Opinião

Os inexplicáveis jabutis no novo estatuto da segurança privada

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  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

19 de janeiro de 2017, 5h11

Nos últimos tempos, o Congresso Nacional virou um criadouro de jabutis. Os jabutis do Legislativo não têm relação alguma com o simpático animal, parente próximo da tartaruga. São emendas parlamentares que modificam projetos de lei em discussão provenientes de lugar incerto e não sabido. Da mesma forma que o verdadeiro jabuti não sobe em árvore, uma emenda não surge do nada. Alguém a colocou ali, visando atender a interesses nem sempre transparentes.

Um dos mais recentes jabutis foi a inclusão, sem discussão alguma na comissão e em plenário, de dois dispositivos no Projeto de Lei 4238/12, que cria o novo estatuto da segurança privada. Os jabutis surgiram na calada da noite, na mesma madrugada em que foram votadas as medidas anticorrupção pela Câmara, e hoje estão para serem votados pelo Senado.

O primeiro jabuti trata do capital estrangeiro. A lei ainda em vigor (Lei 7.102/83) veda a participação do capital estrangeiro em todas as empresas de segurança privada (artigo 11). O jabuti, no entanto, proíbe a participação estrangeira apenas no capital votante de empresas de serviço de segurança privada especializadas em transporte de numerário, bens e valores (artigo 20, §2º e 4º), liberando o capital estrangeiro para as demais empresas de segurança privada. Ou se limita o capital estrangeiro para todas, ou para nenhuma. Qual o motivo dessa distinção? Não se sabe. Os jabutis costumam ser misteriosos.

O segundo jabuti consegue ser mais inexplicável. O Projeto de Lei 4.238/12 proíbe às instituições financeiras de participar do capital de empresas especializadas em segurança privada e de constituir serviços orgânicos (próprios) de segurança privada voltados para o transporte de numerário, bens e valores (artigos 20, §3º e 31). Por que razão bancos não podem ser sócios de empresas de segurança privada ou verticalizar suas atividades para criar serviços próprios de transporte de valores? Não há motivo aparente algum, salvo o suposto interesse de agentes que atuem nesse mercado em reduzir o número de concorrentes. Os jabutis, pelo visto, não contam seus segredos.

No Brasil, a iniciativa privada é livre nos termos da Constituição (artigos 1º, IV e 170, caput). A liberdade de iniciativa é condicionada pela legislação aplicável à atividade econômica privada desde que esteja de acordo com a Constituição (artigo 170, parágrafo único). A liberdade de iniciativa econômica é a liberdade de exercer uma atividade econômica em determinadas condições, objetivadas pela organização jurídica do sistema econômico nacional. A livre iniciativa tem por finalidade garantir o acesso dos agentes econômicos ao mercado e a sua liberdade de atuação. As restrições à atuação dos agentes econômicos privados devem estar fundamentadas no texto constitucional, sob pena de se criar situações de limitação à iniciativa econômica sem qualquer justificativa.

O caso dos jabutis do Projeto de Lei 4238/12 é mais um exemplo de como determinados interesses econômicos agem sem a devida transparência e controle público. Não existe motivo algum que justifique as discriminações em relação ao capital estrangeiro de modo seletivo, não geral, nem que fundamente a proibição de atuação das instituições financeiras no setor. Caso sejam aprovados no Senado sem que se modifique sua redação, os jabutis do Projeto de Lei 4.238/12 completarão seu ciclo evolutivo e instituirão uma legislação única no mundo. Os jabutis se transformarão, assim, em verdadeiras jabuticabas.

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