Um passo por vez

"Negociado sobre legislado só será possível depois do fim da unicidade sindical"

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4 de julho de 2017, 8h23

Spacca
Os juízes do Trabalho não são contra permitir que o direito negociado entre patrão e empregado prevaleça sobre o que está na lei. Mas isso é algo que só poderá ser feito depois que o Brasil acabar com o sistema de sindicato único, o que reduzirá o número de entidades e aumentará a representatividade delas, afirma o presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano.

A unicidade sindical prevista pela própria Constituição Federal proíbe que mais de um sindicato represente os trabalhadores de determinada região e categoria. No entanto, a avaliação geral é que a norma cria sindicatos inoperantes, ao extinguir a concorrência e impedir que o trabalhador escolha a entidade mais benéfica para ele. Na avaliação de Feliciano, o fim da unicidade faria com que apenas os sindicatos realmente representativos sobrevivessem, pela livre associação do profissional. E aí haveria condições paritárias de negociação.

Depois disso, seria possível que o país adotasse um modelo mais próximo dos Estados Unidos, onde a negociação entre patrões e empregados tem mais importância do que o que está previsto na legislação específica, afirma o presidente da Anamatra, em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Juiz do Trabalho da 15ª Região (Campinas), Guilherme Guimarães Feliciano foi eleito para presidir a Anamatra até 2019. No discurso de posse, criticou o modelo de gestão do Judiciário, focado em melhorias na produtividade. Ele ainda refuta a crítica de que a Justiça do Trabalho seja cara e atrapalhe o desenvolvimento das empresas. Para o magistrado, o Judiciário virou "bode expiatório" da crise econômica.

Leia a entrevista:

ConJur — Um dos principais argumentos a favor da reforma trabalhista é de que ela é necessária para reequilibrar a Justiça do Trabalho, parcial a favor do trabalhador. O que acha dessa ideia?
Guilherme Feliciano — São dois aspectos distintos. O primeiro pretende ver a Justiça do Trabalho como óbice à competitividade da empresa brasileira. É uma mística que se tenta criar, mas que não é verdadeira. Há pouco mais de oito anos, estivemos em condição econômica de quase pleno emprego no Brasil. E eram as mesmas leis trabalhistas. Era a mesma Justiça do Trabalho. Agora, estamos chegando a 14 milhões de desempregados. Vamos dizer que a culpa é da legislação trabalhista e da Justiça do Trabalho? Elas não mudaram. Isso é falácia. Neste momento em que há certamente uma crise econômica, elegem-se vilões, e não é a primeira vez que a Justiça do Trabalho é eleita como vilã. Isso aconteceu pouco antes de 2004, quando falou-se até em extinguir a Justiça do Trabalho. Mas ela voltou mais forte com a Emenda Constitucional 45.

ConJur — As leis trabalhistas não encarecem a mão de obra para o empregador?
Guilherme Feliciano —
Temos leis trabalhistas que reconhecem ou que conferem mais direitos aos trabalhadores do que, por exemplo, a legislação norte americana? Temos. Mais direitos que a legislação alemã? Não sei. São dois modelos distintos. E são duas potências econômicas. O Brasil chegou a ter um crescimento econômico próximo ao da China. E volto a dizer: tínhamos as mesmas leis trabalhistas. Precisamos, obviamente, de alguma maneira, recuperar as perdas. Mas vamos mirar em quê? Se a questão for só aumentar a lucratividade, poderiam mirar na legislação do consumo, que também é rigorosa e impõe custos elevados à indústria. Mas não vemos empresas discutindo esse custo. As empresas poderiam discutir a questão da carga tributária, que também onera a produção. Entre vários bodes expiatórios, escolheram a Justiça do Trabalho.

ConJur — A Justiça do Trabalho só foi ser implantada em 1941, durante o Estado Novo. Precisa ser atualizada?
Guilherme Feliciano — Dizem que, por isso, ela teria um perfil fascista. A CLT, na verdade, foi muito atualizada. São poucos os artigos que ainda têm a mesma redação original. Especialmente durante a ditadura militar, modificou-se muita coisa na CLT. Mais da metade da CLT já não corresponde ao texto original. No entanto, ela poderia ser modernizada. Inclusive em temas como teletrabalho, o home office e monitoramento audiovisual do trabalhador.

