Opinião

Eleição direta em caso de vacância da Presidência da República é inconstitucional

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1 de junho de 2017, 6h37

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deliberou, em sessão extraordinária no dia 20/5, pelo encaminhamento do pedido de abertura do processo de impeachment do presidente da República, tendo em vista as revelações trazidas pela delação dos executivos da JBS. Na oportunidade, chamou atenção o fato de algumas seccionais, a exemplo da OAB-DF, defenderem a eleição direta em caso de vacância do cargo e até mesmo a convocação de nova assembleia nacional constituinte.

Em momento de grave crise institucional e política, esperava-se, da casa que se notabilizou historicamente pela defesa da democracia e da cidadania, mais acuro na observância da ordem constitucional, vale dizer, que a OAB servisse de porto-seguro em momento tão delicado para a sociedade brasileira, na defesa do Estado de Direito e do primado da segurança jurídica, pois a proposta de eleição direta, embora difundida por alguns, não encontra respaldo na Lei Fundamental.

Se não bastasse a Constituição Federal estabelecer, em seu artigo 81, parágrafo 1°, eleição indireta para a hipótese de vacância do cargo nos dois últimos anos do período presidencial, ainda que surja emenda constitucional casuística prevendo a eleição direta, em razão do que aponta o artigo 16 de nossa Carta Política, verdadeira cláusula pétrea, só poderá ser aplicada após um ano de sua vigência[1].

Com efeito, referido artigo deixa claro que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando, contudo, à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal já consignou, na ADI 3.685, proposta pela própria OAB e que versou sobre a chamada verticalização das coligações partidárias, que mesmo se tratando de emenda constitucional há de respeitar o referido princípio da anualidade (princípio da anterioridade eleitoral), com vista a evitar mudanças das regras eleitorais que malfiram a segurança jurídica e, por consequência, uma série de outros princípios que balizam as eleições.

Em suma, nem mesmo por emenda à Constituição Federal é possível desconsiderar a regra da eleição indireta para o caso de eventual renúncia ou impedimento do presidente da República no atual estágio de seu mandato. Qualquer outra interpretação ressoa inconstitucional e ganha ares de casuísmo.

Sob outro prisma, algumas vozes afirmam ser possível a eleição direta na hipótese de cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral, em razão do que passaram a prever os parágrafos 3º e 4º do artigo 224 do Código Eleitoral, incluídos pela Lei 13.165/2015, que trouxe mais uma das denominadas minirreformas eleitorais ao normatizar a forma de eleições suplementares para o Poder Executivo (se direta ou indireta, a depender do momento do trânsito em julgado), nos casos em que o pronunciamento da Justiça Eleitoral importar o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleitos majoritários.

De acordo com o parágrafo 3° do artigo 224 do Código Eleitoral, a decisão da Justiça Eleitoral que resultar na condenação, pelos ilícitos eleitorais mencionados, de candidato eleito para cargo majoritário acarreta a realização de nova eleição, independentemente do número de votos anulados. Já o parágrafo 4°, ao estabelecer as formas de eleição, se direta ou indireta, a depender do momento do trânsito em julgado da decisão judicial a que se refere o parágrafo 3°, prevê que a nova eleição ocorrerá pela via indireta se a decisão judicial se der nos últimos seis meses do mandato, sendo que para todas as demais situações a eleição será de forma direta, ou seja, pelo voto popular.

Diante dessa nova previsão legal, os defensores do cabimento de eleição direta sustentam haver entendimento consolidado na jurisprudência eleitoral segundo o qual a perda de mandato oriunda de eleições ilegítimas é situação distinta daquela prevista na Constituição Federal referente à dupla vacância. Assim, a cassação da chapa presidencial corresponderia à própria anulação do mandato, desconstituindo-o como se não tivesse havido eleição, de modo que, inexistente o mandato, não caberia falar em vacância.

