Direito Civil Atual

Pessoa jurídica e direitos de personalidade (parte 2)

Autor

  • Elimar Szaniawski

    é advogado professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná professor do Programa de Pós-graduação em Direito Pós-doutorado Doutorado e Mestrado da UFPR e doutor em Direito pela mesma instituição.

17 de julho de 2017, 8h10

ConJur
1. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista doutrinário
As limitações impostas a esse trabalho afastam a realização de um estudo longo e aprofundado das diversas teorias sobre o conceito e a natureza da pessoa jurídica, uma vez que o tema, pela sua complexidade e importância, merece um estudo específico, a exemplo da obra de José Lamartine Corrêa de Oliveira, Conceito de Pessoa Jurídica, tese que lhe outorgou o título de livre-docente de Direito Civil, da Faculdade de Direito da UFPR, em 1962. Por essa razão, abordaremos de imediato a noção de pessoa jurídica desenvolvida pela doutrina de José Lamartine Corrêa de Oliveira, necessária para embasar nosso pensamento.

Corrêa de Oliveira concebe a pessoa jurídica como sendo um ser, uma unidade ontológica constituída pela reunião de seres humanos que a integram em uma existência autônoma, revelando-se uma “realidade permanente, individual, completa, incomunicável fonte de atividade consciente e livre, realidade distinta. Realiza todas as características da personalidade, menos uma: a substancialidade”[1]. Lamartine sustenta que essa unidade ontológica não possui “forma substancial”, mas, sim, “forma acidental”, uma vez que para existir depende dos seres humanos que estão sob sua existência[2]. A pessoa jurídica é uma “realidade análoga à pessoa humana pelo fato de ela se identificar em muitos pontos com a pessoa natural; distinguindo-se, porém, dessa, pelo fato de aquela revelar substancialidade, sendo que a pessoa jurídica é destituída de substância”[3].

A visualização pelo autor da categoria pessoa natural se dá em consonância com o pensamento de São Tomás de Aquino e da filosofia Tomista. Para São Tomás de Aquino a pessoa natural é “reconhecida como indivíduo, como substância, por ser um ente que existe por si mesmo”[4]. Os seres de forma substancial seriam aqueles que não necessitariam de fundamentos extrínsecos para esteio, ou seja, existem por si mesmos. Os seres acidentais embora sejam, também, considerados seres, os ens, são, porém, ens entis, isto é, destituídos de forma substancial, não tendo, por essa razão, existência em si mesmos, “existindo como complemento ou acabamento de outro ser”[5].

As pessoas jurídicas sob o ponto de vista ontológico são verdadeiras pessoas, classificadas como sujeitos de direito, sendo, porém, sua personalidade meramente analógica à da pessoa natural. A ideia de estabelecer-se uma analogia entre pessoa natural e pessoa jurídica foi retomada por Zambrano e Rénard, os quais atribuem ao ens entis a consistência de um ser de razão, por constituir-se em um ser que depende da razão como o efeito da causa, possuindo, portanto, existência real e verdadeira. Dessa maneira, pode-se afirmar que a pessoa jurídica consiste em uma realidade analógica ao ser humano. Compete, ainda, ao Estado o reconhecimento jurídico desse ente, preexistente a tal declaração. O direito objetivo, ao reconhecer a personalidade de determinada reunião de pessoas ou de bens, reconhece e declara algo que já existe. Trata-se do cumprimento de um requisito extrínseco e não constitutivo[6].

A afirmação da realidade da pessoa jurídica, per si, se mostra insuficiente, carecendo harmonizar essa realidade à noção de direito subjetivo. Qualificando-se como entes dotados de personalidade, poderiam ser titulares de direitos subjetivos, não decorrentes do poder de vontade ou do interesse juridicamente protegido, mas decorrente de uma ligação da ordem do ter, que firmaria a titularidade de um direito subjetivo outorgado pelo direito objetivo[7]. A vinculação entre o direito objetivo e o direito subjetivo não significa, para Lamartine, uma opção legalista ou positivista, mas o sentido de que o direito objetivo abrange tanto o direito positivo quanto o direito natural. O direito positivo possui a função de “criar direitos subjetivos (os que não resultam do Direito Natural) ou meramente consagrar os emanados dessa ordem normativa mais alta e básica”[8].

Considerando a pessoa jurídica um ser, assim como o é a pessoa natural, indivisa, individual, permanente e externamente independente, embora desprovida de substância, “pois o acidente é ser” possui, a mesma, atributos da personalidade devendo, os mesmos, ser protegidos diante de iminente lesão.

