Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo russo (parte 52)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

25 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Retoma-se nesta quarta-feira (25/1) a série sobre a formação dos juristas em alguns países do mundo, cuja última coluna foi dedicada à continuidade do modelo russo.

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1. Problemas comuns a um antigo império
Houve um tempo em que a União Soviética, Estado sucedido pela Federação Russa e por Ucrânia, Belarus, Letônia, Estônia e Lituânia, além das repúblicas do Cáucaso e da Ásia Central, foi jocosamente chamada de “Alto Volta com mísseis”. Em 1984, esse país africano teve seu nome alterado para Burkina Faso, embora a frase tenha continuado a servir: os soviéticos tinham um imenso território empobrecido economicamente, mas portavam mísseis nucleares. Na era pós-comunista, os russos vivem as contingências de um antigo império (herdado da dinastia Romanov e reerguido pelos czares soviéticos) que ocupa posição central na arena política contemporânea, mas segue dependente da economia primária, embora com um enorme desenvolvimento do setor terciário.

Em comum com o Brasil, pode-se também indicar os problemas com a educação jurídica: formação de má qualidade, excesso de cursos, escolas privadas com objetivos preponderantemente econômicos e remotamente voltados para uma educação jurídica de excelência, e discussões sobre a necessidade de se redirecionar a educação superior para cursos técnicos e científicos[1]. Muitas vezes, os pais estimulam os filhos a cursar Direito para que se ocupem com “alguma coisa”, embora o sonho de se tornar advogado após a graduação, na prática, termine por ser substituído por outros destinos, como ser dono de uma lojinha ou abrir uma academia de musculação[2].

As faculdades privadas, por sua vez, terminam sendo a única chance de alguém obter uma graduação, especialmente em Direito. O preço das anuidades termina por definir as escolhas de muitos estudantes[3]. Sob outro aspecto, o diploma de bacharel pode servir para uma colocação futura no serviço público[4].

Outra crítica comum na formação jurídica russa é relativa às deficiências de formação prática. Isso gera um outro problema: o aluno não sai preparado para conhecer a realidade, muitas vezes, pouco romântica de um aparelho judiciário e policial com problemas de probidade, lento e pouco transparente[5].

Essa visão negativa da educação jurídica russa, no entanto, deve ser contemporizada com alguns avanços. O primeiro está em uma representação social mais positiva da carreira jurídica, o que já se sentia nos últimos anos da era soviética e é algo que se observa também na China, como destacado em coluna sobre a formação jurídica chinesa. A virada das profissões técnicas para o Direito resulta da mudança de eixo da economia e da crescente importância do Direito na estrutura estatal, em substituição à era dos engenheiros e dos militares. Uma prova disso está no fato de que tanto Vladimir Vladimirovitch Putin quanto Dmitri Anatolievitch Medvedev, os presidentes russos pós-Yeltsin, sejam doutores em Direito e, no caso do último, professor universitário, com especialização em Direito Civil e Direito Romano. 

No final da era soviética, em 1986, havia 45 faculdades de Direito vinculadas a universidades e quatro institutos de formação jurídica, sendo 24 faculdades e dois institutos no território da federação russa.  Não é sem razão que, nos últimos 20 anos, contados de 2015, houve um crescimento de 50 vezes no número de faculdades e cursos de Direito. Em 2015, havia 468 faculdades de Direito na Rússia[6]. Haveria, com isso, um maior conhecimento do Direito, de valores relacionados ao devido processo legal e à inserção da Rússia em associações e grupos jurídicos internacionais[7].

2. Estrutura e matrizes curriculares do curso jurídico na Rússia
Na União Soviética, o curso de Direito tinha duração de cinco anos, com formação especialmente voltada para a futura área de atuação do profissional, em geral vinculada a funções nos ministérios da Defesa e do Interior, bem como no antigo Comitê de Segurança do Estado, o célebre KGB (Komitet Gosudarstvennoj Bezopasnosti)[8], órgão no qual Vladmir Putin encerrou sua carreira na patente de coronel.  

