Direito Civil Atual

Ofensas nas redes sociais e as reações difusas na internet (parte 2)

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23 de janeiro de 2017, 7h00

Na coluna da semana passada, vimos que, a par das reações instantâneas e difusas da própria internet ao que é nela inserido, o Judiciário tem sido bastante procurado para outros tipos de resposta (como a reparação pecuniária) a conteúdos considerados ofensivos. Em regra, as indenizações não alcançam patamares elevados, seja porque deparar-se com situações do gênero seja visto como parte do cotidiano, seja porque os próprios autores da ação já retorquiram o suposto ofensor, de tal maneira que o entrevero se deu e resolveu no próprio campo do discurso. De todo modo, esse tipo de demanda, quando chega ao Judiciário, envolve normalmente um autor e um réu, até pelas dificuldades processuais que o alargamento do polo passivo causa.

O convite que esta segunda parte do artigo faz é para a reflexão sobre o que a reação difusa da internet (isto é, as ofensas disparadas por uma grande quantidade de indivíduos) pode significar do ponto de vista jurídico e mesmo sociológico.

A reação da internet
Há situações em que a reação institucional (especialmente por meio do Poder Judiciário), em vez de desnecessária, parece, aos olhos dos usuários da internet, insuficiente. Às vezes, isso tem um quê de reparação in natura (especialmente se ocorre em forma de ofensa desagradável ao ofensor, tal como no bordão “Quem fala o que quer, ouve o que não quer”, ou de exigência de pedidos de desculpas formais e expressos). Noutras vezes, a internet parece querer saborear uma espécie de vingança com a execração pública de quem sai da linha – algo que Jon Ronson compara à atualização do pelourinho.

Um exemplo de grande repercussão que vem à memória é o da paulistana Mayara Petruso, que, em 2010, postou comentários ofensivos a nordestinos e foi acionada pelo Ministério Público Federal, tendo sido afinal condenada a pena privativa de liberdade, posteriormente convertida em prestação de serviços comunitários e multa. Ao lado dessa reação institucional, porém, ela foi demitida do escritório de advocacia em que trabalhava, trancou o curso de direito e, ao que se sabia em 2012, trabalhava numa empresa de telemarketing[1].

Reações da ordem social, como as demissões de Mayara e Justine Sacco (cuja história abriu o artigo da semana passada) e a desaprovação pública de seus comentários, são praticamente inevitáveis e incontroláveis do ponto de vista sociológico. Em regra não atingem o Judiciário, a não ser que se desçam aos abismos do discurso do ódio ou se demonstre desrespeito à legislação trabalhista. Não se pode impedir a esfera virtual de manifestar descontentamento, até de modo veemente e mal-educado. Até porque a responsabilidade pelos próprios atos é decorrência natural da liberdade de fazê-los. Mas é difícil concordar com ameaças de morte e de estupro, como Justine sofreu.

É relevante que, tanto no caso de Justine como no de Mayara, que a manifestação que gerou revolta virtual tenha sido deliberadamente compartilhada por elas em redes sociais de grande magnitude, aparentemente sem a ponderação do risco envolvido. Resta patente a dificuldade da sociedade contemporânea em separar o público do privado[2], em refletir sobre a adequação do comentário ou atitude não mais dentro de um contexto de um grupo reduzido (em que nos permitimos um comportamento mais informal), mas a um conjunto indiferenciado de pessoas, cujas suscetibilidades devem ser de algum modo consideradas. Nas palavras de Ken Willis, “não somos dois seres completamente separados, um privado, um público”, mas somos capazes “de distinguir claramente entre público e privado e exibir um nível tolerável de competência social”[3].

De um lado, a repulsa a atitudes e comentários preconceituosos é salutar e acompanha o reconhecimento de direitos de grupos antes inferiorizados e/ou que lutam para alterar esse estado de coisas. É que, da mesma forma que a internet amplificou as vozes de comentários preconceituosos, ampliou também a reação a eles, por categorias que antes não tinham voz nenhuma.

Por outro lado, não se pode perder de vista o papel da transgressão para a arte e o humor e a própria necessidade de se respeitar a expressão de pontos de vista os mais diversos possíveis – inclusive os tolos.

Outra passagem do livro de Jon Ronson é ilustrativa a respeito desse último ponto. Nela, Lindsey Stone, que postou foto com o dedo médio em riste num cemitério militar e foi amplamente xingada por isso, conversa com o funcionário de uma empresa que envida seus melhores esforços para que os resultados desabonadores de pesquisa no Google migrem para a quase inacessada segunda página. A consultoria a aconselha a criar contas em diversas redes sociais (prejulgadas como relevantes pelo algoritmo do buscador) e não dizer que a rede de supermercados na qual trabalhou por cinco anos “sugava sua alma”. O autor, então, arremata: “O triste era que Lindsey tinha sido alvo de ódio na internet porque fora imprudente, brincalhona, tola e sincera. E agora, ali estava, trabalhando com Farukh para se reduzir a banalidades seguras – a gatos, sorvetes e música do Top 40. Estávamos criando um mundo onde o modo mais interessante de sobreviver era ser desinteressante” [4].


[1] Disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/05/16/justica-condena-universitaria-por-preconceito-contra-nordestinos-no-twitter.htm. Acesso em 7 dez.2016.

[2] Na expressiva descrição de Mario Vargas Llosa: “O que é privado em nossos dias? Uma das consequências inovadoras da revolução da informática foi a volatização das fronteiras que o separavam do público, confundindo-se ambos num happening em que todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores, em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia, num strip tease generalizado no qual nada ficou a salvo da mórbida curiosidade de um público depravado pela necedade” (VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Trad. Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 140)

[3] WILLIS, Ken. Merry Hell: humour competence and social incompetence. In: LOCKYER Sharon; PICKERING, Michael (orgs.). Beyond a joke: the limits of humour. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 137. No original: “[…] This is not to say that we are two wholly separate beings, one private, one public […] Most of us are able to distinguish clearly between public and private and display a tolerable level of social competence”.

[4] RONSON, Jon. Humilhado: como a era da internet mudou o julgamento público. Rio de Janeiro: Bestseller, 2015. p. 277-278.

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    é doutor e mestre em direito das relações sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde integra o Núcleo de Direito Privado Comparado. Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS). Advogado.

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