Interesse Público

Decisões políticas ou jurídicas determinam o caminho do Brasil?

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

27 de julho de 2017, 8h00

Spacca
Não é objeto destes comentários a discussão aprofundada dos conceitos de “jurídico” e de “político”. Apenas para identificar aquilo sobre o que se está falando, convém esclarecer que se considera como uma decisão jurídica aquela que se atém aos estritos limites da lei, firmando-se apenas e tão somente os fundamentos legais e jurisprudenciais, e, por outro lado, se considera como política a decisão que vai além dos estritos limites legais, mas leva em conta precipuamente as consequências de ordem prática da decisão e as repercussões que ela acarretará ao interesse público.

Na vivência prática do Direito, seja no âmbito da administração pública, seja na esfera judicial, esses dois conceitos primam por não serem encontrados em estado puro, pois toda decisão, no âmbito das atividades públicas, acaba por mesclar ou combinar esses dois conceitos. Vale aqui lembrar as lições do ministro Eros Grau no sentido de que “a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas”, pois o intérprete autêntico “pratica a juris prudentia, e não a juris scientia” (EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, Malheiros Editores, São Paulo, 2002, ps. 29 e 45).

Essas considerações introdutórias são necessárias para uma correta interpretação dos mandamentos contidos no artigo 86 da Constituição Federal: “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”. O julgamento do presidente da República, conforme a natureza da infração, será proferido em um ou outro foro, mas, em qualquer caso, o julgamento, propriamente dito, depende de uma prévia manifestação da Câmara dos Deputados, nos termos do artigo 51, inciso I, segundo o qual compete privativamente à Câmara dos Deputados:

“I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”.

O que se pretende examinar, neste artigo, é a natureza desta específica decisão, autorizando, ou não, a instauração do processo e do decorrente julgamento do presidente, assunto que está em pauta atualmente.

Vale lembrar que no caso da presidenta (o feminino aqui é pura ironia) Dilma, o presidente da Câmara, depois de algum tempo em estado de latência, decidiu por determinar o recebimento da denúncia formulada por Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr. e o processamento do pedido de autorização. Nesse caso, a denúncia apresentada pelos mencionados cidadãos tinha três fundamentos: omissão dolosa (no tocante à formidável roubalheira na Petrobras, já intensamente comprovada pela "lava jato"), crime contra a lei orçamentária e violação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os dois últimos fundamentos atingiam apenas a presidenta, mas o primeiro fundamento poderia ricochetear sobre muitos deputados. Prudentemente (ou espertamente?), o presidente da Câmara aceitou apenas os dois últimos e rechaçou o primeiro fundamento. Note-se que a inclusão dos três fundamentos poderia acarretar a negativa da autorização para a instauração do processo. O fato é que a denúncia, cuidadosamente elaborada durante mais de um mês, estava instruída com diversos pareceres jurídicos e farto material probatório. Dar seguimento ao requerimento foi uma decisão preliminar, pessoal, discricionária do presidente da Câmara. Tal decisão teve caráter político ou jurídico?

Essa pergunta é feita porque a denúncia açodadamente apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil contra o presidente Michel Temer se encontra, atualmente, em estado latente. Vale lembrar que, ao longo do tempo, a OAB decidiu pela apresentação de denúncia contra o presidente Collor (requerimento assinado pelo ministro Evandro Lins e Silva, que contou com a colaboração de Geraldo Ataliba, José Gregori, Fábio Comparato e René Ariel Dotti, entre outros notáveis juristas), mas decidiu não apresentar denúncia contra o presidente Lula, tendo apresentado apenas tardiamente denúncia contra a presidenta Dilma (depois de muita hesitação, quando já estava em curso a denúncia feita pelos respeitáveis advogados acima mencionados). No caso atual, do presidente Michel Temer, a denúncia feita pela OAB foi feita de improviso, em 24 horas, numa decisão tomada na calada da noite, intra muros, sem estar instruída com pareceres de juristas dignos desse nome e sem instrumentos probatórios. Como deverá vir a ser essa decisão preliminar do presidente da Câmara?

Mudando de assunto, mas sem sair do tema principal, cabe enfocar duas decisões referentes ao ex-presidente Lula. A primeira delas é a que se refere a sua condução coercitiva e concomitante vistoria em sua residência. Pode-se imaginar o que poderia ter acontecido se ele tivesse sido previamente intimado. Salvo exacerbada má-fé, ou submissão a alguma seita messiânica, ninguém negaria que a vistoria seria totalmente inútil e que o comparecimento seria enormemente tumultuado. A decisão pela condução coercitiva assegurou a efetividade da atuação da Polícia Federal. Pergunta-se novamente: essa decisão foi política ou jurídica?

A segunda decisão referente ao ex-presidente está em um segmento da sentença proferida pelo juiz Sergio Moro, que se transcreve: “960. Entretanto, considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação. Assim, poderá o ex-Presidente Luiz apresentar a sua apelação em liberdade”. Novamente cabe a pergunta: essa decisão foi política ou jurídica?

No momento atual, está pendente a denúncia apresentada pelo procurador-geral da República contra o presidente Michel Temer pelo cometimento de crime comum. Ela foi prontamente despachada pelo presidente da Câmara, que a encaminhou à Comissão de Constituição e Justiça, onde recebeu parecer pelo seu recebimento, emitido pelo relator, deputado Sérgio Zveiter. Tal parecer foi rejeitado pela comissão, e o assunto se encontra pendente, enquanto se aguarda a emissão de novo parecer. Mas, embora rejeitado, aquele parecer merece algum exame no que diz respeito ao tema central destes comentários.