Em que pesem os argumentos, o artigo 81, parágrafo 1º, da Constituição Federal disciplina especificamente a vacância do cargo de presidente da República, sem estabelecer ressalva alguma. Além de ser cediço que lei infraconstitucional não pode se sobrepor à Lei Fundamental, razões outras afastam a possibilidade de incidência das normas em questão do Código Eleitoral.

Primeiramente, impõe-se esclarecer que a expressão vacância pressupõe tão somente que determinado cargo não se encontra ocupado, sendo que a análise da vacância não está condicionada à identificação de sua causa, seja por impedimento, morte ou mesmo cassação do mandato, de modo que soa desarrazoado sustentar que a anulação de uma eleição e a consequente cassação de mandato eleitoral não implique, em última análise, vacância.

É irrelevante, portanto, que a vacância decorra de condenação judicial ou da morte, renúncia ou impedimento do presidente da República, pois o constituinte quis na verdade contemplar as mais diversas situações que ocasionem a dupla vacância na chefia do Poder Executivo Federal. Entendimento distinto levaria simplesmente à inaplicabilidade do referido dispositivo constitucional para todas as hipóteses de cassação de mandato, sendo inequívoco, portanto, que o artigo 81, parágrafo 1ª, da Constituição Federal determina expressamente, para os dois últimos anos de mandato presidencial, a realização de eleição indireta pelo Congresso Nacional, sem estabelecer ressalvas ou permitir complementações por meio de leis infraconstitucionais.

De mais a mais, e na esteira de abalizada doutrina, o artigo 224 do Código Eleitoral parece não ter sido recepcionado pela Constituição Federal, na medida em que o constituinte disciplinou a dupla vacância para a chefia do Poder Executivo Federal no já mencionado artigo 81, caput, e parágrafo 1° da Constituição Federal. Dessa forma, reconhecendo que o aludido artigo 224, caput, introduz situação de dupla vacância, a sua validade, sob o aspecto constitucional, é bastante questionável, podendo se estender o mesmo raciocínio para o seu parágrafo 4º[2].

Como bem ressalta Carlos Eduardo Frazão, os novos dispositivos do Código Eleitoral contribuíram para ampliar as controvérsias, pois o parágrafo 3° do artigo 224 introduziu verdadeira hipótese de dupla vacância simultânea, já que, na prática, o reconhecimento de ilícitos eleitorais, como captação ilícita de sufrágio ou de recursos em campanhas eleitorais, de condutas vedadas pela legislação eleitoral, e de uso de poder econômico ou político impõe a cassação do registro ou do diploma do titular e do vice, como corolário do princípio da indivisibilidade da chapa, o que se materializa, processualmente, na formação de litisconsórcio passivo unitário necessário, significando dizer que a decisão da Justiça Eleitoral forçosamente reverbera na esfera jurídica do vice integrante da chapa[3].

Denota-se, com isso, haver incompatibilidade entre o parágrafo 4° do artigo 224 do Código Eleitoral e a disciplina prevista na Constituição Federal, pois o constituinte criou um regime jurídico próprio para a sucessão presidencial quando ocorrer a dupla vacância dos cargos, de modo que o legislador ordinário, ao estabelecer uma nova forma de sucessão, não se atentou para o fato de que a condenação judicial em qualquer das hipóteses previstas no artigo 224, parágrafo 3°, do Código Eleitoral resultará, ao final e ao cabo, em casos de dupla vacância, tema suficientemente disciplinado pela Constituição Federal.

A rigor, o parágrafo 4º do artigo 224 do Código Eleitoral não tem aplicação sequer para situações de dupla vacância dos cargos do Poder Executivo de estados, do Distrito Federal e dos municípios, em razão do princípio federativo. A sucessão, nesses casos, é tema que se insere na autonomia dos entes federativos.

