Opinião

Responsabilidade das empresas estatais como sujeitos de atos de improbidade

Autores

  • Jessé Torres Pereira Junior

    é desembargador e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

  • Marinês Restelatto Dotti

    é advogada da União especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da obra "Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes responsabilidade e transparência".

12 de julho de 2017, 8h31

Preceitua o parágrafo 1º, do artigo 173, da Constituição Federal, com a redação da Emenda 19, de 4 de junho de 1998, que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo, entre outros assuntos, sobre licitações e contratações de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.

Dezoito anos após a publicação da EC 19/1998 sobreveio, aos 30 de junho de 2016, a Lei 13.303, dispondo sobre o prometido estatuto jurídico das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

O artigo 31 da Lei 13.303/2016, com respaldo no artigo 37, §4º, da Constituição Federal, alude ao dever de as referidas entidades observarem, entre outros princípios, o da probidade administrativa em suas licitações e contratações.

A nova lei submete os empregados dessas empresas ao dever jurídico de agir, nos processos de licitação e contratação por elas instaurados, em consonância com os princípios constitucionais e administrativos, assim como de servir à administração pública com honestidade, procedendo no exercício de suas funções sem aproveitar-se dos poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem. O desrespeito a esse dever caracteriza a improbidade administrativa.

O artigo 29, XV, autoriza a empresa estatal a dispensar o prélio competitivo em presença dos seguintes requisitos cumulados: (a) demonstração da urgência de atendimento a determinada situação; (b) o objeto da contratação ser necessário para afastar o risco de prejuízo ou de comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços ou bens; (c) no caso de parcelas de obras, serviços e compras, a respectiva conclusão ou entrega deve dar-se no prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados a partir da data de ocorrência do fato tido como emergencial.

A ausência de qualquer desses requisitos descaracteriza a situação emergencial. Por isso que a atuação do agente deve ser imediata, ou seja, a resposta à emergência deve ocorrer mediante contrato celebrado assim que verificada a situação fática, o que não afasta ser a contratação resultante de processo administrativo instruído com os elementos necessários e suficientes para bem demonstrar a aplicação da hipótese legal no caso concreto.

A dispensa mostra-se possível, ainda, quando a situação de emergência decorrer de falta de planejamento, de desídia administrativa ou de má administração, pois da inércia do agente público, culposa ou dolosa, não pode advir prejuízo ao interesse público. Ou seja, o reconhecimento da situação de emergência não implica convalidar ou dar respaldo jurídico qualquer que seja a conduta do agente, a quem cabe a responsabilidade pela não realização da licitação em momento oportuno, mas não desfigura a situação emergencial que autoriza a contratação direta.

Nos termos do artigo 29, § 2º, da Lei 13.303/2016, será responsabilizado o agente público que, por ação ou omissão, tenha dado causa à situação emergencial decorrente de desídia administrativa, inclusive no âmbito da Lei 8.429/1992, a lei de improbidade administrativa. Conforme preceitua o artigo 11 desse último diploma, constitui ato de improbidade administrativa o que atenta contra os princípios da administração pública mediante ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.

Todo agente público deve atuar com eficiência, presteza, zelo, honestidade e senso de dever na execução de suas tarefas. É o que a sociedade espera e exige de quem exerce atividade pública. Mas nem toda ação desidiosa do agente público pode ser apontada como ato de improbidade administrativa, para o qual a Lei 8.429/1992 comina punições severas. A aplicação de seu artigo 11, considerada a gravidade das sanções e restrições impostas ao agente público, deve cumprir-se cum granu salis, máxime porque interpretação ampliativa pode acoimar de ímprobas condutas irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do agente. A má-fé constitui premissa necessária do ato ilegal e ímprobo, e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da administração pública, impulsionada pela má intenção do agente público. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, traduz, necessariamente, a falta de boa-fé ou a desonestidade funcional qualificada.

O ato de improbidade administrativa, previsto no artigo 11 da Lei 8.429/1992 (que atenta contra os princípios da administração pública), exige a comprovação do dolo como elemento da conduta que submete o agente às consequências da prática de improbidade. Não requer a demonstração de dano ao erário ou de enriquecimento ilícito, por interpretação literal do artigo 12, III, da lei, que prevê as penalidades aplicáveis a essa categoria de ato de improbidade administrativa.

Caracterizado o prejuízo ao erário, o ressarcimento, na medida dos danos efetivamente causados ao poder público, é o efeito imediato e imperativo do ato de improbidade, a reprimir o dolo na maquinação, na maldade, na malícia. Sem embargo da aplicação da sanção, posto que ressarcimento não é sanção, mas reposição do lesado à situação anterior à lesão.

Ainda segundo a Lei 8.429/1992, artigo 10, VIII, constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que vise a frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente.

O agente público, quando promove a contratação direta do fornecimento do bem, da execução de obra ou da prestação de serviço, move-se em campo delimitado por lei. Dentro desse balizamento, sua ação ou omissão deve ser examinada para fins de individualização da prática de ato de improbidade. Impõe-se a verificação do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão e o resultado verificado, a existência de dolo (deliberada intenção) ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia) do agente.

A configuração dos atos de improbidade administrativa, previstos no artigo 10 da Lei 8.429/1992 (que causam prejuízo ao erário), exige a presença do efetivo dano ao erário (critério objetivo) e, ao menos, culpa, o mesmo não ocorrendo com os tipos previstos nos artigos 9º e 11 da mesma Lei (enriquecimento ilícito e atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública), os quais se prendem ao elemento volitivo do agente (critério subjetivo), exigente de dolo.

