ao afirmar que não é ele que está em julgamento mas seu governo, e pelo modo com que as razões finais do MPF se referem aos fatos e os relacionam sempre a uma “organização criminosa” extrai-se a sensação notória de que, acusações e suspeitas, convergem para uma crítica condenatória à pessoa do titular da Presidência na impossibilidade de atingir sua administração o que, descabido nessa fase, de qualquer sorte requereria mais e melhores razões.

Essa ilação, repita-se, torna-se tanto mais evidente (e por isso questionável) quanto, ao longo dessas 3 centenas de páginas, é perceptível a insistência do MPF na menção e referencia a condutas relacionadas com outros casos, em outras circunstâncias e envolvendo outras pessoas, com isso mostrando muito pouco do caso ora em apreciação seja com respeito ao apartamento do Guarujá, seja da guarda dos pertences presidenciais, sejam ainda outros episódios correlatos raramente mencionados ao longo da peça, o que mostra ser propósito deliberado da acusação, mais do que condenar o réu, destruir seu patrimônio politico e a história da sua administração — aliás, passando assim inconstitucionalmente da pessoa do réu — ao invés de propor a ação penal pessoal, clara, precisa, democrática e pleitear uma sanção penal justa de uma conduta individual certa e imputável.

Todo esse espiolhar de ilicitudes no afã de incriminar o réu não se amolda ao regime constitucional processual e penal sempre resguardados pela presunção de inocência e protegidos pelos direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório útil mediante devido processo legal justo.

Cuida-se, pois, não de exculpar rasamente os réus mas de expungir das acusações esse ranço politico e ideológico em que se transformou a operação policial cada vez mais concertada em juízo como uma verdadeira “caça às bruxas”.

Esse não é um processo que legitime um veredicto justo e não é assim que se constrói a convicção do juiz.


1 O argumento ontológico abdutivo de Dallagnol. Ou da falácia do uso da conclusão como premissa. (Gilberto Miranda Junior, Revista Krinos 09/2016, https://krinos.com.br/argumento-dallagnol-5bd9b7a565a1, acesso 8 junho 2017)

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