Opinião

O que "sobra" para estados e municípios na competência de licitações e contratos?

Autor

  • Victor Aguiar Jardim de Amorim

    é doutorando em Direito (UniCEUB); mestre em Direito Constitucional (IDP); professor dos cursos de pós-graduação do IGD ILB e IDP; advogado e consultor jurídico especializado em licitações e contratos.

22 de janeiro de 2017, 9h59

Em razão do imbricado sistema de distribuição de competências legislativas entres os entes federados instituído pela Constituição Federal de 1988, desponta a necessidade de uma análise da problemática atinente à delimitação da atuação da cada ente nas matérias de competência normativa concorrente.

O critério de distribuição de competência do tipo vertical pressupõe a existência de um critério para a conciliação de interesses entre os entes, sendo conferida à União a prerrogativa de editar normas gerais em relação às matérias especificamente indicadas pela Constituição. Tais normas gerais deverão ser observadas pelos demais entes federativos quando da edição de suas respectivas leis tendentes à complementar as disposições gerais advindas da União.

Diante de tal realidade e considerando a previsão do art. 22, XXVII, da CF, que confere à União a competência de editar normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, é necessária a realização de acurado estudo para se identificar, a partir da atual lei nacional que dispõe sobre o assunto (Lei 8.666/93), as normas de cunho geral, de modo que, dessa forma, sejam delimitados os espaços normativos passíveis de serem preenchidos pelos estados, Distrito Federal e municípios.

Com esteio na referida previsão constitucional, lastreada no critério de repartição vertical de competência, caberá à União definir as normas gerais sobre o tema, sendo, por outro lado, permitido aos demais entes legislar sobre normas específicas de acordo com as suas particularidades. Logo, apenas as normas gerais são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante.

Neste aspecto, cumpre anotar a importância de estabelecimento de um critério definidor do alcance da normatização da União no tocante à licitação e aos contratos administrativos. Tal critério funda-se na distinção entre “normas gerais” e “normas específicas”. Com efeito, quando a União estabelece uma “norma geral”, tal diploma ostenta a condição de “lei nacional”, aplicável em todo o território, devendo ser observada indistintamente por todos os entes federativos. Noutra via, ao criar “norma específica” sobre o assunto, tal lei terá âmbito federal, só atingindo a própria União.

Atualmente, é a Lei 8.666, de 1993, editada pela União, que cumpre o papel de definir as normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. Contudo, com esteio na diferenciação entre “lei nacional” e “lei federal”, vale frisar que a Lei 8.666/93, apresenta não só “normas gerais” – que ostentam âmbito nacional – como também normas de cunho “específico”.

Resta claro que não foi intenção do legislador federal esgotar na Lei 8.666/93 toda a matéria atinente à licitação, suprindo dos demais entes a necessidade de especificar a disciplina no tema de acordo com as suas particularidades. No caso, o que desbordar dessa legislação em caráter de “norma geral” será de aplicação específica para a Administração Pública Federal.

Faz-se, portanto, necessário o estabelecimento de standarts precisos quanto ao âmbito de aplicabilidade das normas que compõem a Lei 8.666/93 em relação à União, aos estados, o Distrito Federal e aos municípios. Nesse intento, busca-se, nas linhas a seguir, o esboço de um mapeamento da qualificação das normas de acordo com as características de generalidade e especificidade e, por conseguinte, o estabelecimento do espaço de atuação normativa subsidiária dos estados, Distrito Federal e município no que tange ao disciplinamento dos procedimentos licitatórios realizados pelas suas respectivas entidades administrativas.

De plano, pode-se inferir que os princípios e as diretrizes gerais estabelecidas nos arts. 1º a 5º enquadram-se no conceito de “normas gerais”, sendo, pois, de observância obrigatória por todos os entes da Federação.

No tocante às modalidades de licitação, em atenção à redação do art. 22, XXVII, da Constituição Federal, há que se considerar que o estabelecimento e a definição das modalidades é matéria de “norma geral” da União, motivo pelo qual, as modalidades instituídas na Lei nº 8.666/93 (concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão) e na Lei 10.520/2002 (pregão), devem ser obrigatoriamente observadas por todos os entes federativos.

Logo, não será a admitida a criação de modalidade excepcional por lei do estado ou do município. Da mesma forma, amplia-se a exclusividade legislativa da União em relação ao estabelecimento dos tipos de licitação (critérios de julgamento) no art. 45 da Lei 8.666/93. Todavia, é necessário ponderar que a regulamentação do iter procedimental das licitações, por ser matéria enquadrada como “norma específica”, poderá ser disciplinada por lei estadual ou municipal de acordo com as particularidades de cada ente.

Afinal, não se pode olvidar que a Constituição de 1988, em seu art. 24, XI, estabelece ser concorrente a competência para legislar sobre “procedimentos em matéria processual”, o que contemplaria, também, procedimentos administrativos, como são considerados os “procedimentos licitatórios”, conforme consigna o próprio art. 4º da Lei 8.666/93[1].

