Tribuna da Defensoria

A atuação da Defensoria Pública em complementaridade à advocacia privada

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

29 de agosto de 2017, 8h10

Parte 2. Hipótese de vulnerabilidade jurídica: custös vulnerabilis ao lado do custös juris para o equilíbrio do julgamento do processo penal no tribunal
A Defensoria Pública é, como expressão e instrumento do regime democrático, constitucionalmente responsável pela promoção dos direitos humanos (artigo 134, caput, CRFB), objetivando a proteção dos valores fundamentais que facultem o desenvolvimento pleno de cada pessoa[1], em especial dos necessitados (artigo 5º, LXXIV, CRFB), fazendo cumprir o objetivo de redução das desigualdades e erradicação da pobreza (artigo 3º, III, CRFB), garantindo a todos o acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, CRFB), como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, CRFB), independente de origem, cor, raça, posição social, gênero ou orientação sexual, convicção filosófica, política ou religiosa, idades, dentre outros (artigo 3º, IV, CRFB)[2]”.

Para a consecução dessa missão, a Defensoria Pública atua ordinariamente como representante processual da parte, esta detentora da legitimidade ad causam, e aquela detentora da capacidade postulatória necessária para o regular “falar” em juízo. Entretanto, situações há em que a instituição comparece em juízo em nome próprio, para defender direito alheio, atuando com legitimação extraordinária. Em outros casos, a intervenção defensorial pode se dar como amicus curiae — amigo da corte — ou como custös vulnerabilis — guardião dos vulneráveis[3] —, tendo como escopo aportar argumentos, informações e documentos aptos a instruir sobejamente o processo, de forma a possibilitar ao julgador uma cognição ampla e profunda da problemática posta, enfrentando com maior grau de certeza e confiança o mérito da questão, sem com isso dispensar ou substituir o importante papel desempenhado pelo causídico particular representante judicial uma vez que o advogado privado presta serviço público e exerce função social (artigo 2º, parágrafo 1º, EOAB) indispensável à administração da Justiça (artigo 133, CRFB), cuja atuação livre está protegida (artigo 7º, I, EOAB).

Vimos na parte 1 deste artigo que, nas hipóteses em que o acusado tem sua defesa patrocinada por advogado dativo, por inexistência de órgão de atuação da Defensoria Pública instalado ou na insuficiência do número de defensores quando conflitante as teses de defesa, ou ainda, quanto tenha o acusado constituído advogado privado para o patrocínio da causa, mas não possui condições financeiras para incluir no contrato os custos com o deslocamento deste até a cidade sede do juízo ou tribunal, deve o advogado esclarecer essa circunstância na petição, requerendo a intimação do membro da Defensoria Pública com assento perante o órgão de 2º grau para atuação como custös vulnerabilis e em verificando o relator do processo a presença desta dupla vulnerabilidade — econômica e espacial — deve intimar a Defensoria Pública para a sessão de julgamento, atendendo ao bem comum e aos fins sociais que determinaram pelo Constituinte originário a criação de uma instituição voltada para a promoção dos direitos humanos e da assistência jurídica integral e gratuita, para a concretização da ampla defesa e para a realização de um contraditório substancial destinados à efetiva influência na decisão judicial, como corolários da garantia do acesso à ordem jurídica justa.

Aqui trataremos da atuação da Defensoria Pública diante da vulnerabilidade jurídica ocasionada pelo desequilíbrio processual entre acusação e defesa, ou seja, quebra na paridade de armas, ocasionada pela dupla manifestação do Ministério Público, ou pela manifestação deste enquanto custös juris.

De fato, no julgamento dos recursos — em especial as apelações criminais — e de processos originários no 2º grau — o caso pungente dos Habeas Corpus e da revisão criminal —, o relator abre vistas ao Ministério Público com atuação junto ao tribunal para que este emita um parecer acerca do caso em análise.

Perceba-se que a atuação deste membro do Ministério Público — normalmente um procurador de Justiça nos tribunais estaduais ou procurador da República nos tribunais federais ou de vértice — se dá mesmo nos casos em que o recurso (por exemplo, recurso em sentido estrito, apelação, recurso ordinário constitucional) tenha sido interposto pelo próprio parquet, além, é claro, dos casos em que o recurso foi manejado pela defesa e houve prévio contra-arrazoado pelo representante ministerial em primeiro grau.

Assim, o Ministério Público, órgão ao qual foi atribuída a função de promover, privativamente, a ação penal pública (artigo 129, I, CRFB), além de realizar a acusação e, eventualmente, diante da sentença, apresentar apelação ou contrarrazões se esta for apresentada pela defesa, ainda pode novamente se manifestar, desta feita sob a indumentária de custös juris — fiscal do ordenamento jurídico.

A experiência prática nos tem demonstrado que este parecer do membro do Ministério Público com assento no tribunal quase sempre vem em concordância com as posições adotadas pelo representante do parquet que inicialmente se manifestou no processo, não obstante haja, em alguns raros casos, dissenso entre um e outro.

