Direito Comparado

Como se produz um jurista: o modelo japonês (parte 57)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

12 de julho de 2017, 8h00

Spacca
Introdução
Na coluna anterior da série sobre a formação jurídica no Japão, apresentaram-se dados e informações sobre o professor, o aluno e os cursos de Direito naquele país asiático.

As reformas educacionais da última década, como já demonstrado, apresentaram mais problemas do que mudanças efetivas na qualidade do ensino. A ampliação do acesso dos alunos aos cursos jurídicos e o aumento do número de advogados não implicou melhoria qualitativa na formação dos novos bacharéis, muito menos atingiu os objetivos.

Nesta última coluna da série sobre o Japão, o foco serão as carreiras jurídicas.

Magistratura japonesa
A estrutura judiciária japonesa foi profundamente alterada após a Constituição de 1946. Embora os magistrados decidam “em nome do imperador” (uma fórmula que foi substituída na Alemanha e na Itália pelo enunciado “em nome do povo”), eles se apresentam constitucionalmente como parte integrante de um poder autônomo. A organização do Poder Judicial japonês dá-se de modo simples: a Suprema Corte está no ápice do sistema. Abaixo da Suprema Corte estão as cortes superiores, que se dividem em seis seções, além de uma corte especializada em propriedade intelectual. Existem também 50 tribunais especializados em Direito de Família e 50 tribunais distritais, ambos com 230 unidades jurisdicionais. Na base do sistema encontram-se os juizados sumários, traduzíveis por “cortes para pequenos litígios civis e criminais”, em número de 438, distribuídos em todo o país.

A Suprema Corte japonesa não é um tribunal constitucional, ao estilo alemão, embora tenha a última palavra quanto aos recursos extraordinários em matéria cível e criminal. Seus membros são nomeados pelo imperador japonês (o presidente da corte) ou pelo Gabinete de Ministros em nome do imperador (os demais membros da corte), sem limitação de mandato, salvo a aposentadoria compulsória aos 70 anos. Os cargos são vitalícios. Excepcionalmente, admite-se a remoção dos juízes da Suprema Corte por decisão dos eleitores. Embora não haja mandato, na prática, o tempo de permanência no tribunal é previsível, dado que a idade média dos nomeados é de 60 anos.

De modo igualmente diverso ao que se dá na Alemanha e, em grau infinitamente maior, no Brasil, a Suprema Corte japonesa é marcada pelo princípio da autocontenção. Questões de grande interesse político ou social são deixadas ao escrutínio dos atores políticos por meio dos fóruns democráticos tradicionais, como o Parlamento e as manifestações populares. São poucas as decisões da Suprema Corte que redundaram em declaração de inconstitucionalidade de leis e mais raras ainda as decisões que trouxeram para o tribunal as funções de poder moderador.

O tribunal possui 14 juízes (o mais jovem com 63 anos) e um presidente (com 69 anos de idade). A origem dos magistrados é geralmente a advocacia, a judicatura ou o Ministério Público. Os ministros acadêmicos quase sempre conjugaram a docência com outra atividade em uma dessas carreiras. A Lei de Organização da Suprema Corte Japonesa, a esse propósito, exige uma idade mínima de 40 anos para os nomeados, além de comprovada experiência profissional por período não inferior a 10 anos em cargos como presidente de uma corte superior, juiz, juiz de um juizado sumário, promotor de Justiça, advogado ou professor catedrático ou assistente de universidade japonesa.

Tradicionalmente, um terço dos membros da Corte Suprema é oriundo da magistratura, enquanto outro terço vem da advocacia, e o restante é escolhido dentre promotores e professores. Os advogados, também por tradição, são ex-presidentes ou ex-vice-presidentes da Ordem dos Advogados.

As cortes superiores, sediadas nas cidades de Tóquio, Osaka, Nagoya, Hiroshima, Fukuoka, Sendai, Sapporo e Takamatsu, dividem-se em seis seções. Em 2005, criou-se uma corte superior especializada em Direito da Propriedade Intelectual.