Atualmente, a formação em Direito na Rússia é muito similar aos padrões europeus em termos de carga horária, tempo de duração do curso e divisão em especialidades. O aluno escolhe áreas de especialização, a partir do quarto ano, em Direito Penal, Direito Processual Civil, Direito Privado, Direito Internacional, Direito Constitucional e Teoria do Direito. A adoção dos padrões de Bolonha fez com que, em algumas faculdades, se combinasse um período de graduação de três a quatro anos, seguido de um a dois anos de um “mestrado de Bolonha”, que equivale a uma especialização no Brasil. A graduação tradicional, porém, dura cinco anos.

Os anos letivos iniciam-se em setembro e terminam em junho do ano seguinte. Na graduação, as aulas são em russo, com poucas disciplinas ofertadas em outros idiomas.

As faculdades dividem-se internamente por departamentos, cuja liderança cabe a professores catedráticos ou professores associados. Em muitas instituições estatais, persiste uma tradição de se formarem laboratórios, como de Informática Jurídica, Sociologia Jurídica, Ciências Política e Direito Comparado. Copia-se, assim, a estética dos cursos de exatas, que, apesar de tudo, ainda gozam de uma representação social muito positiva na Rússia. Na verdade, esses laboratórios são equivalentes a núcleos ou centros de pesquisa.

As matrizes curriculares são definidas pelas instituições. A Faculdade de Direito da Universidade Estatal de Moscou “Lomonosov”, uma das mais antigas do país, por exemplo, tem sua matriz assim conformada: 1) Teoria do Direito e Teoria do Estado; 2) História dos Estudos Políticos e Jurídicos; 3) História do Direito russo; 4) História do Direito estrangeiro; 5) Direito Constitucional; 6) Direito Administrativo; 7) Direito Municipal; 8) Direito Financeiro; 9) Direito Civil; 10) Código Civil; 11) Direito Penal; 12) Direito Processual Penal; 13) Criminalística; 14) Direito Ambiental; 15) Direito da Terra; 16) Direito do Trabalho; 17) Direito Internacional; 18) Direito do Estado; 19) Direito do Estado estrangeiro; 20) Criminologia; 21) Cibernética Jurídica; 22) Direito Societário; 23) Direito Comercial; 24) Direito de Família e outras disciplinas. O curso também prevê matérias como Latim, idiomas estrangeiros, Lógica, Ciências Sociais e Humanas. As áreas de especialização são em Direito do Estado, Direito Civil e Direito Penal[9].

3. Melhores faculdades de Direito da federação russa
As faculdades russas não integram os rankings globais das melhores instituições internacionais, como o da consultoria QS Quacquarelli Symonds[10] ou do Times[11].

A consultoria QS Quacquarelli Symonds, no entanto, possui um ranking específico para os países integrantes do acrônimo Brics (Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), no qual as universidades russas aparecem, embora não haja classificação por faculdades de Direito. Na lista relativa a 2016, as cinco primeiras universidades são chinesas. Em sétimo lugar, encontra-se a Universidade Estatal de Moscou “Lomonosov”, já referida nesta coluna. Na décima colocação, está a Universidade de São Paulo. As demais instituições russas são a Universidade Estatal de São Petersburgo e a Universidade Estatal de Novosibirsk, empatadas em vigésimo lugar. A Universidade Técnica Estatal de Moscou “Bauman” está em trigésima oitava colocação[12].  

Considerando-se a classificação geral das universidades de 2016, a Universidade Estatal de Moscou “Lomonosov ocupa o 108º lugar no mundo, de acordo com a consultoria QS Quacquarelli Symonds. Nesse mesmo ranking, a Universidade Estatal de São Petersburgo está em 258º posição[13].

Seguindo essa ordem de precedência, convém examinar as faculdades de Direito da Universidade Estatal de Moscou “Lomonosov” e da Universidade Estatal de São Petersburgo.

A primeira dessas duas instituições tem sede em Moscou e foi fundada em 1755 por decreto da imperatriz Isabel, por iniciativa de Mikhail Vasilyevich Lomonosov, de quem recebeu o nome. Dentre seus egressos mais famosos está Mikhail Sergeyevich Gorbachev, último presidente da União Soviética, graduado em Direito no ano de 1955. Ela possui 61 professores em último nível de carreira e 108 professores assistentes, dividindo-se em 16 departamentos[14].