A pessoa jurídica é um ser acidental, não idêntico, porém análogo ao ser humano, por ser destituída de dignidade, segundo a visão kantiana. A dignidade é imanente à pessoa natural pelo simples fato de ela ser o ser humano, ou seja, possui um fim em si mesmo, possuidor de um “valor próprio […] e não valor como meio para outros”[9]. Observa Lamartine que a diferença entre pessoa humana e pessoa jurídica, na concepção tomista, não difere fundamentalmente da visão atual, representada por Larenz[10]. A pessoa substancial existe por si mesma, cuja finalidade é em si mesma, ao passo que a pessoa jurídica para existir, depende dos seres humanos, não possuindo, por essa razão, valor próprio, nem dignidade[11].

Embora ausente de dignidade, o fato de a pessoa jurídica ser uma entidade análoga ao ser humano e, consequentemente, portadora de personalidade, faz com que José Lamartine Corrêa de Oliveira formule a noção de a pessoa jurídica trazer em si uma personalidade cujas emanações ou atributos são reconhecíveis como direitos de personalidade devidamente tuteláveis pelo direito.

Em 1990, publicamos na Revista dos Tribunais um trabalho de nossa autoria, Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, no qual defendemos o reconhecimento da existência de direitos de personalidade da pessoa jurídica, tais como o nome, a boa fama, o crédito, a reputação e o direito genérico à intimidade, abarcando esse o direito ao segredo[12].

Rui Stoco, a partir de um aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferido em 15/8/1991, sustenta que as entidades coletivas dotadas dos atributos de reputação e de conceito perante a sociedade são passíveis de difamação, desde que a manifestação possa abalar tais atributos[13]. Assim, violada a honra objetiva da pessoa jurídica, torna-se essa parte legítima para demandar pela respectiva indenização pela prática de ato atentatório à sua personalidade.

No Direito francês, há algum tempo, vem sendo reconhecido à pessoa jurídica a titularidade ativa para a interposição de ação destinada à tutela dos atributos da sua personalidade contra violações praticadas por terceiros, protegendo, mediante proposição de tutela inibitória, seu direito ao nome comercial, às insígnias e marcas, ao segredo industrial ou comercial, assegurando o direito de resposta e dos demais atos ilícitos que possam prejudicar sua imagem pública[14]. Tal qual se propõe em relação às pessoas naturais a ação indenizatória decorrente da responsabilidade civil por atos ilícitos de natureza moral, o mesmo fundamento vale para as entidades personificadas a favor das quais cabe a utilização da ação indenizatória diante da prática de ato atentatório à sua personalidade. Na doutrina francesa, segundo ensina Pierre Kayser, as pessoas jurídicas (personnes morales) possuem direitos análogos aos direitos de personalidade das pessoas naturais[15].

Dessa maneira, de acordo com abalizada doutrina nacional e estrangeira que vem desenvolvendo estudos nos últimos 50 anos sobre a pessoa jurídica e a tutela dos direitos de personalidade dela, verifica-se que a assertiva trazida pelo Enunciado 286 do CJF, no sentido de serem os direitos de personalidade direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo, por essa razão, as pessoas jurídicas titulares de tais direitos, constitui-se em um grande retrocesso para o Direito brasileiro.

2. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista jurisprudencial
Afirmamos, na introdução da primeira parte desta coluna, que a reiterada jurisprudência dos tribunais, no sentido de reconhecer que as pessoas jurídicas são suscetíveis de serem vítimas de danos morais, provocou a manifestação do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, resultando na prolação da Súmula 227, a qual, expressamente, declara que “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

A referida súmula, alinhada à mais recente doutrina, entende que a pessoa jurídica pode ser vítima de dano moral compreendendo a ofensa à sua honra objetiva, que consiste no agravo à sua reputação no meio social onde está estabelecida. O ato ofensivo do agente causa estremeção à pessoa jurídica que afeta seu bom nome, seu conceito nas relações comerciais e a tradição de mercado, independentemente da ocorrência de reflexos negativos e danos ao seu patrimônio mediante o fato do abalo de crédito, da perda de clientela ou da perda da chance de realizar novas contratações.

O ato atentatório à honra da pessoa jurídica, que é objetivo, difere da violação da honra da pessoa natural, que é subjetiva. A honra subjetiva se qualifica como injúria, sendo inerente à pessoa natural, localizada no psiquismo de cada indivíduo, podendo ser violada mediante atos que atinjam sua dignidade, seu respeito próprio, sua autoestima, causado-lhe sofrimento, humilhação e angústia[16].

Sílvio de Salvo Venosa ensina que “o dano moral não se circunscreve apenas aos fatos dor e sofrimento, mas provoca de maneira ampla um desconforto extraordinário na conduta do ofendido podendo ser a vítima tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica”[17].

Trata-se de um efetivo dano à sua personalidade, que existe concretamente e pode ser mensurado através de arbitramento.

Verifica-se estar consolidado na jurisprudência brasileira o reconhecimento da tutela dos direitos de personalidade da pessoa jurídica e a respectiva indenização pelo dano moral sofrido.

