Consultor Jurídico

Eficácia do compliance depende de zelo do administrador, não só de lei

17 de janeiro de 2017, 8h01

Por Luiz Felipe Vieira Neto, Roberta Bezerra

imprimir

Em argumento retórico, e com certa dose de exagero, Thomas Jefferson costumava dizer que “as leis são desnecessárias quando os homens são puros; e são inúteis, quando são corruptos”. A inutilidade a que se referiu o estadista está relacionada, certamente, à falta de efetividade e eficácia do comando normativo, “patologia” quase sempre associada a três fatores: a generalidade da norma, a ausência de controle e a sensação de impunidade pelo seu descumprimento. 

A pouca densidade normativa fruto da generalidade da norma e da utilização de conceitos excessivamente abertos e fluidos (como moralidade e proporcionalidade, por exemplo), não raras vezes, abre espaço largo para os desvios de conduta, quase sempre associados a uma tentativa dolosa de apropriação privada do “espaço” público (corrupção).

Essa “patologia” normativa fez-se presente na Lei 13.303, de 30 de junho de 2016. Publicada há pouco mais de três meses, e conhecida como a “Lei de Responsabilidade das Estatais”, esse novo diploma legal criou diretrizes de controle e de fiscalização por meio de políticas de compliance e de transparência a serem obrigatoriamente adotadas por empresas públicas e sociedades de economia mista das três esferas de governo.

Trata-se, portanto, de lei nacional — e não apenas federal —, que veio à tona como resposta do Congresso à agitação popular provocada pelo grave escândalo de corrupção na Petrobras.

Um dos pontos mais comemorados da nova lei — e proporcionalmente um dos que têm gerado maior apreensão no plano da eficácia normativa — refere-se à imposição de que as estatais desenvolvam programas de compliance, ou de boa governança corporativa, objetivando a gestão racional do risco e a adoção de mecanismos anticorrupção.

Para tanto, a lei exige (artigo 24) que as estatais constituam, no íntimo da estrutura societária e como órgão auxiliar do Conselho de Administração, o Comitê de Auditoria Estatutário, com a finalidade precípua de (i) supervisionar as atividades desenvolvidas nas áreas de controle interno, (ii) monitorar a qualidade e a integridade dos mecanismos de controle interno, das demonstrações financeiras e das informações e medições divulgadas, e (iii) avaliar e monitorar o risco a que esteja submetida a empresa pública ou a sociedade de economia mista.

Embora tenha a lei se proposto a fortalecer os mecanismos de governança corporativa e, com isso, reduzir o campo de atuação para condutas corruptivas, lamentavelmente, ela ficou a meio caminho. As normas que instituiu são demasiadamente genéricas, sobretudo quando se tem em vista a multiplicidade de empresas estatais existentes nas três esferas de governo, com atuações as mais diversas, que vão desde a incursão no sistema financeiro (CEF e Banco do Brasil, por exemplo), passando por entidades que exercem atividade sob monopólio (Correios), até empresas que se dedicam a atividade econômica tipicamente privada, realizada em regime de concorrência.

Artigo publicado na edição online do jornal Folha de S.Paulo de 23 de junho de 2016 revela que a “Lei das estatais teria sido inócua para evitar a 'lava jato'”. E isso se deve não apenas ao fato de que os principais funcionários da Petrobras denunciados na operação tinham perfil técnico e passariam pelo crivo estabelecido pela nova lei para indicações a cargos de direção, mas também dada a generalidade das normas contempladas nesse novo diploma legislativo.

A generalidade dos comandos normativos, associada à fragilidade do controle interno e externo e ao sentimento generalizado de impunidade, cria espaço propício para que a corrupção se instale e se fortaleça. E nesse ambiente político perverso, “mostra-se mais fácil corromper, do que persuadir” (Sócrates). O convite à corrupção torna-se tentador demais à grande maioria.

Nesse tabuleiro de frouxidão institucional, a corrupção pessoal e localizada (comum a todos os sistemas políticos contemporâneos) cede lugar à corrupção sistêmica, que se espraia perigosa e assustadoramente pelas estruturas de poder, intimidando o Estado de Direito, enfraquecendo as bases democráticas da nação, desdenhando do povo e vilipendiando a res publica.

A fragilidade do controle externo vem sendo, diuturnamente, desmentida pela atuação cada vez mais proativa da Polícia Federal, do Ministério Público, das controladorias e dos tribunais de contas. A generalidade do sistema normativo e o controle interno ainda são, todavia, o “calcanhar de Aquiles” do combate à corrupção.

A nova lei veio lançar luzes e novas bases normativas sobre esse tema desafiador. A concretização dos comandos e propósitos legais, todavia, dependerá da seriedade com que cada empresa pública e sociedade de economia mista vai encarar esses novos desafios, já que estarão obrigadas, doravante, a desenvolver programas de compliance e a adotar novas estruturas de controle (como o Comitê de Auditoria Estatutário) para minimizar os riscos de corrupção.

É preciso que esses programas sejam desenvolvidos com seriedade e com a especificidade necessária para identificar os gargalos corporativos e ampliar o espaço para as ações anticorrupção. Esse trabalho demandará, certamente, a atuação de profissionais qualificados, de notória especialização, afeitos aos regimes de boa governança corporativa, capazes de desenvolver programas e rotinas de controle que sejam específicos o suficiente para as necessidades empresariais, mas sem sufocar a empresa em desnecessária burocracia a ponto de nublar a sua capacidade de concorrer em um mercado cada vez mais competitivo.

Não nos parece exata a afirmação de Thomas Jefferson. As leis não são inúteis, mesmo quando se está diante de um sistema patologicamente corrupto. Mas, a eficácia social que delas se espera depende, em grande medida, do enfrentamento dos fatores aptos a potencializar a sua ineficácia.

O trabalho está começando e a nova lei será apenas o ponto de partida.