Opinião

Prerrogativa do chefe do Executivo de não aplicar lei inconstitucional

Autores

  • André Luiz Maluf

    é procurador do município de Juiz de Fora advogado mestre em Direito Constitucional pela UFF ex-professor substituto de Direito Administrativo da UFF ex-subprocurador geral municipal especialista em Diritto Público Comparato pela Università di Siena pós-graduado em Direito Público e editor do Academia.Edu.

  • Renato Barcellos

    é advogado no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

27 de janeiro de 2017, 5h52

Com o fim do período eleitoral e a eleição de inúmeros novos titulares nas administrações públicas municipais, uma questão se impõe aos gestores eleitos: como lidar com a “herança legislativa” das antigas administrações? No Brasil, infelizmente, não é raro que os novos chefes do Poder Executivo se vejam diante de leis municipais inconstitucionais, muitas vezes aprovadas como o reflexo da forma mais rasa do populismo eleitoral que domina a política nacional. Destarte, uma das ferramentas mais polêmicas e delicadas que ressurge nesse cenário é a possibilidade do chefe do Poder Executivo negar aplicação à lei considerada inconstitucional mediante a expedição de Decreto Autônomo.

Inicialmente, a possibilidade do exercício de tal prerrogativa deve ser analisada sob uma perspectiva histórica. Segundo André Ramos Tavares[1] a aceitação do controle de constitucionalidade repressivo realizada pelo chefe do Poder Executivo (através da não aplicação de lei considerada inconstitucional) passou a ser firmada após a Emenda Constitucional 16/65, em razão da legitimidade exclusiva do procurador geral da República, naquele período, para provocar o controle de constitucionalidade junto ao Judiciário. Tal admissão seria uma forma de evitar que o Chefe do Poder Executivo fosse obrigado a cumprir lei inconstitucional.

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal admitiu o exercício dessa prerrogativa pelo chefe do Poder Executivo em julgado posterior à promulgação da Constituição de 1988. Segundo a corte, os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais[2]. Também o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no mesmo sentido afirmando que a negativa de ato normativo pelo Chefe do Executivo reflete um poder-dever[3].

Parcela da doutrina endossa tal posicionamento: Elival da Silva Ramos[4], Hely Lopes Meirelles[5], Luís Roberto Barroso[6] e J.J. Gomes Canotilho[7]. Gustavo Binenbojm, em obra que teve origem na sua dissertação de Mestrado[8] afirma que o Poder Executivo não está autorizado e, muito menos, obrigado a “lavar as mãos” diante de um ato normativo que se lhe afigure inconstitucional, compactuando com a violação da Lei Maior.

Vale ressaltar que a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, através do Parecer 01/2011, de lavra do procurador André Rodrigues Cyrino, aprovado pela Procuradora Geral do Estado à época, Lucia Léa Tavares, manifestou-se favoravelmente à tese ora defendida. Em apertada síntese, o documento aduz que a possibilidade do não cumprimento de lei considerada inconstitucional pelo chefe do Poder Executivo é um poder-dever que a autoridade possui. Ademais, sustenta que o Decreto autônomo do chefe do Poder executivo deve ser precedido de Parecer da Procuradoria Geral opinando pela inconstitucionalidade e Representação de Inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça como forma de espancar definitivamente a lei considerada inconstitucional e dividir o ônus com o Poder Judiciário. Também a Procuradoria Geral do Município de Teresópolis, em parecer de lavra do primeiro autor, no bojo do Processo Administrativo 27388/2016, opinou no mesmo sentido.

Aqueles que criticam o uso de tal prerrogativa[9] afirmam que tratar-se-ia de uma atuação inconstitucional que não faz mais sentido na ordem jurídica hodierna face à possibilidade de provocação do controle concentrado pelo chefe do Executivo e porquanto não existir dispositivo expresso na Constituição que permita o seu exercício.

Analisando a Constituição de 1988 de forma sistemática verificamos que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas (artigo 23, I). Quando falamos em entes federativos, tal incumbência se direciona aos agentes públicos que externam a atividade estatal. O artigo 84, XXVII aduz que compete privativamente ao Presidente da República (e por simetria aos Governadores e Prefeitos) exercer outras atribuições previstas na Constituição. Destarte, é possível extrair do texto constitucional norma que possibilita ao Chefe do Executivo negar aplicação à lei que considere inconstitucional.