Nessa senda, há os casos de leis locais que estabelecem procedimento de realização das etapas do procedimento licitatório (habilitação e julgamento das propostas) diferenciados em face do consignado na Lei 8.666/93, o que convencionou-se denominar “inversão de inversão”.

Entendemos que não há qualquer vício em tal previsão, tendo em vista tratar-se de regulamentação específica apenas no tocante ao procedimento em si, mantendo-se a disciplina afeta às modalidades e tipos de licitação estabelecidos na lei. Ressalte-se que os tipos de licitação previstos no art. 45 no Estatuto de Licitações (menor preço, melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta) se referem aos critérios de julgamento das propostas a serem observados pela Comissão de Licitação.

Com efeito, ao inverter as fases do procedimento, não estará a lei estadual ou municipal subvertendo a lógica de aplicabilidade dos critérios de julgamento, estará, apenas, refletindo, sob a subserviência das diretrizes da Lei 8.666/93, uma opção do ente federado por um roteiro que, na sua ótica, otimiza o procedimento licitatório.

Sendo assim, a regulamentação das condições de julgamento da proposta em si, por se tratar de tipo de licitação, não poderá ser alterado por lei que não seja da União, sob pena de desvirtuar os critérios já estabelecidos pela Lei de Licitações.

Ainda quanto aos tipos de licitação, é oportuno consignar a compulsória observância pelos estados e municípios do disposto no art. 4º, inciso X, da Lei 10.520/02, que estabelece a obrigatoriedade da adoção do critério de menor preço no julgamento das propostas relativas aos procedimentos licitatórios regidos na modalidade pregão. Afinal, considerando que a definição das modalidades e tipos de licitações é afeta à lei da União, em havendo a vinculação de um tipo de licitação a determinada modalidade, tal opção legislativa deverá ser respeitada pelos demais entes.

Outrossim, no que tange aos critérios de preferência e de tratamento diferenciado em sede de licitações e contratos, por envolverem uma perspectiva de ponderação do legislador federal face ao princípio da isonomia e o objetivo do desenvolvimento nacional sustentável, os estados e municípios deverão se ater às hipóteses previstas nos §§ 2º e 5º da Lei 8.666/1993, sendo-lhes vedado instituir “novas” hipóteses de preferência que afetam diretamente o procedimento de julgamento e apreciação das propostas.

Quanto às condições de habilitação fixadas nos arts. 27 a 31, impende, num primeiro momento, consignar que os requisitos habilitatórios externados pela norma refletem um juízo de ponderação feito pelo legislador federal como resultado da colisão entre o princípio da ampla participação e do interesse público, materializado na necessidade de uma contratação satisfatória pela Administração.

Desse modo, os arts. 27 a 31 estabelecem as condições para o exercício do direito de licitar, de modo que a Administração só passará à análise da proposta dentre aqueles licitantes aos quais foi reconhecida a titularidade de tal direito.

Não obstante o reconhecimento da exaustividade do rol dos requisitos de habilitação estabelecidos pela Lei 8.666/93 pela doutrina[2] e jurisprudência, as hipóteses então elencadas são de cunho genérico, não afastando, pois, a viabilidade de fixação de requisitos específicos pelo ato convocatório dada a natureza e extensão do objeto a ser contratado.

Ademais, de acordo com entendimento do STJ[3] e TCU[4], o elenco dos arts. 28 a 31 deve ser reputado como máximo e não como mínimo, de modo que não é obrigatória a exigência pela Administração de todos os requisitos estabelecidos na Lei 8.666/93. Resta claro, assim, que o edital não poderá exigir mais do que ali previsto, mas poderá demandar menos[5].

Destarte, como a fixação das condições de habilitação estão necessariamente relacionadas com os contornos estabelecidos pelo legislador federal a respeito do princípio da ampla participação em sede de licitações públicas, entende-se que é vedado aos estados e municípios fixar requisitos abstratos que potencializem a dificuldade de participação nos certames, restringindo, assim, a competição.

Será, todavia, admissível que a legislação estadual ou municipal apenas discrimine de maneira mais precisa do rol dos arts. 28 a 31, instituindo detalhes quanto à forma de apresentação dos documentos ali relacionados, desde que não impliquem em ampliação indireta das restrições ora constantes do Estatuto Federal de Licitações.

O mesmo raciocínio aplica-se às condições de validade da proposta estabelecidas no art. 48 da Lei 8.666/93, tendo em vista que poderão implicar na desclassificação dos licitantes e sua consequente exclusão do certame. Adiante, convém analisar se as normas contidas na Lei 8.666/93 concernentes aos recursos são de observância obrigatória para os demais entes federativos.

A análise de tal questão deve partir, necessariamente, da premissa de que é assegurado ao cidadão o direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”, CF) e as garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF). Logo, a interposição de recurso em relação às decisões das Comissões de Licitação é direito inafastável do licitante. Da mesma maneira, em razão dos princípios da legalidade, moralidade e publicidade, não poderá ser suprimida a garantia de qualquer cidadão em impugnar o ato convocatório (art. 41, §1º) e solicitar esclarecimentos (art. 40, VIII).

