Academia de Polícia

Exige-se justa causa, e não puro arbítrio, no controle da atividade policial

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

6 de junho de 2017, 13h19

Spacca
Por evidente, qualquer estrutura do poder público num Estado de Direito deve estar submetida a controle. A regulação dos órgãos estatais, no entanto, deve ocorrer conforme os limites normativos estabelecidos pela Constituição, e não mediante puro arbítrio daqueles que ocupam esse relevante lugar de fiscalização.

Sabe-se, desde as primeiras lições da graduação em Direito, que o controle da atividade policial pode ser feito de duas formas: interna e externa. Quando efetivado pelas próprias instituições policiais, especialmente por meio de suas Corregedorias, diz-se que o controle é interno. Já quando feito por um terceiro, isto é, por outra instituição ou poder, considera-se externo. Neste particular, vale sublinhar a importante função institucional do Ministério Público, outorgada pelo próprio diploma constitucional, de controller da atuação policial (artigo 129, VII, da CRFB).

O principal questionamento nesta seara fica por conta de como deve ser feito esse monitoramento em nível institucional (coletivo) e individual (particularizado). Em outras palavras: qual o paradigma fundante desta fiscalização interna e externa? Esse é, de fato, um ponto de extrema relevância, já que os abusos praticados em nome da disciplina têm sido tão recorrentes quanto os supostos desvios funcionais pretensamente sob fiscalização.

Não se pode esquecer, como já destacado anteriormente nesta coluna, da incansável perseguição dirigida contra aquelas (poucas) autoridades públicas que, levando a sério o compromisso democrático, põem-se corajosamente no contrafluxo histórico do poder punitivo, mesmo sob o risco da estigmatização e da criminalização.

São inúmeros os casos de delegados de polícia que foram (e ainda são) ameaçados de responsabilização civil, administrativa e criminal, por exemplo pela não lavratura fundamentada de autos de prisão em flagrante. Não raro, algum órgão de controle externo, fomentado por setores da segurança pública, resolve se insurgir contra delegados que aplicaram o princípio da insignificância, reconheceram alguma nulidade informativa pela quebra da cadeia de custódia ou mesmo sustentaram a desclassificação de condutas supostamente delitivas, no sentido da exclusão do encarceramento flagrancial. E, pior, esse tipo de demanda ministerial costuma encontrar respaldo em certas estruturas internas de controle da atividade policial.

Importante sublinhar que esse fenômeno não é privilégio dos delegados de polícia. A mesma espécie de constrangimento ocorre, mutatis mutandis, no seio da magistratura e do próprio ministério público, especialmente no tocante a certos grupos de enfrentamento crítico à ideologia punitiva[1].

Tudo isso parece, no fundo, um grande sintoma do autoritarismo cultural da nossa sociedade, marcado pela incapacidade de diálogo e desrespeito às diferenças. Não seria exagero afirmar que esse tipo de demanda inautêntica por correção funcional apenas revela a falta de aptidão das mentalidades autoritárias na gestão de suas próprias expectativas. Talvez um pouco de psicanálise ajude; afinal de contas, o mal-estar decorrente da frustração de desejos não é coisa qualquer.

Maria Rita Khel, em sua prestigiada obra Sobre Ética e Psicanálise[2], chama a atenção para o narcisismo (individual) e para o processo de alienação (social) no contexto neoliberal, em que a busca pelo gozo ilimitado tem sido vendida sob o rótulo de autonomia do sujeito. Nesse cenário de pouca responsabilidade quanto aos próprios desejos e das projeções no outro daquilo que é negado em si mesmo, urgente o resgate psicanalítico do valor da alteridade, a propiciar o aceite do outro em sua semelhança na diferença, sendo esse reconhecimento a base para a construção de uma ética para os tempos atuais[3].

Nesse viés, indispensável que, antes de tudo, os órgãos de controle passem a considerar, com absoluta prevalência, muito mais do que as vendetas jurídicas lastreadas em pretensa supremacia do interesse público, “o princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade”[4].

Isso não significa, em momento algum, a abolição dos sistemas jurídicos de responsabilização funcional; justo pelo contrário, o seu aprimoramento, agora sob uma perspectiva constitucionalmente devida com respeito de fato à “dignidade da pessoa humana”.

Oportuno lembrar, embora de conhecimento público, dos efeitos nefastos à subjetividade que podem advir justamente da instauração de procedimentos investigativos ou acusatórios, destituídos da correspondente base material, seja na esfera disciplinar administrativa seja no âmbito judicial criminal ou cível (improbidade administrativa).

Nessas situações, o dano à vida digna de cada ser humano concreto, núcleo de proteção do Estado de Direito[5] e fundamento material de toda ética[6], torna-se fruto exatamente de mecanismos burocráticos de persecução levados a efeito sem justa causa. São hipóteses em que as formas jurídicas transformam-se em meros atos estatais de criação ou reforço de dores, o que não se pode admitir num sistema democrático.

Logo, aos órgãos de controle interno e externo da atividade policial, aos quais incumbem o valioso mister de orientação e fiscalização dos agentes públicos, espera-se uma postura verdadeiramente comprometida com as garantias fundamentais do indivíduo “como limite e fundamento do domínio político da República”[7], em um típico movimento de resistência às pulsões de violação ao primado essencial da alteridade.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JÚNIOR, Salah. Não recorro e te represento na corregedoria: a lógica autoritária permanece. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/nao-recorro-e-te-represento-na-corregedoria-a-logica-autoritaria-permanece-por-salah-khaled-jr-e-alexandre-morais-da-rosa/>. Acesso em 5.jun.2017.
[2] KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[3] MOAMMAR, Christiane Carrijo Eckhardt. Psicanálise e Ética: uma reflexão. Revista Impulso, Unimep, v. 21, n. 52, 2011, pp. 99 – 101. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/impulso/article/view/997/588>. Acesso em 5.jun.2017.
[4] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 93.
[5] É preciso, num paradigma emancipatório de racionalidade jurídica, enxergar “o Estado não como realidade em si justificada, mas, antes, como construção voltada à integral satisfação dos direitos fundamentais”. Em outras palavras, “não são os direitos fundamentais que haverão de ficar à disposição do Estado (em particular das maiorias ocasionais). Antes, é o Estado que haverá de permanecer à disposição dos direitos fundamentais” como mecanismo de sua própria legitimação (CLÈVE, Clèmerson Merlin. Apresentação. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25).
[6] Segundo Dussel, esse deveria ser o princípio universal de toda ética, em especial das éticas críticas: “O princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade” (DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 93).
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 225.

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    é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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