Ideias do Milênio

"A Primavera Árabe sofreu sérias derrotas, mas ainda não acabou"

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16 de janeiro de 2017, 6h27

Reprodução/GloboNews
Adam Roberts [Reprodução/GloboNews]
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Entrevista concedida pelo historiador e coordenador do livro Resistência Civil na Primavera Árabe: Triunfos e Desastres ao jornalista Silio Boccanera, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

A rebelião popular que ganhou fama como Primavera Árabe sacudiu e excitou o mundo seis anos atrás, com seu palco de conflitos civis e graus variados de devastação na busca de alternativas à regimes autoritários. O auge deu a impressão que a imobilidade histórica das ditaduras nos países árabes da África do Norte e do Oriente Médio cederia espaço ao desejo popular por mais liberdade, menos repressão. O povo na ruas exigia mudanças. Elas vieram, mas não como os manifestantes desejavam. Da Tunísia, onde o movimento começou em dezembro de 2010 até a Síria, no Oriente Médio, vieram tanto reformas moderadas quanto revoluções sangrentas, algumas ainda em ebulição. Por que fracassou a Primavera Árabe? O Milênio levou a questão ao historiador britânico Adam Roberts, da Universidade de Oxford, que coordenou e reuniu o trabalho de muitos especialistas no livro Resistência Civil na Primavera Árabe: Triunfos e Desastres.

Silio Boccanera — Antes de avaliarmos a Primavera Árabe, vamos falar da origem dela. O seu grupo em Oxford estuda movimentos de resistência civil contra regimes autoritários. Por que acha que a Primavera Árabe explodiu seis anos atrás? Por que naquela época e não antes ou depois?
Adam Roberts —
Havia muitos indícios de uma lenta escalada de insatisfação e também de um aumento do uso de ações não violentas. O segundo motivo é mais difícil de provar, mas revoluções acham uma forma de passar de um país a outro, assim como aconteceu em 1848 na Europa. Então, na Primavera Árabe, através de um processo extraordinário, mas não sem precedentes, os acontecimentos na Tunísia levaram muito rapidamente a acontecimentos semelhantes em outros países.

Silio Boccanera — O senhor concorda com quem diz que essas coisas acontecem quando a população perde o medo do regime?
Adam Roberts —
Sim, isso é verdade. Quando ela também perde o respeito pelo regime. Uma característica interessante dos primórdios da Primavera Árabe na Tunísia foi que ela nasceu graças a um estranho paradoxo. Foi a ação do WikiLeaks, ao expor documentos sobre a visão americana extremamente negativa sobre o sistema de governo na Tunísia. Eles conheciam bem os subornos e a corrupção presentes no governo do presidente Bem Ali. Isso encorajou as pessoas a pensarem: “Talvez, se nós agirmos, os americanos não venham resgatar seu aliado”. E acertaram. Devo acrescentar que atos de violência estatal muitas vezes provocam oposição. Então não se trata apenas de situações nas quais o povo perde o medo do regime, mas, às vezes, o regime furioso e indiferente parte para a violência e se revolta. Pode ser uma coisa ou outra.

Silio Boccanera — Um exemplo da Primavera Árabe que algumas pessoas apontam como um bom resultado é o primeiro, o da Tunísia. O país tem um novo governo, conseguiu unir diferentes facções, mas ainda é muito autoritário e repressor. Então será que foi mesmo um sucesso?
Adam Roberts —
Acho que na política, e talvez na vida, nunca devemos esperar o sucesso instantâneo. É algo atraente. Os políticos muitas vezes prometem sucesso instantâneo, mas é algo muito raro, então não devemos encarar isso como a norma. E é verdade que até mesmo na Tunísia, que foi o maior sucesso com o menor custo em derramamento de sangue de toda a Primavera Árabe, até mesmo lá, os jovens dizem que pouca coisa mudou. Foi o fraco sistema de policiamento e o tratamento terrível dado àquele pobre feirante na Tunísia que levaram à revolução.

