Garantias do Consumo

Law & Economics e Direito do Consumidor não são disciplinas incompatíveis

Autor

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

18 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Volta e meia retornam aos fóruns acadêmicos as discussões acerca das resistências recíprocas entre estudiosos do Direito do Consumidor e estudiosos da Law & Economics. Da parte dos primeiros, salvo exceções, é comum verificar as alegações de que a Law & Economics seria necessariamente contaminada por uma ideologia de livre mercado em seu aspecto mais radical, assim como que ela importaria uma submissão do Direito à Economia, à Matemática ou à Estatística, com prejuízo da dogmática e dos valores resguardados na lei. Da parte dos segundos, alguns deles realmente imbuídos de uma concepção de Estado mínimo, questionam-se as bases da própria disciplina consumerista desenvolvida no Brasil, pondo em dúvida valores escolhidos pelo legislador e, em alguns casos, condenando o próprio sistema protetivo, que considera um sujeito vulnerável digno de maior proteção em suas relações jurídicas. Essas posturas demonstram desconhecimento de parte a parte, com prejuízo ao desenvolvimento da política consumerista nacional (o que, supõe-se, seja o objetivo dos estudiosos desse campo) e, ao fim e ao cabo, à própria solidez do mercado nacional (o que, supõe-se, interessa aos estudiosos de Law & Economics).

Vamos às bases. A Constituição de 1988 consagra o capitalismo e a economia de mercado no Brasil. Quanto a esse ponto, não há o que discutir. O mesmo ocorre em relação à inédita disciplina e reconhecimento dos direitos dos consumidores, alçado, pela primeira vez no constitucionalismo brasileiro, à condição de direito fundamental.

A compreensão sistemática desses dados e circunstâncias é capaz de, por si só, evidenciar a inadequação de algumas dessas mencionadas resistências. A proteção do consumidor no Brasil atende a preceitos constitucionais, na linha da consagração de direitos econômicos e sociais que se deu em nível global, na evolução do reconhecimento dos direitos humanos. Sob o aspecto estritamente jurídico, não há como negar sua vigência no ordenamento jurídico nacional. Ademais, sob o aspecto econômico, a tutela do consumidor surge, de forma geral, como um necessário subproduto do próprio capitalismo, na medida em que são identificáveis práticas predatórias no jogo de mercado e que conduzem a distorções indesejáveis para a sua própria subsistência ou para a manutenção do melhor nível possível de competição. Países como os Estados Unidos optam por enfrentar esses problemas prioritariamente por meio de normas antitruste. Outros, alinhando-se, sobretudo, ao desenvolvimento dos direitos humanos, fazem-no de forma dual, por meio de normas concorrenciais e de normas consumeristas, como é o caso do Brasil. Portanto, para além das razões de ordem humanista que motivaram o reconhecimento de direitos econômicos e sociais nas Constituições contemporâneas, como é o caso brasileiro, a disciplina consumerista apresenta-se como um necessário instrumento de manutenção do próprio sistema econômico.

Quanto à alegação de que a Law & Economics importaria em uma necessária submissão do Direito aos preceitos econômicos, é de se evidenciar que o Direito do Consumidor produzido e aplicado no Brasil já utiliza, corriqueiramente, mesmo que não o perceba, as premissas assentadas na Ciência Econômica em suas análises. Exemplo contundente disso reside na própria concepção de racionalidade econômica subjacente à conduta do fornecedor. Na medida em que se propõe uma certa sanção para uma dada conduta do fornecedor no mercado, está-se valendo da concepção muito debatida em Law & Economics de que a pessoa reage a incentivos e procurará, sempre que precisar tomar decisões, optar pela solução que o favoreça (ou que “maximize seus interesses”, ou decidirá com base em “padrões de custo e benefício”). A sanção visaria, partindo-se dessa premissa econômica, desestimular condutas ou práticas. Nada mais Law & Economics do que essa ideia.

