Opinião

Afinal, qual é o entendimento do STF sobre controle preventivo?

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26 de janeiro de 2017, 5h36

Confirmando a máxima de que o Brasil é o paraíso dos jornalistas e o inferno dos politólogos, uma nova decisão monocrática de ministro do Supremo Tribunal Federal causou abalos na já combalida relação entre Poderes Legislativo e Judiciário, à véspera do feriado forense do nada fácil ano de 2016. Nem dez dias após o ministro Marco Aurélio conceder medida liminar para afastar Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal, o ministro Luiz Fux determinou o retorno do Projeto de Lei 4.850/16 à Câmara dos Deputados, onde deveria tramitar segundo o rito estabelecido para os projetos de iniciativa popular.

Ao justificar a concessão de liminar no Mandado de Segurança 34.530/DF, o ministro Luiz Fux declarou não saber como decisão de tal natureza poderia gerar crise entre os poderes, “na medida em que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que o Judiciário pode interferir a pedido do parlamentar, toda vez que ele promova uma ação demonstrando que o processo legislativo não está correto” [1].

Em seu voto, o ministro justificou a concessão da medida liminar na “multiplicidade de vícios que, primo ictu oculi, são observáveis no processo legislativo”: a apropriação de projeto de lei de iniciativa popular por parlamentar, a desfiguração da essência do anteprojeto e a distorção da essência do instituto constitucional da lei de iniciativa popular. Após fundamentar-se tanto em dispositivos regimentais quanto constitucionais, o ministro Fux socorreu-se do precedente do Plenário na ADI 5.125, cujo acórdão foi relatado pelo ministro Edson Fachin. Com base no princípio democrático e devido processo legislativo, decidiu o tribunal ser prática vedada a inserção de matéria estranha ao conteúdo da medida provisória durante a conversão em lei.

De fato, a jurisprudência do Supremo não diverge em torno da admissibilidade de mandado de segurança na proteção do direito líquido e certo de parlamentar em não participar de processo legislativo vedado per se pela Constituição Federal. Desde o julgamento do MS 20.257/DF, impetrado pelos então senadores Itamar Franco e Antonio Canale contra o trâmite da PEC 51/80 e 52/80, o tribunal entendeu ser o writ instrumento jurídico hábil para provocar o exame judicial preventivo do processo legislativo.

O exercício do mandato é livre, mas desde que cumpridos os preceitos constitucionais [2]. No parlamento plural e deliberativo desenhado pela Constituição Federal de 1988, existem limites formais, materiais e circunstanciais que condicionam todo o procedimento legislativo, com o fito de “orientar a negociação em torno da condição das políticas públicas e realizar, enfim, a interseção entre os planos do ser e do dever-ser, concretizando os ideais e aspirações que dão ensejo à formação do Estado” [3], pelo que a sua observância constitui direito líquido e certo do parlamentar apto a ser tutelado pelo poder Judiciário.

Ainda na ocasião do julgamento do MS 20.257, o ministro Moreira Alves discorreu em seu voto vista que, tipicamente, o trâmite de projeto de lei e de proposta de emenda à Constituição não poderia ser suspensa sob o argumento de que o conteúdo viola uma norma constitucional. Apenas haveria violação na hipótese da posterior aprovação da proposta ou do projeto — antes disso, o Poder Legislativo estaria a exercitar licitamente os poderes constitucionais referentes ao processamento da lei em geral.

Entretanto, a proibição então imposta pelo parágrafo primeiro do artigo 47 da Constituição à época vigente dirigia-se à própria apresentação e deliberação da proposta, tal qual o parágrafo quarto do artigo 64 da Constituição Federal de 1988. Haveria a inconstitucionalidade em tese “porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição” — como foi o entendimento da maioria do Tribunal no MS 32.033/DF: o controle preventivo será cabível tão somente diante de afronta à cláusula pétrea.

Muito embora haja determinado consenso sobre os parâmetros do controle preventivo, não há não há qualquer precedente do Plenário do Tribunal em que cassado o trâmite de PEC, PLC ou PL. Em todas as ocasiões em que chamado a analisar a compatibilidade de propostas ou de projetos à luz das cláusulas pétreas — quanto mais dos dispositivos de regimentos internos —, o Plenário não exerceu o controle preventivo [4].

Assim fez quando derrubou a medida liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes no MS 32.033, também proferida em meio a uma crise entre Poderes Legislativo e Judiciário. Ali, impugnava-se o trâmite do PLC 14/13 ao argumento de que limitava direitos fundamentais dos grupos minoritários e estabelecia desigualdades entre os partidos e parlamentares ao vedar a transferência de horário de propaganda e recursos do fundo partidário se houvesse migração partidária ao longo da legislatura. Nessa ocasião, prevaleceu o entendimento de que não havia violação a cláusula pétrea, mas somente o desacordo do parlamentar com a proposta.

Embora os ministros convirjam sobre as cláusulas pétreas, há no Supremo divergência quanto à sindicabilidade do regimento das casas legislativas. Para a corrente majoritária, cujo cerne é formado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Carmem Lúcia — dele também participava o ministro Teori Zavascki —, controvérsias envolvendo a interpretação e aplicação dos regimentos deveriam ser resolvidas no âmbito das respectivas casas, ainda que levantadas possíveis violações à Constituição Federal de 1988. Já os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux colocam-se reiteradamente contrários à tradicional doutrina de atos interna corporis, aferindo a constitucionalidade dos trabalhos legislativos a partir do respeito às normas regimentais.

Ainda que sob o aspecto da compatibilidade frente às cláusulas pétreas, há forte resistência na jurisprudência do Supremo em exercer o controle preventivo, o que pode ser explicado não só pela separação dos poderes, mas também pela natural desacordo em torno do real significado das cláusulas pétreas, cuja redação aberta convida as mais diferentes interpretações.

Se prevalecer o entendimento que vem sendo adotado pela Corte desde o MS 20.257/DF, a medida liminar deverá ser revogada pelo colegiado. A decisão provisória no MS 34.530/DF não é reflexo da jurisprudência do Supremo no controle preventivo, mas sintoma da excessiva monocratização do Supremo. Como reconheceu o próprio ministro Luís Roberto Barroso, ao qualificar como justa a crítica à “monocratização qualitativa” da Corte [5], ações isoladas dos ministros em questões politicamente impactantes expõem a imagem do Tribunal. Mais do que isso, decisões desse calibre expõem as disfuncionalidades internas provocadas por aquela que ainda é uma de suas maiores características como instituição: a falta de unidade enquanto tal.


[1] RAMALHO, Renan. Fux diz que suspensão de pacote anticorrupção não é motivo para crise. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/fux-diz-que-suspensao-de-pacote-anticorrupcao-nao-e-motivo-para-crise.ghtml>. Acesso em 16 de dezembro de 2017.

[2] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 74.

[3] CARVALHO, Cristiano Viveiros de. Controle judicial e processo legislativo: a observância dos regimentos internos das Casas Legislativas como garantia do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 64.

[4] Não está compreendida aqui a decisão liminar proferida pelo Ministro Roberto Barroso no MS 33.889/DF, uma vez que a controvérsia nesses autos não gira em torno de projeto de lei ou proposta de emenda à constituição contrário às cláusulas pétreas, mas sim de contrabando legislativo. Cuida-se, portanto, de preservar a autoridade da decisão da Corte na ADI 5.125.

[5] BARROSO, Luís Roberto. O Supremo Tribunal Federal em 2016: o ano que custou a acabar. Disponível em: <http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/retrospectiva-2016-barroso-parte-3.pdf>. Acesso em 24 de janeiro de 2017.

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