Extrai-se que, para a aplicação da Lei 8.429/1992 em relação ao ato do agente público que tenha dispensado indevidamente o procedimento licitatório, inclusive quando não caracterizada a situação emergencial (artigo 10, VIII), é necessária a presença de conduta comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa, conforme assentado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (AREsp 940.508, rel. min. Mauro Campbell Marques, DJe 4/8/2016).

No que tange ao dano ou prejuízo ao erário, consequência necessária do ato de improbidade administrativa, previsto no artigo 10, VIII, da Lei 8.429/1992, não é afastada a possibilidade de que seja presumido. É que a ausência de procedimento licitatório prévio gera lesividade ao erário na medida em que a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias deixem de contratar a melhor proposta. Ou seja, admite-se que tais entidades teriam desembolsos menores, na eventualidade de proposta mais vantajosa, se houvesse prévia licitação.

Não cabe exigir do contratado a devolução dos valores recebidos pelos serviços efetivamente prestados, obra executada ou bens fornecidos, ainda que decorrente de dispensa indevida de licitação ou contratação emergencial ilegal, sob pena de enriquecimento ilícito da entidade pública, circunstância que não afasta (ipso facto) as sanções previstas no artigo 12, II, da Lei 8.429/1992. A não restituição não desqualifica a infração descrita no artigo 10, VIII, da Lei 8.429/1992 como dispensa indevida de licitação.

O artigo 2º da Lei 8.429/1992 adotou conceito amplo de agente público. Quaisquer de suas espécies ou categorias foram agasalhadas pelo comando legal. Não interfere na responsabilização por improbidade o caráter estatutário ou contratual da função, a determinação ou a indeterminação temporal do seu exercício, o recebimento ou não de remuneração, a integração formal do seu exercício em órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta. Alcança, portanto, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no seu artigo 1º.

O valor jurídico, de relevante interesse público, que preside tal abrangência, alcançando agentes (dirigentes ou empregados) atuantes em empresas públicas e sociedades de economia, é a probidade na gestão pública, dado que recebem da Carta Fundamental tratamento de administração pública, conquanto indireta (artigo 37, incisos XVII, XIX e XX). Embora a Lei 8.429/1992 não imponha sanções de natureza criminal (penas privativas de liberdade), mas político-administrativas, a gravidade da conduta ímproba atrai a severidade das penalidades nela previstas e justifica que alcancem agentes públicos com a definição lata que lhes dá o seu artigo 2º.

Por outro lado, como bem vem de notar João Pedro Accioly, “as estatais podem figurar tanto na condição de sujeito passivo (quando, mais comumente, são lesadas pela conduta ímproba de outrem), como na condição de sujeito ativo do ato de improbidade – na hipótese em que tais empresas, na condição de contratadas de outras pessoas da Administração, induzem, concorrem ou se beneficiam de algum ato de improbidade. Nesse caso, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, tal qual uma empresa privada qualquer, seriam responsabilizadas na forma do artigo 3º da Lei 8.429/1992”. Daí a inquietante indagação: poderiam tais empresas, integrantes da administração pública indireta, vir a ser proibidas de contratar com a administração estatal direta?

Accioly, realçando os matizes da questão, responde, com acerto, que tal proibição “parece logicamente equivocada e, no plano dos fatos, mostra-se nitidamente prejudicial, do ponto de vista econômico, ao próprio Poder Público. Na realidade de várias estatais, tal condenação implicaria automática dissolução material da empresa, eis que em casos vários elas são constituídas apenas para prestarem serviços para outras pessoas da Administração… Deve ser admitido, contudo, que as estatais que tenham enriquecido ilicitamente ou provocado danos ao erário sejam patrimonialmente responsabilizadas pelas condutas ímprobas adotadas por seus dirigentes. Advogar a total irresponsabilidade das estatais estimularia que tais empresas fossem administradas de modo desonesto ao se relacionarem contratualmente com outros entes da Federação, além de criar um ilegítimo privilégio às estatais em detrimento das empresas privadas – infringindo, assim, o disposto no artigo 173, § 1º, II, da Constituição. Ademais, outras entidades administrativas e entes políticos, ambos dotados de autonomia patrimonial, acabariam, em muitos casos, desprovidos de meios para buscar a reparação dos prejuízos oriundos dos atos de improbidade cometidos com o auxílio ou em benefício de sociedades de economia mista ou empresas públicas, o que acabaria violando a cláusula geral de indenizibilidade (CC/2002, artigo 927). Nessa linha, enquanto sujeitos ativos do ato de improbidade (por induzimento ou concorrência), as estatais somente podem ser sancionadas, com base na Lei 8.429/1992, com i) o ressarcimento integral do ano; ii) a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, e iii) o pagamento de multa civil, no quantum fixado pelo artigo 12, I, II e III, do aludido diploma… Nesse sentido observe-se o teor do artigo 94 da Lei 13.303/2016 e do artigo 19 da Lei Anticorrupção (12.846/2013)… das reprimendas elencadas pelo artigo  19… as únicas aplicáveis às estatais são as que possuem natureza meramente pecuniária (perdimento de bens direitos ou valores). As penas relativas à suspensão de suas atividades, à sua dissolução ou à proibição de receber benefícios e incentivos do Poder Público foram expressamente rechaçadas pelo Estatuto, justamente por entendê-las incompatíveis com a natureza, a finalidade e o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista” (Improbidade Administrativa e Proibição de Contratar com o Poder Público. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2017, pp 133-147). 

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