Entretanto, o tão só fato de haver a possibilidade de o parquet se manifestar duas vezes no mesmo processo coloca a defesa em situação de desvantagem, quebrando a (não só desejável, mas indispensável) paridade de armas entre as partes, gerando uma vulnerabilidade jurídica que, na ambiência de um Estado Democrático de Direito em que o processo penal se rege pelo sistema acusatório, precisa ser sanada dentro dos limites e com os instrumentos postos pelo próprio ordenamento jurídico, em solução constitucionalmente consonante.

Ora, denomina a Constituição Federal a Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático, decorrendo que o processo penal pode se utilizar da instituição como esta ferramenta democrática que possibilite a paridade de armas entre os papéis de acusação, levada a termo pelo Ministério Público parte, e a defesa patrocinada pela advocacia privada, a fim de se obter o o republicano equilíbrio entre os interesses da sociedade — Ministério Público custös juris — e os interesses do indivíduo — Defensoria Pública custös vulnerabilis.

A atração dessa missão defensorial se dá muito em razão de a instituição apresentar vantagens organizacionais ao demandar[4], eliminando aquilo que Ferrajoli definiu como disparidade institucional que pode existir com a presença do magistrado de defesa como órgão complementar à defesa constituída, efetivando a paridade entre as funções públicas da produção da prova condenatória — acusação — e a função pública de refutação da prova — defesa —, como pressuposto essencial do contraditório e do direito de defesa[5] ampla, como corolários do devido e justo processo democrático.

Inicia-se uma acolhida a esta atuação da Defensoria Pública custös vulnerabilis — interveniente em prol do vulnerável jurídico em que se constitui o encarcerado, o mais pobre dos pobres — nos tribunais, tanto na esfera cível quanto penal mesmo com a parte sendo assistida por causídico privado. O desembargador Mário Parente Teófilo Neto, do Tribunal de Justiça do Ceará, confirmou a

“essencialidade da Defensoria Pública no sistema de Justiça (art. 134, CRFB/88), autorizando a oitiva oral da Defensoria, enquanto órgão interveniente (“Custös Vulnerabilis”), em sessão de julgamento de Habeas Corpus. (…) A autorização para sustentação oral da Defensoria Pública nos Tribunais – enquanto órgão interveniente –, é medida de consolidação da referida modalidade interventiva, ainda incipiente. Contudo, é mais que isso. Trata-se de instrumento de amplificação do contraditório e da ampla defesa dos acusados no Processo Penal, categoria estigmatizada e vulnerável frente ao Poder Punitivo estatal”[6].

De forma mais ampliada, recentemente a Defensoria Pública do Estado do Ceará solicitou o ingresso como custös vulnerabilis em Habeas Corpus coletivo impetrado por advogado particular junto ao STF em que se visa beneficiar um sem número de mulheres privadas de liberdade. Na manifestação, a DPCE requereu também a intimação do “Defensor Público Geral Federal, na condição de guardião dos vulneráveis — Custös Vulnerabilis – nomeadamente na esfera federal, como órgão interveniente — Defensor Público Natural junto ao STF, aplicando-se por analogia a função do Procurador Geral da República — como Custös Juris — tudo em homenagem e observância à missão de tutela dos direitos humanos e dos vulneráveis,como instrumentalidade do regime democrático, previstas no art. 134 da Constituição”. O ministro Ricardo Lewandowisk determinou a intimação do defensor público-geral federal “para que esclareça sobre seu interesse em atuar neste feito”[7].

É nessa toada que a Defensoria Pública pode atuar equilibrando a balança da defesa e da acusação, comparecendo ao processo, não como representante processual, mas como interveniente em prol da parte que se ressente da vulnerabilidade jurídica apontada. Atua a Defensoria Pública custös vulnerabilis — guardião da vulnerabilidade — ao lado do Ministério Público custös juris para a perfeita completude do sistema de Justiça penal e equilíbrio do julgamento do processo penal perante os tribunais.


[1] ESTEVES, Diogo, SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 356.
[2] ROCHA, Jorge Bheron. "O Histórico do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência Defensorial Internacional". In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 266.
[3] Diferencia-se o atuar como custös vulnerabilis daquele efetivado como amicus curiae, porque neste a Defensoria Pública atua como amigo da corte, possui restrição recursal aos embargos de declaração e necessita comprovar a repercussão social da controvérsia, enquanto que, naquela, trata-se de atuação em prol do vulnerável, sendo também cabível interpor todo e qualquer recurso (até porque, muitas vezes, a própria instituição poderia ter ajuizado a demanda em nome próprio, como nos casos de ações civis públicas ou Habeas Corpus) e, ainda, porque a demanda pode ter cunho exclusivamente individual, relacionado à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa. In www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada.
[4] CAPELLETTI, MAURO; GARTH, BRYANT. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Grace Northfleeet. Sergio Antonio Fabris Editor. 1988. Pag 21.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4ª Ed. 2014 . p. 537/538.
[6] MAIA, Maurílio Casas. emporiododireito.com.br/custos-vulnerabilis-e-sustentacao-oral-tj-admite-manifestacao-verbal-da-defensoria-interveniente-em-habeas-corpus-por-maurilio-casas-maia.
[7] STF HC 143.641

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Penal e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sócio-fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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