No que concerne, especificamente, à premissa da racionalidade humana, uma advertência é essencial. Se, por um lado, alguns estudiosos da Law & Economics criticam o princípio consagrado no Código de Defesa do Consumidor que pressupõe a vulnerabilidade do consumidor na relação jurídica que estabelece com o fornecedor, e, por outro lado, alguns estudiosos de Direito do Consumidor constroem certas soluções ou análises tomando por pressuposto que o comportamento do consumidor é ou será sempre racional, desenvolvimentos recentes daquela escola debruçam-se sobre a chamada “teoria da decisão racional” e oferecem insights relevantíssimos para a compreensão adequada do processo de tomada de decisão humana. Esses estudos, que compõem a denominada Escola da Economia Comportamental (em inglês, Behavioral Economics), têm demonstrado que, se a decisão humana é racional, trata-se, em verdade, de uma racionalidade limitada, capaz de conduzir suas escolhas de forma sistemática e previsível para opções em confronto com seus interesses.

De fato, se apenas recentemente a Escola da Economia Comportamental encontra espaço nas pesquisas acadêmicas brasileiras, especialmente para pesquisadores com formação jurídica, suas bases e revelações, há algum tempo, vêm ganhando expressão em outros países. Desde os trabalhos iniciais de Herbert Simon (1957), posteriormente desenvolvidos com grande repercussão por Daniel Kahneman e Amos Tversky (1970), Paul Slovic (1982) e Lowenstein (1988), uma enorme influência já se verificou, inclusive na promoção de políticas públicas, dos resultados de suas pesquisas empíricas, elaboradas a partir de uma abordagem dos problemas que se beneficia de pressupostos da Economia, da Psicologia e da Biologia, entre outras ciências. Exemplos notáveis dessa influência residem no Behavioural Insights Team[1] inglês ou no Social and Behavioral Sciences Team (SBTS)[2] estadunidense, e que constituem verdadeiros gabinetes de auxílio na tomada de decisões governamentais, em franca sintonia com Poder Executivo de seus países. Conforme nos adverte a professora portuguesa Rute Saraiva, essas iniciativas visam aproveitar “a irracionalidade e inconsistência das preferências dos agentes econômicos a favor destes”[3].

Especificamente no ponto que nos interessa, suas conclusões são seguras comprovações empíricas da vulnerabilidade intrínseca do consumidor, absolutamente coerente com o princípio consagrado na lei. Suas pesquisas evidenciam um ser humano sistematicamente “repleto de heurísticas e vieses, autoconfiança injustificada, uma notável inaptidão para a probabilidade, e uma série de outras características cognitivas irracionais”[4], dotado de traços de a) racionalidade limitada; b) autointeresse limitado, e; c) força de vontade limitada”[5] [6]. Note-se que essas circunstâncias independem do nível cultural ou de educação formal. As conclusões obtidas por essa prestigiada escola (frise-se, evolução recente da Law & Economics) validam e legitimam, também no plano das outras ciências afins, em diversas passagens e como resultado de inúmeras pesquisas empíricas, o princípio legal da vulnerabilidade do consumidor[7], muito contestado, exatamente, por alguns estudiosos de Law and Economics. Ademais, tampouco o reconhecimento da vulnerabilidade de um dos sujeitos da relação importa necessariamente no juízo de valor negativo a respeito do comportamento da outra parte, o fornecedor.

É preciso que os estudiosos do Direito do Consumidor que ainda resistem às possíveis contribuições da Law & Economics permitam-se estudá-la sem receios prévios. É bem verdade que também há pontos de tensão entre as ideias, e esses devem ser enfrentados com argumentos que justifiquem a opção feita, mas se acredita que há muito mais contribuição para o atual estágio do processo evolutivo da política consumerista brasileira do que conflito. Do mesmo modo, é preciso que os estudiosos de Law and Economics reconheçam o caráter absolutamente humanista que subjaz todas as políticas públicas derivadas do reconhecimento dos direitos humanos, sobretudo econômicos e sociais, realizado pelos estados nacionais e que constituem escolhas políticas previamente definidas e consagradas pelo ordenamento jurídico. Igualmente, é preciso que eles estejam ciosos do risco em que podem estar incorrendo ao produzirem as pesquisas empíricas tão festejadas pela Law and Economics: por enviesamento prévio, próprio da humanidade do acadêmico, algumas delas podem servir tão-somente para comprovar aquilo que o pesquisador desde o início acreditava…

Este artigo pretende ser, sobretudo, um convite a novas pesquisas e à união de esforços intelectuais.