ConJur — A reforma não pode ser uma resposta mais extrema a uma dureza excessiva da lei? Há proibições a que se tenha menos tempo de almoço, mas saia mais cedo do trabalho.
Guilherme Feliciano — Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, metade dos pedidos apresentados à Justiça do Trabalho diz respeito a verbas rescisórias que não foram pagas. Elas correspondem ao que há de mais básico em uma relação de trabalho: quem demitir tem que pagar essas verbas. O que já é algo muito peculiar da América Latina, pois na Europa Ocidental, quase todos os países são signatários da Convenção 158 da OIT, segundo a qual ninguém pode ser demitido sem uma razão disciplinar, técnica, econômica ou financeira. No Brasil, então, não há exatamente um direito ao emprego. O trabalhador é demitido na hora que o empregador quiser.

ConJur — Mas o empregador fica obrigado a pagar acréscimos na demissão sem justa causa.
Guilherme Feliciano —
Sim, mas veja: o emprego não é um direito. O empregador a qualquer momento pode dizer “você está demitido”.

ConJur — O levantamento do CNJ diz que metade dos pedidos trata de verbas rescisórias, mas existe o conhecido "pacote". O advogado pede tudo a que o trabalhador teria direito, mas sabendo que ele já recebeu esse dinheiro. E aí o juiz é quem tem de separar o que foi pago do que não foi. Portanto, a pesquisa trabalha com estatísticas infladas. É possível fazer um estudo mais realista?
Guilherme Feliciano — É perfeitamente possível aferir isso também por procedência. Pela minha experiência, o que terá como procedente dirá respeito a horas extraordinárias, reflexos destas nas rescisórias, e férias que não foram pagas. A Justiça do Trabalho é a prática absoluta do acúmulo objetivo de pedidos. Isso é uma característica da legislação. São muitos pequenos direitos, como vale-transporte, auxílio-alimentação, convenções coletivas… Havia um advogado da minha jurisdição que apresentava o alfabeto inteiro de pedidos e depois começava: “z1”, “z2”, “z3”… A probabilidade de que, desses 30 pedidos, um seja procedente, é imensa. Então quase todas as ações vão ser procedentes em parte.

ConJur — E a questão do negociado sobre o legislado? É realmente necessário uma legislação tão detalhada? O trabalhador não é tutelado demais? O sindicato não fica sem espaço para atuar?
Guilherme Feliciano —
A visão da Anamatra é que nós poderíamos evoluir até para um modelo em que o Direito do Trabalho seja basicamente negociado e não legislado, que é basicamente o modelo norte-americano. Mas desde que tivéssemos um modelo sindical adequado, de entidades que fossem suficientemente pungentes para fazer valer na imensa maioria dos segmentos uma negociação útil, que realmente observasse o interesse dos trabalhadores.

ConJur — Com a obrigatoriedade sindical isso seria impossível?
Guilherme Feliciano —
Esse é o ponto. No Brasil, não temos ainda isso, com todo respeito às entidades sindicais. Há exceções como os sindicatos dos metalúrgicos, dos bancários e dos aeronautas, que são muito fortes, mas isso é mérito deles, não do sistema. Mas há os outros, como de trabalhadores em empresas de prestação de serviços. Alguns com os quais eu atuei na jurisdição claramente têm dificuldades. E o maior exemplo disto é que temos 17 mil sindicatos. Na Argentina, não há 100.

ConJur — E a Argentina é um bom modelo?
Guilherme Feliciano —
Penso em termos de dimensão econômica. Embora tenhamos um PIB superior ao argentino, é injustificável uma diferença tão grande em termos de números de sindicatos. Afinal a atividade econômica não é tão mais dinâmica no Brasil. A Alemanha, com uma economia fortíssima, não tem 100 sindicatos.

