Opinião

Em defesa de Kant: o tribunal da razão e a originalidade do Direito brasileiro

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29 de julho de 2017, 10h22

A originalidade do direito brasileiro não pode ser atribuída a um breque na filosofia da consciência, ao kantismo[1], mas à metafísica.  A filosofia tradicional limitava a razão a encontrar os meios para descrever a ordem de regularidade do mundo (como a virtude ideal para a vida pública)[2]. Só nesse contexto fazia sentido considerá-la com pretexto de validade universal, nas palavras de Streck: “como fonte iluminadora” de tudo o que possa ser afirmado sobre a realidade”[3]. Conforme bem acentuado por Radbruch[4], Kant inverteu a ordem ao demonstrar que a razão não é um arsenal de conhecimentos conclusos, mas o ponto de partida para perguntas. Com isso alçava a razão a juiz do próprio tribunal, destituindo-a da função de imperador.

Kant inverteu a ordem das coisas, por isso instaurou um novo “paradigma” (para usar um modismo já velho de Kuhn) ou uma nova “forma de vida” (Wittgeistein). Focar a razão no fim/objeto, como pretendiam seus antecessores, não é decisivo, pois somos regidos por inclinações. O dado empírico fornece a máxima (não devo mentir, considerada a situação “x”). A regra é arbitrária, pois, privada, criada pelo sujeito visando seus próprios interesses. Sua universalização, contudo, ainda na mente do sujeito, permite a criação de imperativo categórico: se todos não devem mentir, então não devo mentir. Depois do dever autoimposto pelo legislador, não há espaço para nova deliberação. Ao contrário de Sócrates, Kant não está disposto a um novo debate, a depender da envergadura intelectual do desafiante.

Ainda para Kant: a regra universal não é um dado, mas construída a partir de fato real e da subsequente máxima. Isso foi o bastante para dizimar o já decrépito direito natural, cuja universalidade pressupõe a falta de referência a um dado material prévio. Por decorrência, deixou sem sustentabilidade filosofias do direito apologéticas de princípio-guia externo ao direito, como a lógica, a história do povo ou a dos institutos jurídicos, também com pretensão universal. Com razão Radbruch: o golpe fatal no direito natural e suas vertentes não foi dado por nenhum jurista, mas por Kant[5]. Apenas a categoria do direito justo, jurídico, tem validade universal, e não qualquer de suas aplicações.

No direito, o processo de criação do dever incondicional é o mesmo. Segundo Kant, cuja noção de liberdade é transcendental, o ato de legislar decorre da autoimposição do dever, tal como ocorre na lei moral. A armadura teórica de Kant é que o legislador também se submete às leis racionais que cria, logo, só legisla bem (leis universais, por excelência)[6]; quanto aos súditos, não há como temer leis obrigatórias ao legislador. Publicada a lei, contudo, sobressaem as diferenças: o cumprimento do direito depende tão somente da exterioridade da ação (imputação), em detrimento da moral, que depende da adesão à lei. Não há, todavia, faculdade para desobedecer a lei ou possibilidade de submeter a racionalidade da lei ao império da razão. Espaço algum é concedido a nova deliberação[7]

Se Kant adere à tese das fontes sociais (convencionalismo), imanente ao positivismo jurídico, o descumprimento da lei pelo julgador não decorre dessa corrente de pensamento. A propósito, positivista algum admitiu a tese da desobediência legal com amparo na razão. Para Hart, que adota a perspectiva do observador interno, e seus incontáveis seguidores, não faz qualquer sentido a afirmação, pois sua teoria descritiva tem como foco as diferentes maneiras com que o direito é utilizado para controlar, orientar e planejar a vida dentro e fora dos tribunais. Joseph Raz explicita esse caráter diretivo do comando, pela noção de substituição da razão da regra legal (preemption): a lei não é apenas uma razão para comportar-se de acordo com ela, mas exclui outras razões conflitantes, ainda que moralmente justificáveis[8]. Mesmo Kelsen, que descreve o ordenamento não só em repouso (estática), mas na dinâmica (na aplicação), não abona a desobediência. Embora o juiz crie direito, cuja invalidade só pode ser retirada do sistema por fonte autorregulada, há pretensão mínima de eficácia da regra de conduta[9].

No fim não dá no mesmo? Não seria apenas divergência de foco, de ponto de partida? Para os hermeneutas, o juiz desobedece a lei porque se acha um iluminado; para os positivistas, porque contrariou regra jurídica. Para Michael Moore, que se desafiou a interpretar a interpretação, o foco hermeneuta implica a apropriação da personalidade do jurista, por roubar-lhe o referencial. Concluiu com a anedota do médico que iria dar entrevista sobre erro do colega de profissão na TV. Antes, um popular é entrevistado, e atribui a causa da morte ao egoísmo do especialista, por olhar o próprio umbigo em vez da cartilha. Quando chegou a vez do entrevistado, foi advertido pelo jornalista: jogaram lama nos seus bisturis[10]


[1] STRECK, Lênio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Revista do Advogado, 2013, p. 18
[2] Para Aristóteles, caberia à razão encontrar o quê, e não o porquê. “ (…) nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens da arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria encontrar em todos, de preferência, o saber” (ARISTÓTELES. Metafísica, livro I. São Paulo: Abril, 1984, p. 12).
[3] Ibid, p. 95,96.
[4] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 26.
[5] Ibid, p. 27.
[6] KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. São Paulo: Ícone, 1993, p. 37.
[7] Kant, ainda que não adote obviamente o critério da separação entre direito e moral, é um positivista, pois adere ao critério da objetividade das fontes sociais. O direito é identificado a partir das fontes sociais convencionadas (tese das fontes sociais ou convencionalismo). Kant tanto acredita que a existência de uma regra de reconhecimento é uma questão de fato, como afirma Hart (HART, Herbert. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, p. 110), que transpõe o conceito para a moral.

[8] RAZ, Joseph. O problema da autoridade: revisitando a concepção da autoridade como serviço. A aparecer em Revista Brasileira de Filosofia, ano 61, v. 239, jul-dez. 2012.

[9] MERKL, Adolf. Prolegómenos a uma teoria de la estructura jurídica escalonada del ordenamento, a aparecer em Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 2, 2004. O ordenamento dinâmico, sim, é essencial ao direito, mas pode subsistir com o estático. Basta uma norma no sistema atribuindo a uma pessoa o poder de dizer o direito. Merkl não se compromete com teoria do Estado: “Sin embargo, ocurre de forma creciente que la legislación constitucional, con la materialización de las normas del derecho que le es propia, se anticipa al legislador “ordinario” en tareas de legislación. Tal y como se conoce este fenómeno es una consecuencia de la emancipación de la forma de la Constitución del contenido de la Constitución y del uso que se posibilita con ello de la forma de la Constitución para un contenido del derecho que aunque no pertenece a la Constitución en sentido material debe ser partícipe de las mismas garantías frente a la modificación que los principios del ordenamiento jurídico disfrutan gracias a la forma constitucional. Ahora bien, esta invasión ocasional por parte del derecho constitucional de competencias del legislador ordinario no hace en medida alguna innecesario a éste”.

[10] Com adaptações, cf: MOORE, Michael S. Interpretando a interpretação, a aparecer em Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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