Opinião

Omissão legislativa excluiu deficientes auditivos da isenção do IPI

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22 de janeiro de 2017, 9h30

Nas últimas décadas, o automóvel tem recebido grande importância em sua natureza de bem móvel, sendo essencial para a subsistência e locomoção dos indivíduos. Inclusive, a indústria automobilística brasileira é uma das mais lucrativas do cenário econômico do País.

Não bastando, este bem móvel possui função social relevante – facilitar o direito constitucionalmente previsto de ir e vir das pessoas, sem quaisquer perturbações públicas adicionais. Inclusive, ele passou a ser parte indissociável da sociedade atual.

Como qualquer outro produto confeccionado em território brasileiro, o carro é tributado por meio do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que também vale para produtos industrializados estrangeiros. Entretanto, o Direito Tributário possui um instituto denominado isenção, que consiste na dispensa legal do pagamento de um determinado tributo.

Como será demonstrado adiante, o problema está no inciso IV do artigo 1º da Lei Federal 8.989/1995 — artigo este que elenca o rol de isentos de pagamento do aludido tributo em automóveis destinados ao transporte autônomo de passageiros — no qual se configura a cristalina ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

Serão explicados, resumidamente, os conceitos de isenção tributária, IPI e deficiência auditiva, como embasamento prévio antes da abordagem do tema central deste artigo, com o intuito de manter o leitor ciente das particularidades inerentes à defesa da isenção tributária do IPI em veículos, para surdos.

A priori, torna-se necessário uma apresentação do instituto legal da isenção tributária, benefício legal concedido pelo legislador. Nele, o contribuinte é dispensado de realizar o pagamento do tributo após a ocorrência do fato gerador[i]:

“Costuma-se dizer que enquanto a imunidade é uma hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada, a isenção é uma hipótese de não incidência legalmente qualificada”[ii].

Não se confunde imunidade com isenção, mesmo que as duas liberem o contribuinte de pagar o crédito tributário devido: aquela é concedida somente pela Constituição Federal e limita a competência tributária (antes do fato gerador) enquanto a isenção é dada mediante norma infraconstitucional, dispensando o pagamento (depois do fato gerador).

A escusa deve ser decorrente, sempre, de lei exclusivamente regulatória da matéria, como é exigido pelo parágrafo sexto do artigo 150 da CF/88[iii].

Importante lembrar que esse instituto é um desenrolamento da competência para instituir o tributo de uma determinada entidade. Ao mesmo tempo em que ela recebeu, da Constituição Federal, autorização para instituir e cobrar um tributo, ela também pode dispensar o seu recolhimento em casos específicos e previstos em lei. Quando isso acontece, a isenção é classificada como sendo autonômica, ou seja, aquela concedida por lei da mesma entidade competente para instituir o tributo[iv].

No contexto deste artigo, a isenção tributária aplicada pode ser encontrada no artigo 1º da Lei Federal n. 8.989/1995, que dispõe sobre a isenção do IPI na aquisição de automóveis para utilização no transporte autônomo de passageiros, bem como por pessoas portadoras de deficiência física, além de outras providências legais.

Constante no art. 153, IV, da Constituição Federal, o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI – é disciplinado, em relação à sua cobrança, fiscalização, arrecadação e administração, pelas Leis n. 9.363/96, 4.502/64, 9.439/97, 10.865/2004 e 11.452/2007, além dos Decretos n. 7.705/2012 e 7.212/2010. Por ser um tributo federal, somente a União pode instaura-lo ou modifica-lo.

O art. 46 do Código Tributário Nacional descreve quais são os fatos geradores do IPI:

Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:

I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;

II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;

III – a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.

Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.

De acordo com o art. 1º do Decreto n. 7.212/2010, produto industrializado é tudo que for resultante de qualquer operação definida de industrialização, mesmo incompleta, parcial ou intermediária. Os pneus de um carro, mesmo se separados e deixados em um canto, são produtos industrializados. A mesma lógica se aplica, por exemplo, a uma simples lanterna do farol de milha do veículo. Porém, não são todos que recebem a incidência do IPI – a Constituição concede imunidade a alguns deles:

I – os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão;

II – os produtos industrializados destinados ao exterior;

III – o ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial;

IV – a energia elétrica, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.