Ricardo Perlingeiro[10] vai além afirmando que não há apenas um dever de controle de constitucionalidade pelo administrador, mas, inclusive, de convencionalidade. Além disso, o autor cita como referência o parágrafo único do artigo 2º do Código Modelo de Processos Administrativos — Judicial e Extrajudicial — para Ibero-América que expressamente afirma que a autoridade administrativa poderá deixar de cumprir a lei ou o ato que considerar inconstitucional ou anticonvencional, representando ao órgão competente para a declaração de inconstitucionalidade ou de anticonvencionalidade.

Dois casos recentes merecem destaque. No município de Macaé (RJ) o prefeito editou o Decreto 175/2015 suspendendo o pagamento de determinados benefícios a servidores em razão de considerá-los inconstitucionais. O sindicato da categoria daquele município se insurgiu contra o ato normativo impetrando Mandado de Segurança. A liminar foi indeferida (posteriormente concedida mediante agravo de instrumento) e a segurança denegada em julgamento de mérito em 11/7/2016[11]. O magistrado Josue de Matos Ferreira sustentou em sua fundamentação[12] que a prerrogativa do chefe do Executivo negar cumprimento à lei ou qualquer ato que considere inconstitucional encontra respaldo doutrinário, não tendo sido revogada pelo advento da Constituição. A base que respalda o exercício daquela prerrogativa é a supremacia constitucional, de modo que, segundo o seu entendimento, aplicar lei inconstitucional significa negar aplicação à Constituição.

Também no município de Teresópolis (RJ) o prefeito editou o Decreto 4.832/2016 negando aplicação à lei municipal 3.474/2016 por entender que há violação da separação dos Poderes, da competência privativa da União, do princípio da juridicidade e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na ADI 1.923-DF.

Antes de finalizar esse ponto, sob a ótica do processo legislativo, três observações merecem destaque. Primeiramente, caso a lei seja sancionada pelo chefe do Executivo sem vetos, obviamente não poderá posteriormente negar aplicação a ela, já que o ordenamento jurídico considera abuso de direito o comportamento contraditório (venire contra factum proprio) e a supressio.

Em segundo lugar, notadamente, se o chefe do Executivo que sancionou a lei sem vetos tiver deixado o cargo e outro sucedê-lo, entendendo o segundo pela inconstitucionalidade, não há óbice para que o mesmo expeça decreto de não aplicação da lei ou ato normativo considerado inconstitucional.

Finalmente, e de forma análoga, no caso de sanção tácita, poder-se-ia expedir decreto de não aplicação da lei, eis que não houve manifestação expressa sobre tal ponto, e, sendo a inconstitucionalidade uma questão de ordem pública que é essencial para a coerência e integridade do ordenamento, não há óbice para o exercício de tal poder-dever nessa hipótese.

A fim de dirimir qualquer dúvida sobre a legalidade do exercício de tal prerrogativa, cumpre esclarecer que a negativa de aplicação de lei considerada inconstitucional não configura crime do chefe do Poder Executivo. O Decreto-Lei 201/67 foi recepcionado pela Constituição de 1988, como Lei ordinária e traz no seu artigo 1º crimes comuns (de caráter pessoal) aos quais o prefeito está sujeito a julgamento pelo Judiciário. Todos eles exigem a presença do elemento subjetivo doloso para que se configurem. O inciso XIV do artigo referido aduz que a conduta de negar execução à lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente é punível com a pena de detenção, de três meses a três anos.

Em obra[13] sobre o tema Giovani da Silva Corralo, aduz que o chefe do Executivo não incorre no tipo do artigo 1º, XIV, quando a lei for manifestamente inconstitucional, de modo que se trata de exceção à incidência daquele tipo penal. Neste sentido, estando fundamentado o decreto que negue aplicação à lei considerada inconstitucional e desde que haja comunicação ao órgão legislativo competente, não há que se falar em prática de crime por ausência do elemento subjetivo dolo, o que claramente exclui a tipicidade. Ademais, em razão de estarmos diante do exercício regular de um direito (conforme extraído das regras constitucionais, da doutrina e dos julgamentos permissivos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça), igualmente é possível afastar a ocorrência de crime por ausência de ilicitude.