ConJur — A existência de tantos sindicatos impede uma reforma do tipo da que o governo quer emplacar?
Guilherme Feliciano — 
Dos nossos 17 mil sindicatos, sequer a metade alguma vez negociou alguma coisa. Isso existe porque os sindicatos são financiados, em parte, com dinheiro público, por meio da contribuição sindical obrigatória. Mas não podemos, ao mesmo tempo, fortalecer a negociação e acabar com a obrigatoriedade sindical. Dessa forma, desmancharia a capacidade de se sustentar até dos sindicatos que são fortes. E eles não teriam poder para negociar em nome de seus sindicalizados.

Primeiro é preciso fazer uma reforma sindical. Assim, teremos menos sindicatos, mas mais fortes, mais autênticos. Depois de um período de maturação, poderíamos evoluir, talvez, para um modelo de negociado sobre legislado. Mas lá adiante. O negociado sobre legislado só será possível com o fim da unicidade sindical. Primeiro vem a liberdade sindical.

ConJur — Aquela da Convenção 87 da OIT?
Guilherme Feliciano —
A que não temos como assinar, porque a Constituição não permite.

ConJur — Como assim?
Guilherme Feliciano — 
Porque liberdade sindical é, inclusive, liberdade de dizer “eu não quero me sindicalizar”. No Brasil, todo mês de março, vão descontar um dia do seu salário para o sindicato.

ConJur — A reforma trabalhista proposta pelo governo vai reduzir a litigiosidade?
Guilherme Feliciano —
Não. Vai aumentar imensamente a litigiosidade, porque traz muita coisa nova. No fim das contas, mesmo que esteja na lei que o negociado prevalece sobre o legislado e as empresas comecem a negociar e fazer acordos coletivos, o trabalhador, individualmente, quando perceber que sua condição piorou, vai se socorrer onde? No Judiciário! É claro que no primeiro momento o que vai haver é o contrário, aumento de litigiosidade. Como a Justiça do Trabalho vai interpretar tudo isso, é uma incógnita.

ConJur — Mas depois que a lei for aprovada, não cabe ao juiz segui-la?
Guilherme Feliciano — Vai ter que aplicá-la. A não ser que ele veja um vício de inconstitucionalidade. E no final das contas, essa questão chega ao Supremo.

ConJur — A terceirização está bem abordada nesta reforma?
Guilherme Feliciano —
Fica claro que o trabalhador contratado vai ser paulatinamente substituído pelo terceirizado, com rotatividade mais alta, salários menores etc. Vão transformar alguns postos de trabalho em “bicos regularizados”. Isso não é geração de empregos, isso é migração de empregos para um modelo mais precarizado. Em qualquer segmentodo comércio, se eu coloco um intermediário fica mais caro, porque o empresário também quer ter lucro. A terceirização é o único modelo em que, milagrosamente, o produto final é mais barato com mais atravessadores.

ConJur — Como isso funciona?
Guilherme Feliciano —
Sonegação de direitos sociais. É isto. É a única explicação. Esse trabalhador terceirizado, na comparação, tem menos direitos do que os contratados diretamente. Hoje há algum limite.

ConJur — Mas se isso é tão ruim, como se permite para pessoas que atuam na limpeza ou para ascensoristas, que são terceirizados até nos prédios da Justiça do Trabalho?
Guilherme Feliciano —
Casa de ferreiro, espeto de pau. Esse é um “modelo ideal” ao qual a Justiça do Trabalho chegou. O TST flexibilizou sua jurisprudência para dizer: se for atividade-meio, o que não é objeto da empresa, não há problema.

ConJur— Mas senhor concorda com a terceirização de atividade-meio?
Guilherme Feliciano —
No mundo ideal, não, mas eu aplico a Súmula 331 [do TST]. Reconheço que não estamos no mundo ideal.