 

No entanto, torna-se obrigatório pontuar que, em caso de produtos industrializados destinado ao exterior, não há incidência de IPI (art. 153, §3º, III, CF/88), com o claro intuito de estimular a indústria brasileira em comparação com os produtos oriundos do estrangeiro.

Mais adiante, o art. 51 do mesmo Código define os contribuintes obrigados ao pagamento do IPI:

Art. 51. Contribuinte do imposto é:

I – o importador ou quem a lei a ele equiparar;

II – o industrial ou quem a lei a ele equiparar;

III – o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos contribuintes definidos no inciso anterior;

IV – o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados a leilão.

Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.

Além dos contribuintes acima, o Decreto n. 7.212/2010, em seu artigo 25, também definiu o rol taxativo de responsáveis tributários pelo imposto. A responsabilidade tributária ocorre quando há o redirecionamento do dever de recolher o tributo do contribuinte (aquele que provocou o fato gerador) para um terceiro obrigatoriamente vinculado ao fato gerador[v]. Assim, o responsável tributário seria o sujeito passivo indireto da obrigação tributária, vinculado a ela por imposição legal.

No caso do IPI, o contribuinte seria a concessionária que importou o veículo; o responsável tributário, o comprador do carro importado. Desta forma, o imposto é recolhido pelo proprietário, uma vez que o Decreto supramencionado assim ordenou.

Por fim, sendo um dos impostos mais importantes e aplicados do ramo tributário, o IPI recebeu, constitucionalmente, as características da não cumulatividade (sem tributação em cascata) e seletividade (proibição de alíquota unificada, devendo-se adotar as alíquotas variáveis).

A deficiência auditiva (ou surdez ou hipoacusia) é a perda, total ou parcial, da audição. Pode ser tanto congênita quanto adquirida durante a vida por meio de doenças ou deterioração do órgão ou nervo auditivo. Qualquer um que possua uma perda auditiva, por mais leve que seja, pode ser considerado deficiente auditivo.

Esse é o conceito médico.

Do ponto de vista jurídico, interpretado de forma literalmente restritiva e determinado pelo Decreto n. 3.298/1999 (posteriormente alterado pelo Decreto n. 5.296/2004), a deficiência auditiva é a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz.

Um indivíduo é considerado legalmente apto a concorrer a cotas por deficiência em concursos, por exemplo, se cumprir o requisito legalmente previsto acima no art. 4º, II, do Decreto 3.298/99. Ou até mesmo a receber isenções específicas em decorrência de sua surdez.

Em primeiro lugar, é imprescindível demonstrar aqui o rol de isentos de pagamento do IPI sobre automóveis de passageiros de fabricação nacional, dado pelo art. 1º da Lei federal n. 8.989/1995, que dispõe sobre a isenção do IPI na aquisição dos referidos veículos:

Art. 1o.  Ficam isentos do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI os automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a dois mil centímetros cúbicos, de no mínimo quatro portas inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustíveis de origem renovável ou sistema reversível de combustão, quando adquiridos por:        (Redação dada pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)       (Vide art 5º da Lei nº 10.690, de 16.6.2003)

        (…)

         IV – pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal;        (Redação dada pela Lei nº 10.690, de 16.6.2003)

Como se percebe na parte grifada, os deficientes auditivos não foram beneficiados com a isenção concedida pela União na norma infraconstitucional. Por qual motivo? Não foi esclarecido. Inclusive, a ausência de justificativa incorre em inconstitucionalidade por omissão, uma vez que o legislador privilegiou certas deficiências em detrimento de outras, efetivando tratamento injustificadamente desigual.