Para além das teorias dos diálogos constitucionais[14], do constitucionalismo difuso[15] e do constitucionalismo administrativo[16] a prerrogativa do chefe do Poder Executivo de negar aplicação à lei que considere inconstitucional, segundo a sua interpretação — no exercício de verdadeiro controle de constitucionalidade —, significa a abertura para o constitucionalismo executivo[17], inclusive como método de efetividade de direitos fundamentais. Basta pensar na hipótese onde a Câmara Municipal derruba o veto jurídico do chefe do Poder Executivo e aprova projeto de lei que, além de violar a sua competência privativa, atinge o núcleo essencial de um direito constitucional dos servidores públicos. Nesse caso o prefeito municipal, ao negar aplicação àquela lei inconstitucional via Decreto Autônomo, e determinar que os seus órgãos subordinados sigam esse entendimento, possibilita que aqueles servidores tenham seu direito constitucional garantido, além de reequilibrar a balança entre os Poderes. Como a teoria dos diálogos constitucionais prevê que o sentido da Constituição passa pelo Judiciário, pelo Legislativo e pela sociedade civil, repreendendo qualquer forma de interpretação unilateral, nada mais coerente que o Executivo também participe ativamente desse processo, sobretudo em razão da ausência de conhecimento técnico e burocrático dos demais agentes políticos em searas delicadas como saúde e orçamento. Privilegia-se, portanto, a sua capacidade institucional específica.

A prerrogativa vertida no presente artigo claramente abre portas para um diálogo institucional entre os três Poderes face à necessidade de divisão do ônus entre o Judiciário e Executivo além da necessária comunicação ao Legislativo. Protege-se a Constituição diante da competência comum dos três Poderes em zelar pela sua guarda (artigo 23, I). Criar-se-á uma triangulação interpretativa, não havendo que se falar em conduta autoritária ou anarquista do Executivo em face do Legislativo, mas, sim, em atitude compatível com o Estado de Direito que tem a Constituição no seu ápice, eis que toda a interpretação e aplicação de qualquer norma ou ato deve necessariamente passar pelo seu filtro.

Outrossim, em virtude da incidência dos mecanismos de checks and balances, o decreto poderá ser submetido à apreciação do Judiciário, mediante Representação de Inconstitucionalidade no tribunal, não podendo ser olvidado que a própria lei que deu ensejo ao Decreto Autônomo deverá estar sub judice junto ao mesmo tribunal antes da expedição do referido ato, o que, naturalmente, atrairá o julgamento por dependência da segunda Representação.

Com a nova composição das câmaras municipais e das prefeituras após as eleições de 2016, a prerrogativa ora analisada certamente ganhará corpo junto aos executivos municipais, de maneira que os gestores e as procuradorias locais devem estar atentos para as consequências políticas e jurídicas do seu exercício. Revela-se imprescindível que sejam observados os requisitos específicos para que a expedição do Decreto Autônomo siga os trâmites legais e as formalidades devidas, sob pena de banalizar e prejudicar relevante ferramenta institucional dialógica que garante a supremacia da Constituição e dos direitos fundamentais.  


[1] TAVARES, André Ramos. O tratamento da Lei Inconstitucional pelo Poder Executivo. Boletim do Legislativo, v. 40, p. 460-468, 2008.

[2] STF, ADI MC 221/DF, j. 29.03.90, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves.

[3] STJ – REsp: 23121 GO 1992/0013460-2, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de Julgamento: 06/10/1993,  T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 08.11.1993, vol. 55 p. 152

[4] RAMOS, Elival da Silva. A Inconstitucionalidade das Leis: vício e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 237.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 538.

[6] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 70-71.

[7] CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 417-418.

[8] BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira – Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 276.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional, São Paulo : Saraiva, 1996. p. 133.

[10] The Latin-American countries’ incorporation of the doctrine of diffuse conventionality control established by the I/A Court H.R. is currently the key to the fulfillment of the administrative authorities’ duty to protect fundamental rights, although, to do so, it is necessary to overcome unconstitutional laws. The duty of conventionality proposed by the I/A Court H.R. has four characteristics: it is exercised (a) ex officio; (b) in compliance with the interpretation (of the provisions of the relevant conventions) as formulated by the I/A Court H.R., i.e., it is subject to a “forced adherence to the Inter-American Court’s interpretations;”148 (c) by authorities who exercise such ‘control’ independently of their hierarchical status, rank, amount in dispute, quantity or subject-matter jurisdiction assigned to them by domestic law; and (d) by administrative authorities and judges even if they do not have jurisdiction for constitutionality control, which does not necessarily imply opting to apply the conventional provisions or case law while ceasing to enforce the national laws, rather it means, first and foremost, trying to harmonize the provisions of national law with those of the Convention, by means of a ‘conventional interpretation’ of the national law. Cf. BRICS LAW JOURNAL Volume III (2016) Issue 2.

