Opinião

Medida Provisória sobre direito real de laje criou título desordenado

Autor

  • Fábio Rocha Pinto e Silva

    é mestre e doutor em Direito Civil (USP) doutor em Direito Civil em dupla titulação (Univ. Panthéon-Assas Paris II) presidente da Comissão de Crédito Imobiliário e Garantias do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim) delegado do governo brasileiro perante o grupo de trabalho de reforma das garantias da Uncitral/ONU (2015-2018) relator do GET-Garantias (Ministério da Economia) do anteprojeto de reforma das garantias reais no Código Civil participante dos grupos 4 e 5 do IMK responsáveis pela redação da MP 1.085/21 e do PL 4.188/21 advogado atuante na área de Direito Imobiliário e de Financiamento Imobiliário e sócio de Pinheiro Neto Advogados.

21 de janeiro de 2017, 10h07

A Medida Provisória 759, de 22 de dezembro de 2016, instituiu no Código Civil Brasileiro um “novo direito real”: o direito de laje (art. 1.225, inciso XIII, e art. 1510-A). Embora pretenda sanar um problema relevante, sua aplicação está ameaçada pela técnica adotada, que deixou sem resposta a mais essencial das questões: o que é o direito de laje? Ao menos três modelos divergentes são concebíveis, cabendo ao Congresso Nacional edificar sobre as lacunas deixadas pelo texto do Executivo.

É inegável a função social da “laje”, como meio de regularizar a titularidade de construções sobrepostas, muito representativas da realidade brasileira. Não podemos, por purismo ou mero apego às categorias jurídicas, fazer oposição a que a lei cumpra uma de suas funções essenciais: dar solução aos conflitos da sociedade; conferir tratamento jurídico àquilo que já existe de fato. Se a melhor forma de fazê-lo exige a criação de um novo direito real, por que não?

Há de se ter cuidado, entretanto, para que a solução vislumbrada não seja fonte de novos e maiores problemas. Parece ser o caso do novo direito de laje, cujo texto introduzido no Código Civil brasileiro poderia ter sido agraciado por melhor técnica e maior preocupação com a harmonia do sistema jurídico. Vozes bastante críticas já surgem, como o professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., para quem há de se registrar “o assombro com a falta de cuidado técnico na elaboração dessa norma.

No mérito, o debate iniciado nos primeiros dias de 2017 aponta para uma questão essencial: a natureza do direito de laje. Afinal, o texto legal o define como um “direito-possibilidade” de dividir-se o imóvel em unidades autônomas e de titularidade distintas, por meio da cessão da superfície da edificação existente. Ninguém sabe ao certo o que é, mas três alternativas têm sido já aventadas.

A primeira, de que não se trata de direito real novo, mas de variação do direito de superfície (CC, arts. 1.369 ss.; Estatuto da Cidade, arts. 21 ss), nas modalidades ditas “por cisão” ou “por sobrelevação”. Esta é a opinião de artigo publicado recentemente na ConJur, pelo professor Roberto Paulino de Albuquerque Jr., e parece ser também prestigiada pelo artigo citado do professor Otávio.

Sobre o tema, há três enunciados de Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, favoráveis ao direito de superfície sobre terrenos com edificações já existentes. São eles os enunciados 93, 250 e 568, respectivamente da I, III e VI Jornadas; o último é mencionado no artigo do professor Roberto Paulino. A meu ver, trata-se de modalidade já admitida de direito de superfície, que sequer demandaria tratamento legislativo.

Entretanto, pela leitura do que se pretendeu criar, o direito de laje parece exceder o escopo do direito de superfície. Este é por natureza temporário. Poderíamos até cogitar uma modalidade vitalícia, como se permite expressamente ao usufruto, mas dificilmente uma modalidade perpétua. Ao contrário, o novo art. 1510-A do Código Civil deixa claro que o direito de laje não é um direito real de gozo sobre bem alheio, como o usufruto e a superfície, mas um “direito que cria”, efetivamente, um novo bem. Sobre este, o beneficiário tem “titularidade”, de forma exclusiva e perpétua, inclusive com a abertura de nova matrícula imobiliária. No nosso sistema, um direito exclusivo e perpétuo sobre um bem chama-se “propriedade”.

