A Nova Constituição

A relativização da proteção do bem de família do fiador

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2 de julho de 2017, 8h00

Spacca
Um dos bens mais preciosos na vida do indivíduo é a sua residência, que nada mais é do que “o abrigo e o amparo para si próprio e seus familiares”[1]. Uma moradia adequada é elemento essencial de uma sociedade justa, que garanta aos cidadãos as condições necessárias à sua subsistência e, mais ainda, ao seu desenvolvimento.

Em caso paradigmático, o Supremo Tribunal Federal decidiu acerca dos contornos da proteção conferida pelo ordenamento jurídico à moradia diante da colisão entre o direito à moradia e à autodeterminação do indivíduo.

Em que pese a moradia já fosse reconhecida enquanto direito fundamental nos tratados internacionais, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948[2] e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3], sua inclusão na ordem constitucional brasileira veio somente com a promulgação da Emenda 26/00. A alteração feita na redação do artigo 6º da Lei Fundamental acrescentou a moradia ao rol dos direitos a serem assegurados pelo Estado aos trabalhadores[4]. Na condição de direito fundamental, deverá ser objeto de prestações tanto negativas quanto positivas do Estado[5]. De um lado, o poder público abstém-se de promover intervenções indevidas ou de adotar medidas legais restritivas sobre o direito à moradia e, por outro, incumbe-se de prover os meios materiais e jurídicos necessários ao seu efetivo exercício.

No julgamento do Recurso Extraordinário 407.688/SP, sob a relatoria do ministro Cezar Peluso, o Supremo Tribunal Federal avaliou a higidez do artigo 3º, inciso VIII, da Lei 8.009/90[6] à luz do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda 26. Sustentou-se que a promulgação da EC tornou inconstitucional a autorização legal para executar, devido à obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, o bem imóvel onde residisse a entidade familiar do fiador.

Na forma do caput do artigo 1º da Lei 8.009[7], o imóvel residencial não responde por todo e qualquer tipo de dívida contraída por cônjuges, pais ou filhos que sejam seus proprietários e residentes. A proteção do bem único de família manifesta a adoção de um Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo que, como proposto pelo hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin[8], assegura a cada indivíduo condições materiais mínimas para perseguir as aspirações elementares do ser humano.

Ao encerrar em si conteúdo existencial atrelado diretamente à dignidade da pessoa humana[9], o legislador excluiu o bem familiar da executoriedade. Porém, estabeleceu no parágrafo terceiro do artigo 3º da Lei 8.009 um rol de hipóteses em que o imóvel será levado à hasta pública — dentre eles, por fiança dada em contrato de locação.

Por maioria, vencidos os ministros Eros Grau, Carlos Britto e Celso de Mello, decidiu o Supremo Tribunal Federal por negar provimento ao recurso interposto contra o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, não obstante a Constituição Federal de 1988 prever expressamente a moradia como direito social do trabalhador, manteve a constrição sobre bem de família em processo executivo de contrato de locação do qual o recorrente era fiador[10].

Conforme o ministro Cezar Peluso, a expropriabilidade do bem do fiador seria técnica legislativa orientada à proteção do direito social de moradia ao privilegiar o direito de uma classe ampla de pessoas, os interessados em alugar imóvel, em detrimento de uma outra classe menor, os fiadores proprietários de um só imóvel. A eventual “castração” dessa garantia romperia o equilíbrio do mercado imobiliário, que exigiria garantias ainda mais custosas, colocando em risco a eficácia do direito constitucional à moradia. Similar foi o entendimento dos ministros Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim.

O ministro Joaquim Barbosa, segundo membro do Plenário a votar pelo desprovimento do recurso extraordinário, ressaltou que a controvérsia dos autos surgia da colisão entre os princípios fundamentais do direito à moradia e da autonomia contratual. Segundo o ministro, o direito à moradia cederia diante da autonomia contratual. Ao prestar a fiança livremente, o credor “põe em risco a incolumidade de um direito fundamental social que lhe é assegurado na Constituição”.

O ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto do ministro relator aos fundamentos da multiplicidade das formas de concretização do direito à moradia e da autodeterminação das pessoas. Por sua vez, a ministra Ellen Gracie destacou no voto que “a Constituição busca assegurar um amplo acesso à moradia, o qual pressupõe as condições necessárias à sua obtenção, seja no regime de propriedade, seja no regime de locação”.

O ministro Marco Aurélio ressalvou que, se não fosse pela Lei 8.009/90, não haveria se falar na impenhorabilidade do bem de família. A circunstância de o artigo 6º da Carta referir-se a “direito à moradia” não emprestaria ao imóvel a intangibilidade, assim como não o faz em relação ao salário.