[11] Em 15.01.2017, encontra-se pendente de julgamento pelo MM. Juízo da 2ª Vara Cível de Macaé a admissibilidade do Recurso de Apelação em Mandado de Segurança impetrado pelo Sindicato autor.

[12] “a abalizada doutrina nacional, com substancioso apoio teórico e jurisprudencial, vem reiteradamente afirmando a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo se negar a cumprir lei ou qualquer outro ato emanado do Poder Legislativo que afronte a Constituição Federal, à qual jurou cumprimento quando de sua posse no cargo. (…) sem embargo da razoabilidade do argumento adverso, o conhecimento tradicional acerca da possibilidade de o Estado descumprir lei que fundadamente considere inconstitucional não foi superado, como se colhe na jurisprudência e na doutrina que prevaleceram. (…) Mas o principal fundamento continua a ser o mesmo que legitimava tal linha de ação sob as Cartas anteriores: o da supremacia constitucional. Aplicar a lei inconstitucional é negar aplicação à Constituição. (…) até mesmo o particular pode recusar cumprimento à lei que considere inconstitucional, sujeitando-se a defender sua convicção caso venha a ser demandado. Com mais razão deverá poder fazê-lo o chefe de um Poder”. TJRJ, MS nº 0012999-71.2015.8.19.0028, 2ª Vara Cível de Macaé, Juiz Josue de Matos Ferreira, j.: 11.07.2016, DJe: 27.09.2016.

[13] CORRALO, Giovani da Silva. Responsabilidade de prefeitos e vereadores: comentários ao Decreto-Lei n. 201/67. São Paulo, Atlas, 2015, p. 39.

[14] A teoria dos diálogos busca formas de diálogos institucionais sobre a melhor forma de resolver a questão constitucional controvertida, de modo que cada Poder contribua com sua capacidade institucional específica. Desta forma, segundo lições de Rodrigo Brandão,[14] o sentido futuro da Constituição deve se dar através de um debate junto à sociedade civil e às instituições políticas, através do modelo dialógico, onde hajam múltiplos pontos de acesso, seja pelo Legislativo ou  Judiciário, para tutelar direitos constitucionais, reduzindo a atuação unilateral de qualquer poder. Cf. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial v. Diálogos Constitucionais. 2012, p. 325-328.

[15] Sobre o Constitucionalismo Difuso, que prega uma abertura da interpretação constitucional à sociedade civil, à academia e outras instituições. V. ALVIM, Juliana. O Constitucionalismo Difuso e seus Fundamentos, p. 400. In. Jurisdição Constitucional e Política. Daniel Sarmento (Org), Forense 2015.

[16] Segundo Metzger, o Constitucionalismo administrativo está ligado ao potencial da administração pública, sobretudo das agências administrativas nos Estados Unidos, de alterar os sentidos da Constituição. Conforme ressalta Karen M. Tani, a administração se engaja na interpretação da Constituição a partir de entendimentos da Suprema Corte. Já segundo uma corrente mais avançada, a administração poderia atuar no vácuo das interpretações da Suprema Corte, ou até mesmo contrariando o seu entendimento. Cf. BAPTISTA, Patrícia. CAPPECHI, Daniel. Se o Direito administrativo fica o Direito constitucional não passa: perspectivas do direito público contemporâneo sobre uma velha questão. Revista de Direito da Cidade. Vol. 8, n 4, 2016.

[17] O constitucionalismo executivo busca dar força à atividade interpretativa da Constituição que é feita pelo Chefe do Poder Executivo. Ademais, visa abrir portas para o exercício interpretativo fora dos Tribunais e das Casas Legislativas, em razão de muitas vezes faltar conhecimento técnico e burocrático dos demais agentes políticos em searas essenciais como gestão, saúde e orçamento. 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!