Silio Boccanera — O estopim da Primavera Árabe foi o ato desesperado do feirante tunisiano Mohamed Bouazizi. Depois de se recusar a pagar propina para polícia, ele ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto.
Adam Roberts — As pessoas dizem que a polícia continua igual: uma mistura de ineficiente, inútil e ocasionalmente violenta. Esse problema ainda não mudou. Pode ser que mude, mas ainda não mudou. Da mesma forma, o governo foi eleito democraticamente, o que é uma mudança e um progresso significativo, mas o resultado foi um homem de mais de 70 anos no comando do país. Então, para os jovens, isso não parece o resultado de uma revolução.

Silio Boccanera — Na Líbia, a revolta popular derrubou o regime e matou o seu veterano líder, Muamar Kadafi, mas os grupos que vieram depois não conseguem se entender e ainda brigam com violência pelo poder em um país dividido.
Adam Roberts —
Acho que a Líbia é o melhor exemplo do problema de se exigir a derrubada de um regime, por mais tirânico que seja, sem ficar óbvio qual sistema político deve substituir esse regime. Assim corre-se o risco de criar exatamente o que temos na Líbia: uma situação de facções rivais e de vácuos de poder, como costumam ser chamados, nos quais grupos como o Isis surgem e assumem o controle porque não existe um sistema adequado de controle no país. É um perigo real, e uma das fraquezas de antigos estudos sobre movimentos de resistência civil é que eles não levavam em conta o perigo da falta de controle. Se não há governo no país, se você meramente exige o fim do regime sem saber o que vai substituí-lo, pode acabar com uma tragédia.

Silio Boccanera — Aconteceram eleições democráticas, o líder da Irmandade Muçulmana foi eleito, o presidente Mursi, que depois foi deposto. O exército voltou e os novos líderes são ainda mais repressores do que Mubarak. Não foi exatamente um sucesso, foi?
Adam Roberts —
Não. E, desde o início, o movimento no Egito, que por um lado foi muito impressionante, com as manifestações na praça Tahrir e por todo o país, que tiveram o apoio até de sindicatos, tudo isso foi impressionante, mas, desde o início, eles confiaram no exército de certa forma. Eles sabiam que o exército se opunha aos planos de sucessão do presidente Mubarak, por isso o exército estava disposto a apoiar os manifestantes. Mas o exército foi um fator de poder desde o início, então é difícil enxergar como um caso puro de resistência civil contra um regime autoritário. Também foi um caso de reposicionamento dos militares dentro do regime. Depois, em 2013, como você bem disse, quando a Irmandade Muçulmana estava no poder havia um ano, o exército promoveu um golpe de Estado para evitar o que temia se tornar uma teocracia de partido único, a Irmandade Muçulmana. E isso anulou o resultado do voto democrático.

Silio Boccanera — E quanto ao Líbano? O senhor mencionou o precedente da Revolução dos Cedros em 2005 no Líbano, quando o povo foi às ruas protestar contra o assassinato do primeiro-ministro. E aquilo pareceu ser o início de alguma coisa. Depois acabou esfriando, mas a oportunidade de o movimento ressurgir durante a Primavera Árabe não se concretizou.
Adam Roberts —
 O Líbano tem muita noção de sua própria fragilidade. O país enfrentou a guerra civil há pouco tempo. É sabido que há divisões internas no Líbano e foi por isso que a Síria originalmente interveio no Líbano. E a Revolução dos Cedros conseguiu forçar a retirada das forças sírias do Líbano. Isso foi uma conquista significativa.

Silio Boccanera — Se tivesse acontecido durante a Primavera Árabe, teria sido um grande sucesso.
Adam Roberts —
Com certeza. Mas, quando a Primavera Árabe começou, havia muito interesse no Líbano, mas também havia a consciência de que ela se tratava de uma sociedade frágil e talvez também houvesse a sensação de que o país não sofria com um longo regime autocrático assim como outros países. O sistema era mais democrático. Acho que foi por esses motivos que o Líbano não se envolveu.

Silio Boccanera — O movimento lá começou de forma semelhante à dos outros países na época, mas se transformou numa revolução terrível e violenta, numa guerra civil que dura até hoje com muitos grupos envolvidos. Seis anos depois, é o pior resultado. Por que a coisa tomou essa proporção?
Adam Roberts —
Acho que o motivo fundamental pelo qual a Síria vive uma revolução tão sangrenta é que o país não tem uma unidade. Ele é dividido entre grupos étnicos e religiosos muitos diferentes. E, se não há uma tradição democrática, é muito difícil fazer uma sociedade assim manter-se unida. O problema é muito parecido com o que existia na Bósnia, na antiga Iugoslávia, na década de 1990.