Daí surgem as outras duas alternativas. A segunda, que o beneficiário do direito de laje receberia, de fato, a propriedade sobre um novo bem. A “laje” não seria sequer um direito real, mas sim um “processo”, um mecanismo jurídico por meio do qual se subdivide o bem existente, dando lugar a dois ou mais imóveis, com propriedade distinta.

Seria, portanto, uma espécie simplificada de condomínio edilício ou, ainda, um novo método de parcelamento imobiliário – neste caso, se admitirmos a improvável hipótese de não haver partes comuns, como parece afirmar o artigo 1.510-A, no parágrafo sexto. Em qualquer caso, o direito real resultante é a propriedade, e não a laje”.

A terceira, de que o “direito de laje” seria sim inovador, numa releitura do “Derecho de Vuelo” previsto no Reglamento Hipotecario espanhol: um “direito real com vocação de domínio”, dotado de uma estrutura bifásica. Veja-se o art. 16(2): “El derecho de elevar una o más plantas sobre un edificio o el de realizar construcciones bajo su suelo, haciendo suyas las edificaciones resultantes (…)”.

É uma situação jurídica provisória ou mesmo preparatória ao objetivo efetivo das partes envolvidas: a propriedade – algo que, por analogia, poderíamos comparar com a promessa de compra e venda. Pelo registro do “direito de laje”, o beneficiário receberia o direito de construir de forma sobreposta à construção pré-existente, com a finalidade de adquirir a futura propriedade.

Enquanto não concluída a construção, haveria algo equivalente ao direito de superfície, direito temporário sobre bem de terceiro. No entanto, com a conclusão da obra, averbando-a no registro de imóveis, o direito real de gozo se extinguiria, dando lugar ao direito de propriedade sobre um novo bem, fruto da subdivisão do imóvel edificado. Daí por que só faz sentido abrir uma nova matrícula imobiliária, como pretende expressamente o art. 1.510-A, se e quando a construção for concluída e o imóvel, dividido. E, a partir desse momento temporal, não há mais que se falar em direito real limitado, mas sim em propriedade.

Por fim, há ainda um equívoco formal. O “direito de laje” foi incluído no art. 1.510-A, ao final do Livro III – Direito das Coisas. Conforme a ordem estabelecida pelo Código, os títulos do Livro III ordenam-se a partir da posse (Título I), seguindo-se o rol dos direitos reais (Título II), a propriedade (Título III), os direitos reais limitados de gozo (Títulos IV a VIII), o direito real do promitente comprador (Título IX) e as garantias reais (Título X).

Se a laje for espécie de condomínio ou de subdivisão de imóvel, seu lugar é no interior do Título III – Da Propriedade, onde o Código regulamenta o Condomínio. Se for modalidade de direito de superfície, seu lugar é no interior do Título IV – Da Superfície. Se for um direito real sui generis, seu lugar poderia ser um novo título, mas antes do direito do promitente comprador e – por óbvio! – antes das garantias.

Evidência maior de que não se sabe ao certo o que é o “novo direito” é que foi introduzido em um novo “Título XI”, o único do Livro III que não possui rubrica: um título inominado e desordenado é o que restou para um direito com crise de identidade.

Resta dessa breve e preliminar análise um importante apelo ao Congresso Nacional. A regularização das lajes é muito bem-vinda. Aliás, é tema urgente. Mas, para que possa suportar o peso dos conflitos urbanos que pretende regularizar, é preciso edificar o direito de laje sobre mais sólidos alicerces.

 

Autores

  • Brave

    formou-se bacharel e é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Concluiu em 2016 tese de doutorado em Direito Civil em dupla-titulação, na Université Panthéon-Assas (Paris 2) e na USP. É advogado no escritório Pinheiro Neto e autor do livro Garantias Imobiliárias em Contratos Empresariais: Hipoteca e Alienação Fiduciária, publicado em 2014 pela Editora Almedina.

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