ConJur — Cabe ao Judiciário ou a magistrados entrar em disputas do Legislativo como fizeram os ministros do TST, com um abaixo-assinado contra um projeto de lei.
Guilherme Feliciano —
Na verdade, o abaixo-assinado era contra o tipo de regulação que se propunha na terceirização, mas pode ser compreendido assim [como contra o projeto de lei]. Os juízes também têm cidadania. E a Anamatra é, por excelência, a associação civil que externa pelos juízes as suas visões de cidadania. É até um item estatutário da Anamatra que além dos seus óbvios objetivos corporativos, que dizem respeito à condições de trabalho, condições de remuneração etc., que tenha um olhar para as questões de cidadania, de moralidade administrativa, de direitos sociais…

Se a relação entre trabalho e capital puder ser selvagem, não precisaremos de juízes para arbitrá-la, o que seria um passo atrás para a civilização. Uma Justiça do Trabalho atuante diz respeito à cidadania social, que diz respeito a um Direito de Trabalho efetivo. Então os juízes se pronunciam sobre isso, mas não significa que isso depois vicie a sua condição para julgar. É por isso que quem fala é a Anamatra. Ela não julga ninguém. Quem faz isso é o juiz. Se são profissionais técnicos na matéria, é salutar que antecipem os problemas que eles divisam sobre aquela lei em discussão.

ConJur — O contrário, parlamentares questionando decisões judiciais, não seria estranho?
Guilherme Feliciano —
Mas eles já se manifestam. Já chegaram ao ponto de propor uma PEC pela qual poderiam, em uma votação, derrubar uma decisão do Supremo. É um absurdo completo.

ConJur—Em casos específicos falar “olha, esse caso aqui…”. Um grupo de deputados se manifestarem sobre um caso que foi julgado especificamente no Supremo com abaixo-assinado, por exemplo.
Guilherme Feliciano —
Vou dar outro exemplo: Um juiz de Matão (SP) deferiu uma liminar e depois confirmou em julgamento, em uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho, proibindo que determinada usina remunerasse seus cortadores de cana exclusivamente por produção. Imagine cortar 12 toneladas de cana com o sol a pino, em 10, 11 horas de trabalho. Isso afetou interesses econômicos e representou uma ameaça para algum segmento do agronegócio no local. Houve abaixo-assinado e, inclusive, uma nota de repúdio encabeçada por um deputado federal do interior de São Paulo contra a decisão do juiz e contra a decisão do TST que a manteve.

ConJur— E era papel do deputado ter feito isso?
Guilherme Feliciano —
Não… Acho que representou em alguma medida uma tentativa de interferir com a independência judicial. É por isso que o juiz tem vitaliciedade, irredutibilidade e inamovibilidade: ele tem que estar protegido contra quaisquer pressões externas que possam viciar seu julgamento, para decidir a partir da Constituição e das leis, de acordo com seu raciocínio.

O parlamentar não precisa ser imparcial, muito pelo contrário. Ele representa interesses. Precisa ser pressionado, o que é legítimo. Até há quem diga que o lobby deveria ser regulamento. Talvez devesse mesmo, para evitar alguns caminhos antiéticos que vemos por aí. O juiz tem uma isenção que o parlamentar, por natureza, não tem.

ConJur — O Brasil hoje sofre com a insegurança jurídica provocada pelo Judiciário. Com a Justiça do Trabalho não é diferente. Como fazer o juiz de primeira instância respeitar a jurisprudência do STF, do STJ e do TST?
Guilherme Feliciano —
O novo Código do Processo Civil caminhou nesse sentido. Eu tenho até algumas dúvidas pessoais sobre a constitucionalidade disso, mas, por meio de lei, aproximou-se muito o modelo brasileiro, que historicamente segue o modelo de Civil Law — ou seja, de direito escrito e legislado — para um modelo de Common Law, que é de precedente judicial. Então, pelo novo CPC, e o TST regulamentou isso na Instrução Normativa 139, a ideia é criar um ambiente em que o juiz de primeiro grau tenha de fato que cada vez mais se amoldar às súmulas e precedentes. Os tribunais regionais já estão produzindo súmulas regionais. A adaptação já está acontecendo.

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