Primeiro a divergir do relator, o ministro Eros Grau iniciou seu voto com as decisões monocráticas do ministro Carlos Velloso nos RE 352.940[11] e RE 449.657[12]. Nesses precedentes, teria o Supremo decidido pelo não recebimento da Lei 8.245/91, que relativizou a impenhorabilidade do bem de família nos casos de fiança assumida em contrato de locação. Para o relator dos precedentes, o inciso VIII do artigo 3º da Lei 8.009 “feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais”. A impenhorabilidade do bem de família aplica-se a todos indistintamente, uma vez que, “onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra do direito”. Devido à natureza constitucional do direito à moradia, não poderia o fiador ser excepcionado do âmbito de proteção do artigo 6º da Constituição de 1988.

Na linha do ministro Carlos Velloso, o ministro Eros defendeu a impenhorabilidade do imóvel residencial, que instrumentalizaria a proteção do indivíduo e de sua família em relação às necessidades materiais. Não se apegando à lógica de mercado, ressaltou que o bem de família não cumpre função social, mas tão apenas a função individual de prover subsistência à entidade familiar. A eficácia do artigo 6º não poderia ser prejudicada ao argumento de ser norma programática por estar o legislador vinculado a seus preceitos.

Acompanhando a divergência, o ministro Ayres Britto aponta para a indisponibilidade do direito à moradia a partir das três oportunidades em que o texto constitucional refere-se a “moradia”: primeiro, no artigo 6º, ao enquadrar a moradia como um direito social; segundo, no inciso IV do artigo 7º, quando inclui a moradia entre as necessidades vitais básicas do trabalhador e da sua família; e, terceiro, ao tratar da competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios em políticas públicas de moradia. Com base em tais dispositivos, votou o ministro que o bem único da família não pode sofrer penhora em virtude de contrato de fiação.

O hoje decano do tribunal decidiu pelo provimento do RE. No correr do voto, abordou extensamente o direito à moradia: sua natureza social, seu reconhecimento em tratados internacional de direitos humanos e sua íntima ligação com a dignidade humana. Com apoio na doutrina de Maria Celina Bodin de Moraes[13], frisou o novo paradigma do Direito Civil-Constitucional e a necessidade de examinar as normas do ordenamento à luz dos princípios da Constituição Federal de 1988.

Assim, seria correta a interpretação trazida pelo ministro Carlos Velloso nos recursos 353.940 e 449.657, porque o inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009 conflitaria com o direito à moradia sob a égide do postulado da isonomia, no sentido de que não seria justo que o garantidor responda com o seu bem de família enquanto a mesma exigência não é feita ao locatário, tratando de forma desigual as duas figuras embora as obrigações jurídicas tenham a mesma causa. O ministro Celso de Mello então dispõe do direito a moradia como uma necessidade básica do indivíduo e, por consequência disso, deve ser impedido de penhora pelo poder público.

O saudável debate travado entre os ministros do Supremo ilustra o hard case que estava sendo discutido no julgamento do Recurso Extraordinário 407.688/AC. Em que pese nenhum direito seja absoluto, não pode uma questão de princípio ceder a argumentos de política, como entende Ronald Dworkin[14]. Os direitos individuais, tal qual o direito à moradia, deveriam sobrepor-se à argumentação consequencialista típica da política — no caso, política imobiliária. Não se pode sacrificar direitos fundamentais de um cidadão em prol de uma suposta vantagem para a maioria da comunidade, em um típico cálculo utilitarista.

No caso da penhora do bem de família dado em garantia em contrato de locação, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o indivíduo, ao assumir a condição de fiador em um contrato de locação, assume espontaneamente o risco de sofrer constrição em seu imóvel, ainda que seja aquele onde reside com sua família. Assim, deve arcar com as consequências do inadimplemento do locatário, ainda que isso signifique ver-se tolhido em seu direito fundamental à moradia.


[1] NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. São Paulo: Editora Pillares, 2008.
[2] Art. 25, §1º Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
[3] Art. 11-1 Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
[4] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 613-617.
[6] Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
[7] Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
[8] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 01.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7ª ed. rev. atual. e amp. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. p. 90.
[10] RE 407.688/AC, rel. min. Cezar Peluso, DJ 6/10/2006.
[11] RE 352.940/SP, rel. min. Carlos Velloso, DJ 9/5/2005.
[12] RE 449.657/SP, rel. min. Carlos Velloso, DJ 9/5/2005.
[13] Cf. MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil Constitucional, Revista Estado, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, 1991.
[14] DWORKIN, Ronald. The Partnership Conception of Democracy. California Law Review, v. 86, n. 3, May. 1998. p. 457.

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