As cortes distritais são destinadas ao conhecimento em primeiro grau de matérias cíveis e criminais. Ao passo em que as cortes de família examinam matérias sobre Direito de Família, Direito da Criança e do Adolescente e crimes cometidos nessa área.

As cortes para pequenos litígios civis e criminais são formados por juízes singulares, equiparando-se aos juizados especiais brasileiros.

O recrutamento dos magistrados integrantes da jurisdição ordinária dá-se por ato do Gabinete Imperial, a partir de listas de candidatos formadas pela Suprema Corte. O processo depende de um parecer do Comitê Consultivo de Nomeações. Segundo dados de 2014, havia no Japão o número de oito presidentes de cortes superiores, 1.921 juízes e de 1.000 juízes auxiliares de cortes superiores e distritais e 806 juízes de cortes sumárias.

O provimento inicial na carreira dá-se para o cargo de juiz auxiliar. Os candidatos devem ter sido previamente aprovados no Exame de Ordem (um número reduzidíssimo de bacharéis consegue essa aprovação) e depois hão de ser submetidos a um Curso de Formação e Treinamento da Magistratura, ao fim do qual são examinados em avaliação específica[1]. A progressão para o cargo de juiz titular exige um mínimo de 10 anos de exercício da magistratura como auxiliar[2].

As cortes superiores são compostas de juízes titulares com mais de cinco anos de experiência, além da escolha dentre promotores, advogados ou professores com mais de 10 anos de atividade.

Os juízes dos juizados sumários são escolhidos de modo mais discricionário e eles possuem mandatos de 10 anos, com possibilidade de reeleição.

Dado importante em qualquer estudo comparativo das carreiras jurídicas é a remuneração profissional. A Lei 90 de 2016 fixou os seguintes patamares remuneratórios para a magistratura japonesa: a) juiz titular (nível 1, o ápice da carreira) recebe 1,17 milhão de ienes por mês ou 14,1 milhões de ienes ao ano. O juiz titular (nível 8) recebe 516 mil ienes por mês; b) o juiz auxiliar de nível 12 (o mais baixo) percebe 231,4 mil ienes ao mês; c) o juiz das cortes para pequenos litígios civis e criminais percebe entre 818 mil ienes por mês (nível 1) e 231,4 mil ienes por mês (nível 17)[3].

A equivalência desses valores com as realidades norte-americana e brasileira pode ser assim estabelecida: a) 1,18 milhão de ienes por mês — US$ 10,37 mil ou R$ 34,11 mil; b) 14,1 milhões de ienes anuais — US$ 124,46 mil ou R$ 409,31 mil; c) 516 mil ienes por mês — US$ 4,55 mil ou R$ 14,98 mil; d) 6,19 milhões de ienes anuais — US$ 54,66 mil ou R$ 179,75 mil.

Os valores remuneratórios dos níveis iniciais da magistratura não são particularmente elevados, especialmente se considerado o custo de vida na região metropolitana de Tóquio ou de outras grandes cidades japonesas. A magistratura japonesa não passou pela transformação, que é muito sensível no Brasil e em outros países, no sentido e na representação social da carreira. A figura do juiz discreto e com uma vida anônima ainda é preponderante no Japão. O envolvimento dos magistrados em questões políticas é praticamente nulo.

Ministério Público
O monopólio da titularidade da ação penal e a coordenação da investigação criminal são as atividades essenciais do Ministério Público japonês. Além dessas atribuições, estão a defesa do interesse público e a proteção da criança. A chefia do Ministério Público é atribuída ao procurador-geral de Justiça, auxiliado por um procurador-geral adjunto. Há ainda oito procuradores-superintendentes, 1.294 promotores de Justiça e 919 promotores de Justiça assistentes[4].

