Interesse Público

Mortes em presídios impõem desafio na identificação de responsáveis civis

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

19 de janeiro de 2017, 7h01

Spacca
O parágrafo 6º, do artigo 37, da Constituição Federal é aparentemente claro ao dizer que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem pelos danos que seus agentes causarem a terceiros. No caso das mortes de detentos, no presídio estadual do Carandiru, em 1992, pela Polícia Militar de São Paulo, a aplicação da literalidade desse dispositivo definiu a responsabilidade pelas indenizações. Mas o cenário mudou muito, desde então.

Possivelmente em razão da responsabilidade penal, os policiais militares não invadiram a prisão nos últimos acontecimentos, na passagem do ano de 2016 para 2017. Presos mataram presos. Melhor dizendo, presos, de uma determinada facção criminosa, mataram presos, de outra facção criminosa. Sem dúvida houve falha na prestação de serviço público de custódia de condenados. Mas há um complicador: embora o presídio fosse estadual, a administração do presídio era terceirizada. Quem deve responder pelas indenizações?

Primeiramente, é preciso deixar claro que não há qualquer possibilidade de afastamento da responsabilidade pelos danos causados; alguém terá que pagar as indenizações. Com efeito, a Constituição, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais, no caput do artigo 5º, menciona, expressamente, a segurança, em sentido bastante amplo, compreendendo, portanto a incolumidade pessoal. O inciso XLIV, deixa claro que essa segurança abrange os presos, os quais devem ter respeitada sua integridade física e moral. No artigo 144, ao dispor sobre a segurança pública, a CF afirma que isso é um dever do Estado e deve ser exercida (entre outras coisas) para preservar a incolumidade das pessoas.

Antes de prosseguir na análise estritamente jurídica, seja permitido um comentário sobre a prodigalidade da Constituição, no tocante a direitos e garantias de acusados e, muito especialmente, dos presidiários. Possivelmente essa prodigalidade se deva à preocupação dos constituintes em proteger os presos políticos do passado, dos tempos da ditadura. Porém essa superproteção acabou por facilitar a atuação da criminalidade atual, muito mais evoluída, organizada, como é o caso das facções criminosas.

Este é um primeiro ponto a ser destacado no tocante à definição da pessoa jurídica responsável pelas indenizações. Quem é responsável por uma legislação, e por uma jurisprudência, que, na prática, impede uma vigilância, ou uma disciplina, efetiva e eficaz dos encarcerados? Considere-se, além disso, que a maioria dos presídios é estadual, mas as organizações criminosas operam em âmbito nacional, sem que sejam impedidas de existir e funcionar.

Toda e qualquer organização (entre outras coisas) precisa de um bom sistema de comunicação entre seus segmentos e seus integrantes. No caso dos presídios, a comunicação entre os segmentos das facções criminosas é propiciada pelo uso de telefones celulares, seja por falhas nos meios e instrumentos de bloqueio de sinais, seja por simples corrupção. A quem compete tornar mais efetivo o bloqueio de celulares?

Além disso, e agora entrando diretamente na questão da prodigalidade na declaração e reconhecimento dos direitos dos detentos, merecem lembrança as chamadas “visitas íntimas”. Sobre isso, é importante transcrever um segmento da entrevista dada por Walter Fanganiello Maierovitch, uma indiscutível autoridade na matéria, ao jornal O Estado de São Paulo, de 16 de janeiro de 2017, p. C2: “O que vemos é que um sujeito é preso e já no dia seguinte tem uma lista de cinco “visitas íntimas” acertadas com a direção do presídio. O problema não é a visita íntima, é entender que essa gente constitui sua equipe de pombos correio, que distribui suas ordens à rede. Deixar o líder continuar liderando da cela é uma grave derrota da qual o Estado não se esforça para se recuperar”. Estado, aqui, deve ser entendido como o Poder Público, em geral.

