Justiça Tributária

A ConJur e a imunidade tributária da cadeia de produção de notícias

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

31 de julho de 2017, 8h00

Spacca
A ConJur comemora 20 anos e me orgulho de fazer parte de seu time de colunistas desde 2012, escrevendo sobre Direito Financeiro na coluna "Contas à Vista", com diversos colegas, e, mais recentemente, sobre Direito Tributário na coluna "Justiça Tributária", que tenho a honra de dividir com Raul Haidar.

Como esta se insere no rol de colunas tributárias, nada melhor para homenagear a ConJur do que tratar da imunidade tributária das revistas e jornais veiculados por meios digitais e a cadeia de produção de notícias.

O tema da imunidade tributária dos livros eletrônicos foi objeto de recente julgamento do STF, com aprovação de dois temas em repercussão geral, o 259 (RE 595.676) e o 593 (RE 330.817), ambos já comentados em outra coluna.

Ocorre que o assunto não se esgotou, pois, recentemente, após as duas decisões do STF acima indicadas, a juíza Laís Helena Bresser Lang obrigou a Agência Estado, do mesmo grupo do jornal O Estado de S. Paulo, a recolher R$ 88,8 milhões de ISS para a prefeitura paulistana. Isso demonstra a incompreensão do alcance da imunidade tributária estabelecida na Constituição para “livros, jornais e periódicos” (artigo 150, VI, “d”, CF). A leitura desatenta pode levar a crer que apenas quando esses veículos utilizarem papel para “sua impressão” é que estarão imunes, o que é uma leitura restritiva da norma.

O que é uma agência de notícias, atividade que foi fiscalmente onerada pela decisão de 1º grau? Trata-se de uma organização para a produção de reportagens, que são ofertadas para os veículos de comunicação de todo o planeta, que compram o direito de veiculá-las em seus jornais e revistas. Trata-se de uma forma de organização empresarial para a disseminação da informação, visando abastecer de notícias a mídia como um todo.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) indica que em 2013 existiam 722 jornais diários no Brasil, sendo que o total chegava a 4.786 naquele ano, considerando diversas periodicidades[1]. Seguramente, não há um jornalista de cada veículo de imprensa em todos os lugares do planeta, esperando para que algo ocorra e seja transformado em notícia. O papel das agências é disponibilizar reportagens e notícias para abastecer esse mercado jornalístico e de revistas, a partir de vários lugares do mundo e, muitas vezes, de forma especializada por temas. As agências de notícias não publicam reportagens; vendem reportagens para serem publicadas.

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Por exemplo, os eventos ocorridos na Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, em que um único indivíduo parou uma fila de tanques de guerra. O fotógrafo Jeff Widener e a equipe de jornalistas não estavam a serviço de nenhum específico veículo de imprensa, mas da agência de notícias Associated Press, que vendeu a reportagem para um sem-número de jornais e revistas de todo o planeta, e se tornou uma referência icônica no combate aos regimes autoritários. Isso tudo aconteceu em 1989, muito antes da amplitude do uso da internet.

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Em 1981, época ainda mais remota, ocorreu o atentado ao Papa João Paulo II, em Fátima, Portugal. Não fosse o trabalho dos repórteres da Agência do Vaticano, as imagens do atentado não teriam sido divulgadas ao mundo, assim como os fatos ocorridos.

A foto, sem autoria divulgada, é bastante representativa daquele instante em que o papa, atualmente santificado, era socorrido pelo staff que o acompanhava no papamóvel, ainda não equipado com vidros à prova de bala, como veio a ser feito posteriormente.

Também em 1981, o recém-empossado presidente do Estados Unidos, Ronald Reagan, sofreu um atentado, cujas fotos foram feitas por um brasileiro, Sebastião Salgado, hoje notabilizado pelas fotorreportagens que faz ao redor do mundo sobre temas envolvendo questões de refugiados, da arqueologia do trabalho e da ecologia. Salgado hoje tem sua própria agência fotográfica, a Amazonas Images.

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Naquele ano, Salgado estava incumbido pela agência de notícias Magnum para cobrir os primeiros 100 dias do presidente Reagan, e nada de relevante estava previsto para ocorrer naquele dia, quando ocorreu o atentado. Suas fotos e o relato jornalístico do fato permitiram que o mundo visse o que havia acontecido.

Este é o papel das agências de notícias, coletar informações e fazer reportagens para vendê-las aos veículos de imprensa.

Podem existir jornais e revistas sem agências de notícias? Sim, claro, porém como obter informações de todo o mundo sem elas? Serão apenas reportagens locais ou, quando muito, fruto de correspondentes pagos pelos veículos em locais estratégicos, como é feito pelas grandes redes de comunicação, brasileiras e estrangeiras.