Embora seja uma instituição pública, os estudantes pagam anuidades no valor de 385 mil rublos (equivalentes a R$ 20.520,50 ou a US$ 6.422,89), durante os quatro anos do curso de graduação. Os cursos de “mestrado” (com correspondência discutível ao nosso mestrado), com duração de dois anos, preveem pagamento de anuidades no valor de 340 mil rublos (equivalentes a R$ 18.122 ou a US$ 5.672,16)[15].   

A Faculdade de Direito da Universidade Estatal de São Petersburgo é também uma instituição pública, fundada em 1724 pelo czar Pedro, o Grande. O líder da Revolução de Fevereiro de 1917, Alexander Fyódorovich Kérensky, posteriormente primeiro-ministro até a Revolução de Outubro, foi um dos alunos dessa faculdade. Seu sucessor, o presidente do conselho dos Comissários do Povo da União Soviética e pai da Revolução de Outubro 1917, Vladimir Ilyich Ulyanov, também estudou na faculdade de São Petersburgo. Ígor Fiódorovitch Stravinsky, compositor e pianista russo, foi outro aluno célebre de São Petersburgo, além de Putin e Medvedev[16].

Sua divisão administrativa é por departamentos, no total de dez, compreendendo áreas como Direito do Estado e Administrativo, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Comercial, Direito Internacional, Direito Ambiental, Teoria e História do Direito e do Estado, Direito do Trabalho, Direito Penal e Direito Processual Penal e Criminalística[17].       

Os valores das anuidades de graduação podem chegar a 337 mil rublos (equivalentes a R$ 17.995,80 ou a US$ 5.643,62)[18].

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O estudo do modelo russo prosseguirá na próxima coluna.


[1] SHEPELEVA, O.; NOVIKOVA, A. The quality of legal education in Russia: The stereotypes and the real problems. Russian Law Journal. v.2, n1., p.106-120, 2014. p.107-18.
[2] SHEPELEVA, O.; NOVIKOVA, A. Op. cit. p.108-109.
[3] SHEPELEVA, O.; NOVIKOVA, A. Op. cit. p.109.
[4] SHEPELEVA, O.; NOVIKOVA, A. Op. cit. p.111.
[5] SHEPELEVA, O.; NOVIKOVA, A. Op. cit. p.115.
[6] SMORGUNOVA, Valentina. Legal education in modern russian universities. Disponível em: http://www.ialsnet.org/wordpress/wp-content/uploads/2015/08/Smorgunova.pdf. Acesso em 19/1/2017.
[7] SMORGUNOVA, Valentina. Op. cit. loc. cit.
[8] SMORGUNOVA, Valentina. Op. cit. loc. cit.
[9]  Informações extraídas de: http://www.msu.ru/en/info/struct/depts/law.html. Acesso em 19/1/2017.
[10] Disponível em: http://www.topuniversities.com/university-rankings/university-subject-rankings/2015/law-legal-studies. Acesso em 19/10/2017.
[11] Disponível em: https://www.timeshighereducation.com/world-university-rankings/2017/subject-ranking/social-sciences#!/page/0/length/25/sort_by/rank/sort_order/asc/cols/stats. Acesso em 20/1/2017.
[12] Disponível em: http://www.topuniversities.com/university-rankings/brics-rankings/2016. Acesso em 20/1/2017.
[13] Disponível em: http://www.topuniversities.com/university-rankings/world-university-rankings/2016. Acesso em 20/1/2017.
[14] Disponível em: http://www.msu.ru/en/admissions/general-programs/faculty-of-law.php. Acesso em 20/1/2017.
[15] Disponível em: http://www.msu.ru/en/admissions/general-programs/faculty-of-law.php. Acesso em 20/1/2017.
[16] Disponível em: http://law.spbu.ru/en/AboutFaculty/History.aspx. Acesso em 20/1/2017.
[17] Disponível em: http://law.spbu.ru/en/AboutFaculty/Departments.aspx. Acesso em 20/1/2017.
[18] Disponível em: http://english.spbu.ru/education-at-spbu/master-in-english/57-eng/application-procedure/644-dates-and-fees. Acesso em 20/1/2017.

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