Seria uma indesculpável ingenuidade ignorar que advogados também funcionam como pombos correio. Uma coisa é o advogado que, no exercício legítimo de sua profissão, defende os direitos dos encarcerados, mas outra coisa muito distinta são as pessoas que, por serem inscritas na OAB, por terem as garantias que a ordem jurídica confere aos verdadeiros advogados, operam como integrantes das facções ou organizações criminosas. Nesta matéria estabeleceu-se uma algaravia de surdos. A OAB defende vigorosamente as prerrogativas profissionais dos advogados, mas se omite no tocante ao seu dever de separar o joio do trigo. Essa omissão também pode gerar responsabilidade.

Com efeito, não obstante o parágrafo 6º, do artigo 37 fale em danos causados a terceiros, é bom lembrar que a causa do dano pode ocorrer por ação ou omissão, conforme, em trabalho acadêmico, salientou a, hoje, ministra Cármen Lúcia: “Se do comportamento comissivo ou omissivo do Estado sobrevier dano injusto que onere o campo de direitos de alguém, responsável patrimonialmente será a pessoa estatal. O que se requer, nesta hipótese, é a comprovação da existência do dano e a relação causal entre este e a conduta estatal, o que bastará para imputar a esta pessoa a responsabilidade pelo gravame injusto imposto a alguém, posto não se compadecer a responsabilidade objetiva com o juízo de culpabilidade. O que importa salientar é que, na teoria da responsabilidade objetiva, afastada está qualquer ideia de culpa, mesmo que presumida ou indireta.” (Princípios Constitucionais da Administração Pública, editora Del Rey, Belo Horizonte, 1994, p. 268)

No Direito Administrativo, em seu estágio atual, que superou o autoritarismo e o formalismo estéril, para dar maior valor à eficiência, é ponto pacífico que a todo poder conferido a uma autoridade, corresponde o dever de exercitá-lo, em benefício da finalidade em função da qual essa competência foi conferida ao agente público. Essa noção fica evidente na doutrina de Marçal Justen Filho, que, divergindo da ministra Carmen Lúcia, fala em objetivação da culpa, no tocante à responsabilidade civil do Estado: “É mais apropriado aludir a uma objetivação da culpa. Aquele que é investido de competências estatais tem o dever objetivo de adotar as providências necessárias e adequadas a evitar danos às pessoas e ao patrimônio. Quando o Estado infringir esse dever objetivo e, exercitando suas competências, der oportunidade à ocorrência do dano, estarão presentes os elementos necessários à formulação de um juízo de reprobabilidade quanto à sua conduta. Não é necessário investigar a existência de uma vontade psíquica no sentido da ação ou omissão causadora do dano. A omissão da conduta necessária e adequada consiste na materialização de vontade defeituosamente desenvolvida. Logo, a responsabilidade continua a envolver um elemento subjetivo, consistente na formulação defeituosa da vontade de agir ou deixar de agir.” (Curso de Direito Administrativo, 10º Edição, editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2014, p. 1.335)

A grande questão, no tocante à responsabilidade civil pelas mortes nos presídios é identificar qual autoridade, tendo o dever de agir, deixou de fazê-lo. Essa identificação pode ser fácil em alguns casos, mas existem situações em que o dano decorre do mau funcionamento de toda uma estrutura administrativa, o que pode ser designado como culpa do serviço, assim enfocada por Ruy Cirne Lima: “Hipóteses há, entretanto, em que a culpa pelo dano acontecido não consiste em ilegalidade, acaso praticada pelos funcionários, mas reside no próprio conjunto de disposições regulamentares e técnicas, praxes, usos e estilos, que lhes regem a atividade funcional; reside, antes, na organização defeituosa ou no irregular funcionamento do serviço.” (Princípios de Direito Administrativo, 7ª ed. p. 540)

Esse é o caso das mortes de presos em rebeliões protagonizadas por organizações criminosas. O dano a ser economicamente reparado não tem uma causa específica, mas, ao contrário, decorre de um conjunto articulado de causas, falhas, omissões, normas e práticas equivocadas, envolvendo diversas administrações de diferentes níveis de governo, e, no caso específico, a empresa privada que participava da administração do presídio.