P.S.: Tive a alegria de, com parceiros intelectuais da melhor qualidade, com quem muito aprendi, debruçar-me sobre diversas possibilidades de influência positiva da Economia Comportamental sobre aspectos variados da defesa do consumidor contemporânea, especialmente no atual estágio da política pública nacional: a) com a professora da Universidade de Lisboa, Rute Saraiva, estudamos a regulamentação da publicidade voltada para crianças[8]; b) com Diógenes Carvalho de Faria, estudamos a disciplina do superendividamento[9]; c) com Bruno Braz de Castro, aprofundamos o estudo do superendividamento a partir do projeto de lei em tramitação[10]; d) com Walter José Faiad de Moura, estudamos a regulamentação do tabagismo[11]; e com e) Felipe Moreira dos Santos Ferreira, estudamos os impactos no consumidor dos períodos de recessão econômica[12]. Reconheço, entretanto, serem estudos ainda introdutórios, muito havendo a que se evoluir nas pesquisas acadêmicas nesse campo, especialmente no que concerne aos trabalhos efetivamente transdisciplinares, conciliados com uma pesquisa empírica de qualidade.


[1] Segundo seu site, o Behavioural Insights Team (BIT), “is a social purpose company. We are jointly owned by the UK Government; Nesta (the innovation charity); and our employees”. O BIT orgulha-se de ter sido “the world’s first government institution dedicated to the application of behavioural sciences”. São seus objetivos: “making public services more cost-effective and easier for citizens to use; improving outcomes by introducing a more realistic model of human behaviour to policy; and wherever possible, enabling people to make ‘better choices for themselves’”. In http://www.behaviouralinsights.co.uk/, acesso em 15 de janeiro de 2017, às 17h53.
[2] Conforme informa seu site, “Building on SBST’s first year of results, on September 15th, 2015, President Obama issued an executive order directing Federal Government agencies to apply behavioral science insights to their programs to better serve the American people”. In  https://sbst.gov/, acesso em 15 de janeiro de 2017, às 17h57.
[3] OLIVEIRA, Amanda Flávio de Oliveira e SARAIVA, Rute. O Tribunal de Justiça de São Paulo e a anulação da multa aplicada à McDonald’s em razão de publicidade abusiva. Ou, a quem cabe educar nossas crianças? Revista Direito do Consumidor, n. 106, jul-agosto 2016, p. 325-356.
[4] HANSON, Jon D.; KYSAR, Douglas A. Taking behavioralism seriously: the problem of market manipulation. New York University Law Review, v. 74, p. 632, 1999. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1288182>.
[5] Não é exato afirmar que o comportamento que se desvia do previsto pela teoria da decisão racional é “irracional”. Huffman (2010, p. 16), observa que a "'Escolha Racional', então, é simplesmente uma marca que os teóricos aplicaram à conduta idealizada", e observam Jolls, Sunstein e Thaler (1998, p. 1475) que "alguém usando um atalho mental pode estar agindo racionalmente no sentido de estar economizando em tempo de pensamento, mas essa pessoa irá, mesmo assim, formular previsões que são diferentes daquelas que emergem do modelo de escolha racional padrão".
[6] OLIVEIRA, Amanda Flávio de e CASTRO, Bruno Braz. Proteção do consumidor de crédito: uma abordagem a partir da economia comportamental. Revista de Direito do Consumidor, vol. 93, maio-junho 2014, p. 231-249.
[7] “Particularmente para o direito do consumidor brasileiro, a perspectiva de uma racionalidade limitada do agente econômico é capaz de produzir um impacto significativo na compreensão do princípio da vulnerabilidade, ponto fulcral da lei. Evidencia-se, assim, mais um relevante fundamento para a ainda debatida condição de fragilidade necessária em que se encontra o consumidor na relação jurídica que estabelece com o fornecedor”. OLIVEIRA, Amanda Flávio de e CARVALHO, Diógenes Faria de. Vulnerabilidade comportamental do consumidor: por que é preciso proteger a pessoa superendividada. Revista Direito do Consumidor, n. 104, março-abril 2016, p. 181-202.
[8] Op. Cit.
[9] Op. cit.
[10] Op. cit.
[11] OLIVEIRA, Amanda Flávio de e MOURA, Walter José Faiad. É preciso proteger o fumante de si mesmo? Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, Direito e Tabaco, São Paulo, outono 2014, ano V, n. 17, p. 158-165.
[12] OLIVEIRA, Amanda Flávio de e FERREIRA, Felipe Moreira dos Santos. Análise econômica do Direito do Consumidor em períodos de recessão. Uma abordagem a partir da Economia Comportamental. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. vol. 81, p. 13-38.

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