Num brevíssimo resumo, no tocante aos fatos, o parecer apenas repete a acusação no sentido de que o presidente Michel Temer teria recebido, por intermédio do deputado Rocha Loures, “vantagem indevida de cerca de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)”, mas pondera que “o que está em discussão não é só o direito individual do Presidente, mas também a Presidência da República, daí a necessidade de se fazer uma análise criteriosa do conjunto de indícios colhidos no Inquérito em que se baseia a denúncia”. Tal análise é apresentada, portanto, como uma exigência de ordem jurídica.

Porém, logo adiante, com ênfase nas palavras em itálico, afirma, categoricamente que: “Nessa toada, a Câmara dos Deputados realiza um juízo predominantemente político de admissibilidade da acusação, enquanto compete ao Supremo Tribunal Federal um juízo técnico-jurídico. O juízo político a ser efetivado pela Câmara dos Deputados, deve preceder à análise jurídica por parte do Supremo Tribunal Federal, porque, como visto, assim o determina a correta interpretação da Carta Magna”. Logo em seguida essa afirmação é devidamente justificada, com redobrada ênfase: "Afinal, condicionando o processamento do Presidente da República à autorização da Câmara dos Deputados, tem a Constituição, justamente, a finalidade de proteger a soberania do voto popular, impondo que, quem fora eleito pelo sufrágio, só seja afastado do exercício de seu mandato com a autorização dos representantes do próprio povo. Essa é a razão, também, pela qual a Constituição Federal elegeu a Câmara dos Deputados para realizar esse juízo político, eis que se trata da Casa do Congresso Nacional tradicionalmente associada à representação do povo. É um imperativo constitucional próprio das democracias".

Entretanto, ao fundamentar suas conclusões, o parecer se estende e se apega exclusivamente a questões de ordem jurídica, inclusive na jurisprudência do STF: “Há um longo elenco de precedentes do STF nesse sentido, que culminaram no julgamento da REPERCUSSÃO GERAL POR QUESTÃO DE ORDEM EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 583.937 – MINISTRO RELATOR CEZAR PELUSO, onde definitivamente ficou assentado: “AÇÃO PENAL. PROVA. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É licita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro”. Logo adiante, invoca o fundamento legal: “O art. 396, III, do Código de Processo Penal, estabelece que a denúncia, ou a queixa, só será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal. Justa causa, para a doutrina e jurisprudência pátrias, é a presença de indícios mínimos que possam fundamentar a instauração da ação penal”. Reforça seu entendimento com a invocação da doutrina de Tourinho Filho sobre a suficiência dos indícios, para concluir: “Logo, reafirmando o que dissemos acima, o que se deve analisar é se os fatos narrados na denúncia indicam a existência de indícios mínimos de materialidade do crime e autoria. Em outras palavras, neste momento processual não se exige a prova cabal e inquestionável da prática de um crime”.

O que se quer destacar é a evidente contradição entre a enfática afirmação de que a decisão sobre a admissibilidade da denúncia tem caráter fundamentalmente político e a ausência total de considerações sobre a conveniência ou as consequências práticas dessa decisão. Assim como fez o STF (que poderá consertar esse erro no futuro), o deputado Zveiter apenas endossou a denúncia do procurador Janot, descumprindo totalmente a missão e o dever fundamental do Legislativo, contrariando o que ele mesmo enfatizou. Não há dúvida de que a CCJ acertou ao rejeitar esse contraditório parecer.

No presente momento, a imprensa coloca em manchetes a dúvida do procurador-geral entre apresentar mais uma denúncia (com mais duas acusações) ou fatiar as acusações em duas denúncias. Vale recordar que esse mesmo procurador não apresentou qualquer denúncia contra Lula e Dilma, não obstante a abundância de motivos para isso. Agora, dotado de uma visão extraordinária, vislumbrou, de imediato, o cometimento de três crimes pelo atual presidente da República, mas apresentou denúncia apenas contra um deles, guardando os demais no bolso do colete. Essa decisão pelo fatiamento é política ou jurídica? Ninguém, dotado de um mínimo de cultura, ignora a turbulência política causada pela denúncia e o verdadeiro turbilhão que pode ser causado pela somatória de denúncias.

Voltando ao que se ponderou no início, todas essas decisões apresentam, necessariamente, componentes políticos e jurídicos. O que varia é a intensidade ou a predominância de cada um. Essa variação é normal, dependendo do âmbito no qual a decisão é tomada. Entretanto, existem decisões supostamente jurídicas que, entretanto, são manifestamente políticas, mas no mau sentido: não para defender o interesse público, mas para satisfazer interesses pessoais ou políticos partidários. Como se sabe, na vida real existem juristas e “juristas”; estes são justiceiros hipócritas, cujo compromisso não é com o Direito, a segurança jurídica e a normalidade do Estado Democrático de Direito.

O Brasil, atualmente, está saindo da gravíssima recessão a que foi conduzido e segue a caminho da restauração da economia, com reformas significativas que podem incrementar investimentos, emprego e renda. Mas isso não interessa a determinadas facções políticas, que se esforçam para, a qualquer custo, criar uma desordem institucional e derrubar o atual presidente da República. Isso, entretanto, não se resume na simples troca de uma pessoa por outra, mas, sim, num processo extremamente complicado e de alto risco, conforme se analisará em um futuro artigo.

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