Opinião

Juiz não pode converter prisão em flagrante em preventiva sem ouvir MP

Autor

  • Rômulo Moreira

    é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

17 de julho de 2017, 7h30

A Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça divulgou, no último dia 10 de julho, quatro novos temas na mais recente edição do projeto Pesquisa Pronta.

Em um deles, afirma-se que a decisão do juiz que converte a prisão em flagrante em prisão preventiva dispensa o prévio requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial.

Vejamos, então, o absurdo da tese.

O artigo 282, parágrafo segundo, do Código de Processo Penal, dispõe, rigorosamente, em sentido contrário, ao afirmar "que as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público."

Seria preciso uma redação mais clara?

Por óbvio, as medidas cautelares (e, com muito mais razão, uma prisão preventiva) só poderão ser decretadas de ofício pelo juiz durante a fase processual (o que já é de se lamentar, inclusive – não deveria nem ser o caso também). Antes, no curso de uma investigação criminal (que é o caso ocorrente quando estamos diante uma prisão em flagrante – de natureza meramente pré-cautelar), a decretação de qualquer medida cautelar somente poderá ser decretada quando o juiz é instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela polícia. Nesse sentido, a exigência é imposta pela lei processual penal expressamente, não havendo margem para dúvidas quaisquer.

Aliás, o impedimento decorre muito menos da lei, e muito mais do sistema acusatório, portanto, da própria Constituição Federal que o adotou.

Se já é sempre inoportuno deferir ao juiz a iniciativa de medidas persecutórias durante a instrução criminal, imagine-se na fase de investigação criminal! O caso torna-se mais grave e o erro mais grosseiro.

É absolutamente desaconselhável permitir-se ao juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (restritiva de direitos, privativa de liberdade etc.). Admitir-se o contrário é sucumbir aos velhos paradigmas do sistema inquisitivo.

Portanto, essa posição do Superior Tribunal de Justiça demonstra um total desconhecimento e um perverso distanciamento dos postulados do sistema acusatório, que não se coadunam com a determinação pessoal, direta e de ofício de nenhumas medidas cautelares.

Com efeito, “este sistema vai se impondo na maior parte dos sistemas processuais. Na prática, demonstrou ser muito mais eficaz, tanto para o aprofundamento nas investigações como para preservar as garantias processuais”, como bem acentua Alberto Binder (Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43, em tradução nossa).

Nele estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao juiz proceder como órgão persecutório (e, sobretudo, na gestão da prova), decretando aqui e acolá prisão preventiva, já que está proibido “ao órgão julgador realizar as funções da parte acusadora” (Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64, em tradução nossa).

Um dos argumentos mais utilizados para contrariar a afirmação anterior é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal medievo e "católico". Ocorre que a "verdade" a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico. Não se pode, por conta de uma busca de algo inatingível (a verdade…) permitir que o juiz saia de sua posição "supra partes" (ou para além dos interesses das partes – como bem prefere o mestre Jacinto Coutinho), a fim de (ele próprio e de ofício – como se de um deus tratasse-se – já que onisciente e onipotente), avaliar necessária, adequada e proporcional (em sentido estrito) a prisão preventiva.

A propósito, sobre a tal verdade material, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites e de regras legais, alcançável a partir de qualquer meio e sem observar rígidas regras procedimentais. É evidente que esta pretendida ´verdade substancial´, a ser perseguida fora de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera para um juízo de valor, amplamente dissociado do fato, assim como que o conhecimento ético sobre o que se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do proceso penal”.

Para ele, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante o respeito a regras precisas e relativas, tão somente, aos fatos e circunstâncias indicados como penalmente relevantes. Esta verdade não pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual; está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa. É, em suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição, mas mais reduzida quanto ao conteúdo informativo de qualquer hipotética ´verdade substancial´”.

Vê-se, portanto, que se permitiu um desaconselhável “agir de ofício” pelo juiz. Não é possível adotar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, agora sufragado, em um sistema jurídico de modelo acusatório, pois, como já afirmado acima, lembra o sistema inquisitivo caracterizado por “uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade”, ou seja, este sistema “confia não apenas na verdade, como também confia a tutela do inocente às presumidas virtudes do poder que julga” (Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, páginas 44, 45 e 604, tradução nossa).

Há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório. Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um sistema acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime. (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, . 175, junho/2007, p. 11).

De toda maneira, não há surpresas no front jurídico brasileiro. Seria estranho o contrário, ou seja, o Superior Tribunal de Justiça entender que o juiz não poderia converter de ofício a prisão em flagrante em prisão preventiva. Mas, então, já seria exigirmos muito!

Autores

  • Brave

    é Procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (UNIFACS). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!