Assim, diante da capacidade de auto-organização conferida a cada ente da Federação, inclusive para editar leis próprias e elaborar suas respectivas Constituições e Leis Orgânicas, ainda que existam limitações materiais e procedimentais em observância ao princípio da simetria que estabelece normas constitucionais de reprodução obrigatória, é forçoso reconhecer que o regramento do art. 81, caput, e § 1°, da Constituição Federal não é de aplicação obrigatória para reger situações de dupla vacância que se deem nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios.

Na esteira do que já decidiu o Supremo Tribunal Federal em outras oportunidades, o art. 81 da Constituição Federal não projeta o princípio da simetria constitucional, de modo que a disciplina sobre a sucessão em casos de dupla vacância na chefia do Poder Executivo situa-se na esfera de autonomia política dos respectivos entes, cabendo ao constituinte estadual, distrital ou municipal legislar sobre a matéria, sem obrigatoriedade de se adotar o modelo federal.

Assim, conclui-se que o parágrafo 4° do artigo 224 do Código Eleitoral é inconstitucional para reger as situações previstas no parágrafo 3° do mesmo artigo de lei, não só porque ofende o artigo 81 da Constituição Federal, mas também porque atenta contra o princípio federativo[4][5].

Mudanças constitucionais casuísticas em tempos de crise, sob o frágil e falacioso argumento de se agir em favor do povo, longe de significarem o respeito à soberania do voto popular, mais correspondem ao enfraquecimento da democracia e de nossas instituições. A Carta da República, em momentos como o atual, deve ser prestigiada, e não desrespeitada.


[1] Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 227/2016, que prevê eleições diretas no caso de vacância da Presidência da República, exceto nos seis últimos meses do mandato.
[2] Quanto ao tema, o Procurador-Geral da República, por meio da ADI 5.525, arguiu a inconstitucionalidade dos parágrafos 3º e 4º do artigo 224 do Código Eleitoral, sob o argumento de que o artigo 81 da Constituição Federal estabelece uma disciplina específica para a dupla vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República. Ainda segundo o entendimento do chefe do Ministério Público Federal, por haver um regime constitucional próprio para tal situação, é inadmissível qualquer mudança por lei de menor hierarquia.
[3] FRAZÃO, Carlos Eduardo. Aspectos Controvertidos da Minirreforma Eleitoral de 2015: a inaplicabilidade do artigo 224, parágrafo 4°, do Código Eleitoral, a eleições para o Poder Executivo. Disponível em: <http://www.oseleitoralistas.com.br/2016/05/06/aspectos-controvertidos-da-minirreforma-eleitoral-de-2015-a-inaplicabilidade-do-art-224-%C2%A7-4o-do-codigo-eleitoral-a-eleicoes-para-o-poder-executivo-por-carlos-eduardo-frazao/>. Acesso em 22 de maio de 2017.
[4] Carlos Eduardo Frazão sustenta que a aplicação constitucionalmente adequada do artigo 224, parágrafo 4º, do Código Eleitoral restringe-se aos casos de vacância nos cargos de senador da República. FRAZÃO, Carlos Eduardo. Aspectos Controvertidos da Minirreforma Eleitoral de 2015: a inaplicabilidade do artigo 224, parágrafo 4°, do Código Eleitoral, a eleições para o Poder Executivo. Disponível em: <http://www.oseleitoralistas.com.br/2016/05/06/aspectos-controvertidos-da-minirreforma-eleitoral-de-2015-a-inaplicabilidade-do-art-224-%C2%A7-4o-do-codigo-eleitoral-a-eleicoes-para-o-poder-executivo-por-carlos-eduardo-frazao/>. Acesso em 22 de maio de 2017.
[5] Cumpre lembrar que, mesmo em uma eleição excepcionalmente indireta, aplicam-se, em princípio, as regras de inelegibilidade e desincompatibilização previstas na Lei Complementar 64/90, de modo que nenhum magistrado, a exemplo dos ministros do STF, ou pessoa não filiada a partido político poderia se candidatar. Todavia, na ausência de legislação própria que discipline o procedimento da eleição indireta, autores defendem que essas regras podem ser mitigadas.

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