Apressadamente, alguns setores começaram a satanizar a terceirização. Uma simples leitura do texto da Lei 7.210, de 11 de junho de 1984, que instituiu a Lei de Execuções Penais, com a redação dada pela Lei 13.190, de 2015, parece afastar a responsabilidade da empresa terceirizada. Com efeito, o artigo 83-A limita a atuação da empresa contratada a “atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares”, tais como “serviços de conservação, limpeza, informática, copeiragem, portaria, recepção, reprografia, telecomunicações, lavanderia e manutenção de prédios, instalações e equipamentos internos e externos” , mas, sempre, “sob supervisão e fiscalização do poder público.”

O artigo 83-B é ainda mais explícito, ao dizer que “são indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia, e notadamente:  I – classificação de condenados;   II – aplicação de sanções disciplinares;  III – controle de rebeliões (negritei);  IV – transporte  de presos para órgãos do Poder Judiciário, hospitais e outros locais externos aos estabelecimentos penais” . Chama a atenção a previsão expressa da competência para lidar com rebeliões, deixando claro que esse é um risco sempre latente nos presídios. Não é um evento excepcional e completamente imprevisível.

As estatísticas mostram que há uma influência enorme do tráfico de drogas no volume de encarceramentos e nas sangrentas disputas entre as facções criminosas. A ausência de controle sobre a atuação dessas facções fica bem evidente na guerra constante pelo domínio das favelas no Rio de Janeiro, com o uso ostensivo de armamento militar. No caso dos presídios, é muito expressiva a entrevista dada pelo general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, a jornalista Eliane Cantanhêde (O Estado de São Paulo, 17 de janeiro de 2017, p. A6), na qual afirmou: “O contrabando de drogas é o que garante mercado e alimenta as facções criminosas. Não adianta agir só nas penitenciárias”. Ou seja, uma autoridade federal, do mais elevado escalão, reconhece que o controle das penitenciárias (seja por suas direções, seja pelas organizações criminosas) depende de fatores externos à simples administração de cada presídio.

Como é sabido e ressabido, o Brasil é um importante entreposto no comércio mundial de drogas. A matéria prima é produzida em países fronteiriços (Bolívia, por exemplo), é processada no Brasil e, daqui, distribuída ao mercado interno e externo, inclusive Estados Unidos e Europa. Não é despropositado afirmar que a repentina explosão da violência nos presídios pode ter uma ligação com a mudança de política externa do atual governo federal. Em função de um projeto de poder, os governos “bolivarianistas” fecharam os olhos ao tráfico, cuja receita sustentava a guerrilha em vários países. Agora, a economia do tráfico foi afetada, fazendo recrudescer a disputa entre as facções.

O que se pretende demonstrar é que, na identificação dos responsáveis pelo pagamento das indenizações aos presos barbaramente executados, não faz sentido a afirmação simplista de que tais indenizações serão devidas pelo Estado-membro, dado que as penitenciárias são estaduais. Volta-se, aqui ao binômio poder e responsabilidade, ou competência e dever de agir. Entretanto, cabe ponderar que esse dever de agir depende da possibilidade concreta de fazê-lo: ninguém é obrigado a fazer o impossível; não se pode esperar da direção do presídio que faça milagres.

Se, realmente, não se pode qualificar o morticínio como um acidente, dado o elevado potencial de sua ocorrência, por outro lado o controle das organizações criminosas exige um monitoramento, constante e permanente, em toda a rede, em diversas unidades da federação e com a participação indispensável dos órgãos federais de segurança. Pode-se falar, portanto, em corresponsabilidade, dependendo de maior análise o nível de participação (ou omissão) de cada segmento da administração pública envolvido.

Para evitar que novas tragédias anunciadas aconteçam, muita coisa precisa ser feita, envolvendo entendimentos entre Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública de diferentes níveis de governo. Cabe, porém, à sociedade civil lutar contra a leniência e a prodigalidade de direitos dos criminosos e, ainda, acima de tudo, exigir que a garantia constitucional de segurança e incolumidade da pessoa e de seus bens seja efetivamente posta em prática, sem o empecilho de ideologias exóticas e preconceitos corporativos de toda ordem. Um dos direitos individuais a ser restaurado é o direito à legítima autodefesa, com os meios e instrumentos para isso necessários, mas isso é um outro assunto, a ser tratado em outra coluna.

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