As agências de notícias brasileiras cobrem os fatos ocorridos no Brasil e vendem essas informações, sob a forma de reportagens que circularão nos veículos de imprensa ao redor do globo. Esse é o papel da Agência Estado — disseminar informações coletadas no Brasil para o próprio Brasil e o mundo, transformadas em reportagens.

Existe uma verdadeira cadeia de produção para que os fatos se transformem em notícias e cheguem ao conhecimento da população. As revistas, jornais, sites e outros veículos são apenas a ponta final de todo esse processo. Existe enorme backstage até uma notícia chegar à tela de seu computador ou ser veiculada na rádio ou na televisão. As agências de notícia são um elo em toda essa cadeia.

Aqui chego ao Direito. O bem protegido é a liberdade de imprensa e de opinião, seja impressa ou não. Isso se torna ainda mais destacado quando se verifica a profusão de meios digitais para a propagação de informações e notícias. E o que deve ser protegido, de conformidade com nossa Constituição, é o direito à liberdade de informação, que abrange toda a cadeia de produção de notícias, e não apenas a ponta final desse processo. Trata-se de um direito fundamental consagrado em nossa Carta e em várias outras, como se vê na 1ª Emenda à Constituição norte americana.

É bem verdade que no Brasil se imbricam duas coisas tecnicamente diferentes: liberdade de informação e a imunidade tributária. Será que uma coisa tem necessariamente a ver com a outra? A resposta pode ser dada em termos de Direito Positivo (“Sim, porque é texto expresso na Constituição”), mas as razões dessa imbricação devem ser buscadas na história, pois, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, era comum o uso de instrumentos tributários para impedir ou sobreonerar a importação de papel para os jornais de oposição, mas era facilitada para os jornais governistas, conforme relata, dentre outros, Fernando Morais no livro Chatô, O Rei do Brasil. Esse fato gerou a inclusão dessa norma na Constituição brasileira de 1946, e se conserva até hoje.

Teoricamente, seria possível evitar esse tratamento desigual através da adequada utilização do princípio da isonomia, porém, quem confia apenas em princípios? No Brasil, é mais seguro estar tudo escrito na Constituição, se possível de forma minuciosa e detalhada — e, mesmo assim, muitas vezes não é cumprido, nem pelo Executivo nem pelo Judiciário; vide acima —, pois nem a aprovação de dois temas em repercussão geral pelo STF afastou a decisão judicial de 1ª instância mencionada.

O que mais me chamou a atenção em todo esse episódio é que a sentença não traz nem uma vez a expressão direito fundamental ou direitos humanos. É como se o debate se circunscrevesse apenas às tecnicalidades do Direito Tributário, envolto em termos de obrigação de dar ou de prestar serviços: se a atividade da Agência Estado for de dar, não incide o ISS; se for de prestar serviços, haverá ISS. E, nesse pântano hermenêutico, a empresa tomou R$ 88,8 milhões em seu passivo. Nem uma palavra sobre liberdade, seja de expressão, de opinião ou de imprensa.

Aqui se insere a ConJur, revista eletrônica diária e gratuita, veículo de notícias e com páginas de opinião assinadas por colunistas fixos e articulistas eventuais, que tratam exclusivamente sobre Direito.

Na ConJur, pode-se encontrar a crônica jurídica e o jornalismo jurídico.

O jornalismo jurídico é algo próprio de repórteres, que, com linguagem jornalística, comentam um fato jurídico. A ConJur tem vários repórteres desenvolvendo essa atividade, analisando os fatos do meio jurídico.

A crônica jurídica tem outro perfil, pois é um comentário jurídico sobre específico assunto do quotidiano. Vê-se que a lógica expositiva é outra, pois o assunto será comentado por um técnico-jurídico, e não por um técnico-jornalístico, o que garante uma análise sob o prisma jurídico, embora acessível ao leitor comum. O problema ocorre quando se dá o inverso, como bem apontava meu professor Rubens Limongi França: técnicos do Direito fazendo jornalismo e jornalistas fazendo crônicas jurídicas — aí haverá uma grande confusão, por certo. Não ocorre isso na ConJur, onde fica cada qual no seu quadrado.

O que falta para a ConJur se enquadrar na imunidade tributária prevista na Constituição? Nada. Prescinde até mesmo do “papel destinado à sua impressão”, inserindo-se no cerne da norma constitucional. Faz isso há 20 anos.

Parabéns a toda a equipe, capitaneada por Márcio Chaer e pelo chefe de Redação, Marcos de Vasconcellos. E aos leitores, que acessam diariamente este site, que se constitui, há 20 anos, em uma referência qualificada de jornalismo e de crônicas jurídicas em nosso país. Que venham outros 20.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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