De acordo com a Lei 91, de 2016, a estrutura da carreira do Ministério Público é dividida em promotores titulares e promotores assistentes. A remuneração do promotor titular de nível 1 é de 1,17 milhão de ienes mensais. No nível 20, correspondente ao patamar inicial, a remuneração é de 231,4 mil ienes por mês. Os promotores de Justiça assistentes recebem entre 574 mil ienes por mês (nível 1) e 212,2 mil ienes por mês (nível 17). O procurador-geral de Justiça recebe a remuneração mensal de 1,47 milhão de ienes mensais[5].

O recrutamento dos membros do Ministério Público é muito semelhante ao dos juízes. É necessária a conclusão do curso de Direito, aprovação no Exame de Ordem e também na escola de formação, que é comum a magistrados, promotores e advogado[6].

Diferentemente do que se dá no Brasil, a atuação do Ministério Público japonês é mais contida e discreta. Ela se amolda a um perfil ministerial pré-Constituição de 1988. Outra particularidade japonesa é que o papel do Ministério Público se transformou após a Segunda Guerra Mundial: da tradição francesa do promotor como um magistrado, passou-se ao modelo alemão, que identifica as carreiras de promotor e de juiz como autônomas[7].

O Ministério Público organiza-se de modo centralizado e altamente hierárquico, o que é um contraste bem notável com a realidade brasileira. O Ministério da Justiça exerce a supervisão do Ministério Público, exercendo sobre ele controle hierárquico[8]. É similar, contudo, a distribuição dos níveis de carreira em correlação com a magistratura. A atuação do membro do Ministério Público é vinculada ao respectivo órgão jurisdicional, o que implica a promoção estar associada ao ofício perante juízos de primeiro grau, de segundo grau e tribunais superiores[9].

Advocacia no Japão
Na parte 55 da série, fez-se uma análise aprofundada da transformação do perfil da advocacia japonesa após as reformas universitárias de 2004. Recomenda-se ao leitor a consulta a essa coluna para uma visão mais abrangente da advocacia e do impacto negativo da introdução de um novo sistema educacional no modelo profissional da advocacia japonesa.

Diferentemente do período pré-Segunda Guerra Mundial, os advogados japoneses não se vinculam mais ao Ministério da Justiça, mas somente à Ordem dos Advogados, que se organiza nacionalmente como uma federação de seccionais. O exercício da profissão, ao menos até o início da década de 2000, conservou traços liberais, sendo rara a existência de advogados internos nas empresas ou grandes escritórios de advocacia, com centenas de profissionais associados ou subordinados[10].

Conclusões
O Japão é um excelente modelo para se comparar a confluência de tradições jurídicas romano-germânicas, preponderantes na estrutura judiciária e da advocacia, com uma nova estrutura educacional de inspiração norte-americana. Mais ainda é um ótimo campo de observação para a introdução de reformas pouco felizes na formação dos futuros profissionais do Direito.

A estrutura do Poder Judiciário e do Ministério Público é bastante sólida, com uma participação autocentrada na vida política e social japonesa. A baixa litigiosidade, a prevalência de elementos morais na conduta das pessoas (o respeito à palavra, o pagamento das dívidas e o respeito aos consumidores) e a busca por soluções alternativas de conflitos contribuem para a pequena expansão do aparato judiciário japonês e da advocacia. Esses fatores, somados à crise gerada pela reforma universitária, têm determinado uma queda na procura pelos cursos jurídicos.

***

Com esta coluna, encerra-se a série sobre a educação jurídica japonesa.


[1] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em 6/7/2017.
[2] ODA, Hiroshi. Japanese Law. 3 ed. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 74.
[3] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO075.html. Acesso em 5/7/2017.
[4] Disponível em: http://japan.kantei.go.jp/judiciary/0620system.html. Acesso em 10/7/2017.
[5] Disponível em: http://law.e-gov.go.jp/htmldata/S23/S23HO076.html. Acesso em 11/7/2017.
[6] Disponível em: http://law.unimelb.edu.au/news/MLS/q-and-a-with-judge-aya-kobayashi. Acesso em 10/7/2017.
[7] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 73.
[8] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 77.
[9] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 76.
[10] ODA, Hiroshi. Japanese Law. Op. cit. p. 78-79.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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