Especificamente, no tocante aos recursos, depreendem-se, a partir do art. 109 regras de cunho geral e específico. Tem-se como regra geral o cabimento de recurso administrativo em relação a cada decisão da Comissão de Licitação proferida em cada etapa do procedimento licitatório: habilitação e julgamento. Logo, mesmo que a lei estadual ou municipal determine a inversão de fases, deverá ser assegurada ao licitante a oportunidade de interpor recurso em cada fase do certame. Ainda nesse sentido, os demais entes deverão observar o cabimento dos recursos previstos nos incisos II e III, quais sejam, a representação e o pedido de reconsideração.

No caso da modalidade pregão, a legislação estadual e municipal não poderá subverter a premissa de “fase recursal única” (unirrecorribilidade), instituída no art. 4º, XVIII, da Lei 10.520/2002.

É clarividente que a fixação dos prazos recursais não poderá ser de tal forma que desvirtue ou esvazie o núcleo essencial do direito de petição, de modo que as condições materiais de defesa do licitante sejam praticamente inviabilizadas pelo exíguo prazo recursal ora previsto. Com esteio de tais considerações, pode-se concluir que os estados e municípios poderão fixar prazos de recursos diferentes daqueles previstos no art. 109 da Lei 8.666/93, desde que, no mínimo, respeitem os prazos então fixados na referida norma.

Por fim, não se pode deixar de analisar a questão atinente à previsão dos casos de dispensa e inexigibilidade previstos nos arts. 24 e 25 da Lei 8.666/93: tratam-se de “norma geral” ou “norma específica”?

Partindo o pressuposto segundo o qual são normas gerais aquelas que estabelecem diretrizes a serem seguidas pelos legisladores estaduais e municipais, há que se reputar que os casos de dispensa e inexigibilidade, por constituírem situações excepcionais que afastam o dever da Administração Pública de realizar procedimento licitatório para contratar, são de previsão normativa privativa da União. Por outro lado, é possível que os estados e municípios editem normas regulamentares com o fito de disciplinar o procedimento a ser adotado para as contratações diretas em seu âmbito[6], desde que respeitadas as hipóteses de dispensa constantes no art. 24 da Lei 8.666/93.

Com fulcro nas premissas lançadas alhures, infere-se que os pormenores atinentes à regulamentação dos procedimentos licitatórios, desde que não afetem as estruturas principiológicas e as diretrizes lançadas pela Lei 8.666/93, poderão ser normatizados de maneira específica pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios naquilo que lhes for peculiar.

À primeira vista, podemos destacar que as seguintes regras da legislação, por enquadrarem-se como “normas específicas” e, por serem aplicáveis apenas à Administração Pública Federal, poderão ser disciplinadas de maneira distinta pelos demais entes federativos:

a) definição de valores, prazos e requisitos de publicidade dos editais e avisos (art. 21);
b) iter procedimental relativo à ordem de realização das etapas da licitação;
c) regulamentação sobre registros cadastrais (arts. 34 a 37);
d) forma e prazos de interposição dos recursos administrativos, desde que respeitados os limites mínimos traçados pelo art. 109 da Lei 8.666/93;
e) procedimento e condições para alienação dos bens pertencentes à Administração dos estados, DF e municípios (arts. 17 a 19);
f) acréscimos em relação ao conteúdo mínimo dos editais de licitação (art. 40).

Quantos às regras relativas aos prazos e requisitos de publicação dos avisos de licitações, aos demais entes é conferida a prerrogativa de estabelecerem prazos diferenciados de intervalo entre a publicação do aviso contendo o resumo do edital e a sessão de abertura do procedimento licitatório, desde que observados os prazos mínimos definidos no art. 21 da Lei 8.666/93 e art. 4º, inciso V, da Lei 10.520/2002, sob pena de malferimento do princípio da transparência, considerando que a fixação de prazo menor do que aquele reputado como razoável pelo legislador federal implica na afetação do núcleo essencial dos primados da publicidade e da ampla competitividade.

Nessa seara, a legislação estadual ou municipal poderá esmiuçar as formalidades de modo a conferir maior objetividade dos critérios de divulgação dos avisos contendo os resumos dos editais de licitação.  Portanto, a regulamentação das condições de participação no certame e demais nuances relativas ao procedimento licitatório poderão constituir objeto de normatização pelos estados, Distrito Federal e municípios, desde que respeitadas as normas gerais fixadas por lei da União e o limites traçados quanto ao núcleo essencial dos princípios inerentes à atividade licitatória.

 


[1] Conforme JUSTEN FILHO, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2010, p. 99-100.

[2] Nesse sentido: JUSTEN FILHO, ob. cit., p. 400.

[3] REsp 402.711/SP, rel. Min. José Delgado, j. em 11/06/2002.

[4] Acórdão 991/2006, Plenário, rel. Min. Guilherme Palmeira.

[5] Cf. JUSTEN FILHO, ob.cit., p. 401.

[6] Cf. JUSTEN FILHO, ob. cit., p. 297.

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito Constitucional, professor de pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado especialista em licitações e contratos administrativos.

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