3. Conclusão
A atribuição da personalidade ao ser humano decorre de mera política legislativa, existindo legislações que reconhecem a personalidade do embrião e do feto desde a concepção, momento em que este se torna uma spes personae, portador de identidade genética própria. Outros diplomas legais atribuem a personalidade somente ao recém-nascido, desde que ele nasça com vida (Amaral, 1998, p. 21). A aquisição da personalidade jurídica dos entes ideais, igualmente, se dá mediante determinação legislativa. Trata-se de um processo técnico que atribui individualidade própria a um grupo de pessoas, independentemente da individualidade de seus membros, ou a um conjunto de bens, que se tornam titulares de direitos e de obrigações, não sendo considerados como a mera reunião de pessoas ou de bens nas suas relações jurídicas, mas entes próprios e individualizados (Amaral, 1998, p. 272).

Logo, se o reconhecimento da personalidade do ser humano e, consequentemente, os direitos decorrentes dessa personalidade são dependentes de política legislativa e da atuação da lei (artigo 2º, Código Civil) e sendo o reconhecimento da personalidade da pessoa jurídica, igualmente vinculado à política legislativa e da atribuição pela lei (artigo 45 Código Civil), essa mesma lei tem o poder de reconhecer e declarar a existência de direitos que emanam da personalidade da pessoa jurídica (artigo 52, Código Civil), independentemente de ela ser, ou não, portadora de dignidade.

Assim, conquanto ausente de dignidade, o fato de a pessoa jurídica ser uma entidade análoga ao ser humano, reconhecida pela lei sua personalidade, suas emanações ou atributos são, igualmente, reconhecíveis pela mesma lei como direitos inerentes a essa personalidade e devidamente tuteláveis pelo direito.

No Brasil, a indenização do dano moral decorrente de atentado praticado contra o direito geral de personalidade de qualquer pessoa, seja ela natural ou jurídica, está prevista no art. 5°, X, da Constituição. O mesmo dano moral que pode vitimar a pessoa natural, também poderá lesar a pessoa jurídica, sendo ambas as modalidades de atentados indenizáveis. No caso de se tratar de violação de direito de personalidade de pessoa jurídica deverá o dano ser avaliado por meio de arbitramento.

Os mandamentos contidos na Súmula 227 do STJ e no artigo 52 do Código Civil consolidaram em definitivo a doutrina que reconhece à pessoa jurídica, o direito à reparação de dano moral sofrido e de ser ela titular do direito geral de personalidade.

O direito geral de personalidade da pessoa jurídica é resultado de uma construção lenta que se processou durante muito tempo até vir a se consolidar, na atualidade, como categoria jurídica, atributo da personalidade da pessoa jurídica.

A surpreendente aprovação do Enunciado 286 do CEJ, em uma Jornada de Direito Civil, que vem negar anacronicamente a titularidade de direitos de personalidade às pessoas jurídicas, se revela incompreensível, uma vez que se trata de um equívoco de quem o elaborou consoante pudemos verificar.

O Enunciado 286 do CEJ, consoante vimos, não se constitui, tão somente, em um equívoco, mas também em um grave retrocesso no Direito brasileiro, pois sua permanência como indicação jurídica vai ao desencontro da própria doutrina brasileira consolidada desde os anos de 1960 e reafirmada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o qual textualmente reconhece e tutela os atributos da personalidade da pessoa jurídica e o direito à indenização pelos danos morais sofridos por atentados à sua personalidade.

O Enunciado 286 do CEJ não só nega a existência de direitos de personalidade à pessoa jurídica, mas nega a própria personalidade da pessoa jurídica ao pretender atrelá-la ao atributo dignidade.

Desse modo, só resta a expurgação do Enunciado 286 do CEJ do rol de enunciados que procuram realizar a boa exegese do Código Civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. S. Paulo. Saraiva, 1979, p.17.
[2] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17-18; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, nº 46, 2007, p.128-129.
[3] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17.
[4] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.17-18; LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.128-129.
[5] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Conceito de pessoa jurídica. Tese. Curitiba. UFPR 1962, p.162.
[6] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.14.
[7] LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.129.
[8] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Conceito de pessoa jurídica, p.168-169; LEONARDO, Revisitando a Teoria da Pessoa Jurídica na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira, p.129-130.
[9] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[10] LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil. Apud OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[11] OLIVERA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p.135.
[12] SZANIAWSKI, Elimar. Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, R T, v.657, ps. 25-31. 1990, p.27-29.
[13] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo : RT, 1999, p. 113.
[14] KAYSER, Pierre. La Protection de la Vie Privée. Paris, Economica, 1984, p.162.
[15] KAYSER, Pierre. Les droits de la personnalité – aspects théoriqués et pratiques. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v. 69, 1971, P.445.
[16] AGUIAR, Ruy Rosado de, STJ Súmula 227 – 8/9/1999 – DJ 20/10/1999. “Pessoa Jurídica – Dano Moral. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral” (Recurso Especial 129.428-RJ (97.289818).
[17] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.298.

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