Evidente que a exclusão deliberada dos deficientes auditivos no rol de isentos configura ato discriminatório e ofensa aos princípios previstos no art. 5º, caput e art. 1º, III, ambos da CF/88, quais sejam eles, respectivamente, os da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

O princípio da isonomia, na seara tributária (art. 150, II, CF/88), preconiza que é terminantemente vedado tratamento diferenciado entre contribuintes que estejam em situação equivalente, como é o caso. Por sua vez, no campo humano, o art. 5º, caput, da Lei Maior, diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Não se critica, aqui, a isenção concedida às demais deficiências, uma vez que a política fiscal adotada pelo Decreto acima destacado encontra-se correta ao discernir que os portadores de deficiência não possuem inteira e completa integração à sociedade, necessitando de inclusão social. O benefício concedido pela isenção visa corrigir, ainda que parcialmente, essa distorção.

O que não deve ser aplaudida é a ausência de deficientes auditivos, que também padecem de suas próprias dificuldades no dia a dia dentro da sociedade e encontram-se enquadrados na mesma categoria que as demais deficiências. Tome-se como exemplo a deficiência visual, que é sensorial — como a auditiva — e foi declarada como isenta de recolhimento do IPI sobre automóveis.

Não bastando, o princípio da dignidade humana, elencado no inciso III do primeiro artigo da Carta Magna, deixa subentendido que todo ser humano, com suas qualidades e características únicas, é detentor do merecimento de respeito e consideração do Estado e da comunidade, que devem se esforçar ao máximo possível para assegurar os seus direitos[vi].

O advento da nova Lei Brasileira de Inclusão (n. 13.146/2015) também reforçou essa perspectiva de que a exclusão dos portadores de deficiência auditiva é completamente inconstitucional:

Art. 1o  É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

(…)

Art. 2o  Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.  

Como, então, a ausência dos surdos no rol de isentos de pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados pode visar a sua inclusão social e a sua cidadania? Certamente a audição, como os outros sentidos, possui vital importância para o desenvolvimento do indivíduo — não só individualmente, mas também coletivamente — e a sua privação afeta profundamente a participação na vida social, econômica e política.

Em relação ao argumento de que a finalidade extrafiscal do inciso IV do artigo 1º da Lei Federal n. 8.989/1995, sem a inclusão dos surdos, busca favorecer a compra de automóveis por aqueles com dificuldades de locomoção não merece prosperar. A audição também é necessária para o ato de dirigir veículo em via pública ou privada e não merece ser menosprezada.

Nesse sentido, a Procuradoria Geral da República, representada por Rodrigo Janot Monteiro de Barros, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) no Supremo Tribunal Federal. A ADO foi distribuída sob o n. 30/DF e encontra-se sob a relatoria do Ministro José Antonio Dias Toffoli, sem previsão de entrada na pauta de julgamentos.

Nela, foi pedida a declaração da inconstitucionalidade por omissão da citada lei, determinando-se a aplicação do inciso IV aos deficientes auditivos enquanto durar a omissão legislativa, além de estipulação, pelo Supremo, de prazo para que o Congresso Nacional edite norma corrigindo a distorção normativa.

O Congresso Nacional também tem, felizmente, realizado movimentos no sentido de suprir a omissão. O Projeto de Lei do Senado (PLS) 14/2008, de autoria do Senador Antonio Carlos Valadares, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, busca incluir os portadores de deficiência auditiva no rol de isenção do IPI na aquisição de automóveis para uso de transporte autônomo de passageiros.

Na Câmara dos Deputados, existe o PL 3.205/2015, de autoria do deputado federal Alan Rick e relatoria do deputado federal Dr. Jorge Silva, também almeja a alteração da lei 8.989/1995 para estender o direito à isenção do pagamento do IPI na compra de automóveis às pessoas com deficiência auditiva. Em agosto de 2016, houve a aprovação do PL pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CPD) e, no mesmo mês, foi remetido à Comissão de Finanças e Tributação (CFT).

Hoje, aguarda a designação de deputado federal como relator do projeto na CFT.

Não há dúvidas sobre a existência da grave omissão legislativa que resultou na exclusão dos deficientes auditivos na isenção do IPI sobre automóveis, tanto que houve posicionamento da Procuradoria Geral da República a favor da inclusão, bem como de movimentos significativos dos senadores e deputados federais em prol da correção.

[i] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Tributário. Editora Saraiva, São Paulo/SP, 2015.

[ii] Idem.

[iii] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

[vi] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre/RS, Livraria do Advogado, 2001.

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