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Ministério Público tem importante papel a cumprir na crise migratória venezuelana

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31 de julho de 2017, 11h16

No último dia 12 de julho, o Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista, atendeu um caso peculiar. Um menino venezuelano, com 10 anos de idade, foi trazido às pressas da cidade fronteiriça de Santa Elena do Uairén gravemente doente, porque lá não conseguiu tratamento adequado. Até aí nenhuma peculiaridade, há muito tempo o sistema de saúde de Roraima atende pessoas vindas da Venezuela e da Guiana. A diferença, nesse caso, é que o garoto foi diagnosticado com difteria, doença erradicada no estado desde o ano 2000. Com o diagnóstico confirmado, cumpriu-se todo o protocolo, ele foi para o setor hospitalar de isolamento, recebeu o soro antidiftérico e todo o tratamento possível. A despeito disso tudo, infelizmente, a criança morreu seis dias depois[1].

Esse é apenas um caso, dentre os milhares de atendimentos que agora são feitos na área de saúde, por conta do aumento repentino de imigrantes venezuelanos na região. Demandas na área da educação e da assistência social também são recorrentes entre os que atravessam a fronteira fugindo da grave crise instalada no país vizinho.

A notória crise política, econômica e institucional da nossa vizinha Venezuela produziu o que se pode chamar de crise migratória. Se o panorama não mudar e as ameaças de sanções dos Estados Unidos e União Europeia se concretizarem, não vai demorar até que a situação ganhe contornos de crise humanitária. A pretexto de fazer minguar o poder do regime político vigente, o castigo maior das sanções recairá, como costuma acontecer, sobre o povo, especialmente os mais pobres. A situação de colapso expulsará ainda mais pessoas para os países vizinhos em busca de comida, remédios e trabalho, o mínimo existencial.

No Brasil, a porta de entrada dos imigrantes venezuelanos é o estado de Roraima. Só nos seis primeiros meses de 2017, a Polícia Federal no estado recebeu 5.787 pedidos de refúgio de cidadãos venezuelanos[2], o que significa um aumento de mais de 150% em relação a todo o ano de 2016. Além dos que formalizam um pedido de refúgio, há muitos outros que ingressam no país e nele permanecem em situação irregular. Quanto a esses não há como obter números precisos, mas a Agência da ONU para Refugiados estima que, ao todo, há cerca de 30 mil venezuelanos no Brasil[3]. Não é difícil concluir que a maioria dessas pessoas está em Roraima, basta andar pelas ruas de Boa Vista e Pacaraima (cidade que fica na fronteira) para perceber a grande quantidade de imigrantes em situação bastante vulnerável. A crise é tão aguda que também compeliu centenas de indígenas do povo Warao, habitantes do Delta do Orinoco, a migrarem para Roraima e Amazonas em busca de comida.

Uma vez no país, utilizam equipamentos públicos de saúde, educação e assistência social. Fundamentos jurídicos para o acolhimento e a assistência para os imigrantes, especialmente nessa situação de refúgio, não faltam. A começar por um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana, presente no artigo 1º de nossa Constituição. Para além desse fundamento, há o princípio constitucional da isonomia, sendo garantidos os direitos fundamentais aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, não podendo haver distinção de qualquer natureza[4]. Figura, ainda, como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”[5] (grifei). Há também os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário e que tratam da questão migratória, situação de refugiados, populações vulneráveis e minorias.

Nesse contexto, urge refletir sobre o papel do Ministério Público, especialmente como indutor de políticas públicas e dominus litis com relação a crimes que afligem mais agudamente imigrantes mulheres, crianças e adolescentes. Há, primeiramente, demandas de inclusão nos serviços públicos para a população imigrante nas áreas da infância e juventude, saúde, educação e cidadania, todas com forte atuação ministerial.

O Ministério Público pode exigir que se garanta o acolhimento emergencial e com o mínimo de dignidade daqueles que migram buscando refúgio, sendo que já há iniciativas nesse sentido[6]. Da mesma forma, pode e deve manejar os instrumentos judiciais e extrajudiciais necessários para garantir matrícula de crianças e adolescentes em escola pública e atendimento na rede pública de saúde, que tem caráter universal em nosso país.

Obviamente, esse aumento repentino da busca pelos serviços públicos gera problemas. O orçamento e os repasses do SUS são feitos com base no quantitativo populacional e os do Fundeb com base no censo escolar do ano anterior, com a aplicação mínima constitucional. O incremento brusco da demanda gera um desequilíbrio nessa equação, notadamente na área da saúde e da educação. E tende a se agravar, com o recrudescimento da crise no país vizinho ocasionado pela aplicação das sanções que estão sendo gestadas.

A população aumentou sem que houvesse previsão. Foi um fator externo, alheio ao planejamento dos entes federativos brasileiros. Municípios e estados podem não ter condições financeiras de arcar com os custos do atendimento aos refugiados e demais imigrantes. Nesse caso, cabe a atuação do Ministério Público para compelir a União a recompor, de maneira excepcional, o montante das verbas destinadas à saúde e à educação dos municípios e estados com alta presença de imigrantes repentinos. Acrescente-se, ainda, a necessária atuação na área da defesa do patrimônio público, fiscalizando o uso de todos os recursos para que sejam aplicados com a necessária probidade.

Outra situação dramática é a vulnerabilidade desses imigrantes à exploração sexual e à submissão do trabalho análogo à condição de escravo. Nesse caso, além da população adulta, crianças e adolescentes são expostos às piores formas de trabalho infantojuvenil, incluindo a exploração sexual, mendicância, trabalho doméstico não remunerado, etc. Nesse caso, a firme atuação dos vários ramos do Ministério Público pode inibir essas redes criminosas, bem como responsabilizar penalmente os envolvidos.

Finalmente, o Ministério Público não pode se furtar de combater o discurso de ódio e a xenofobia, que facilmente afloram no presente contexto. Uma pequena parte da população acolhe o entendimento equivocado de que os imigrantes vêm “roubar” empregos e trazer problemas para a sociedade local. A reboque dessa crença podem vir hostilidades, próprias da dificuldade de compreender que, nesse momento, a solidariedade é o melhor caminho. O Ministério Público dispõe de ferramentas para reprimir esse tipo de ocorrência. Podem ser usadas recomendações[7], termos de ajustamento de conduta[8], ações civis públicas e, no limite, a responsabilização criminal, a depender do teor do discurso ou da hostilidade.

Como se vê, o Ministério Público, mais uma vez, é chamado a ser importante ator quanto às consequências dessa dura crise no país vizinho que nos afeta a todos diretamente. Age, assim, o Parquet, tanto em favor dos estrangeiros que aqui chegam em busca de um mínimo de dignidade humana e em favor de todos os brasileiros que, historicamente, são conhecidos por serem acolhedores. Afinal, somos um país de imigrantes.


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    é promotor de Justiça em Roraima, coordenador do Núcleo de Incentivo à Autocomposição do MP-RR, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do MP Democrático.

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