Silio Boccanera — No caso da Síria, um desses grupos, na Síria e também no Iraque, como hoje sabemos, é o Isis, o chamado Estado Islâmico. Ele ocupou territórios lá e mostrou seu rosto ao mundo depois de 2014, quando revelou seus métodos bárbaros. Eles foram bombardeados por britânicos, americanos, franceses, foram atacados por terra por curdos e outros e continuam resistindo. O que ainda pode ser feito para lidar com o Isis no Iraque e na Síria, que agora recruta no mundo todo?
Adam Roberts —
O problema do Isis é que ele não pode vencer, não pode instalar seu califado, porque ele tem um objetivo que é se opor a todos os regimes do mundo. Ele tem um programa de substituir todos os sistemas de governo existentes por um califado único que governaria o mundo. Mas não tenho dúvida de que o movimento do Isis vai acabar implodindo. Movimentos como esse desenvolvem facções e divisões internas, e a ausência de qualquer controle sobre o poder político que é exercido lá levará à insatisfação. Portanto ele vai passar, mas isso pode levar uma década.

Silio Boccanera — Em Oxford, o seu grupo estuda a resistência civil principalmente por meios pacíficos, e é claro que não dá para comparar dois fatos históricos com facilidade, mas como o senhor compararia essa resistência civil dos árabes na Primavera Árabe a um movimento recente semelhante, que foi a queda do comunismo na Europa Oriental? Como comparar essas duas revoluções?
Adam Roberts —
Acho que, superficialmente, houve muitas semelhanças. E isso levou muita gente a descrever a Primavera Árabe como uma reprise de 1989 e a ideia do efeito dominó, de uma revolução após a outra. Essa visão foi muito eficaz para jornalistas que cobriram 1989, porque, naquela época, foi como se o jornalismo e a democracia tivessem dado as mãos.

Silio Boccanera — Jornalistas e, imagino, alguns acadêmicos também começaram a desejar que a História se repetisse no mesmo formato.
Adam Roberts —
Com certeza. E isso parecia plausível no início. Havia uma esperança inicial de que a revolução que começou na Tunísia e levou à queda de Ben Ali na Tunísia, à queda de Mubarak no Egito…

Silio Boccanera — E à de Kadafi, continuaria.
Adam Roberts —
E também do presidente Saleh, no Iêmen. Foi um número impressionante de cabeças que a revolução cortou. Mesmo assim, foi uma situação muito diferente. Entre outras coisas, na Europa Oriental em 1989, as revoluções aconteceram dentro de um império que tinha um único poder dominante, a União Soviética, claro. Uma União Soviética que tinha deixado completamente de acreditar em si mesma e na receita do comunismo como solução para os problemas econômicos e sociais. O declínio dessa convicção já existia há algum tempo. Então, de certa forma, em retrospecto, os alvos das revoluções na Europa Oriental pareciam ser muito mais fáceis do que os alvos das revoluções no Oriente Médio.

Silio Boccanera — A Primavera Árabe deu aos habitantes dos países uma sensação de orgulho. Eles sentiram que estavam se livrando daquela situação estável, mas autocrática que suportavam havia muitas décadas. Qual é a sensação deles agora? É de frustração?
Adam Roberts —
Resignação e frustração, sim. As lições que serão aprendidas com esses acontecimentos da Primavera Árabe ainda precisam ser solidificadas e esclarecidas, e um dos motivos pelos quais resolvemos escrever o livro foi porque achamos que seria muito importante analisar por que as coisas deram errado e tentar tirar ao menos algumas conclusões preliminares sobre as generalizações que se pode fazer: os movimentos devem avaliar muito melhor qual sistema de governo eles estão apoiando e pretendem alcançar, em vez de simplesmente querer substituir um regime. Essa é a lição mais simples e fundamental.

Silio Boccanera — O senhor mencionou resignação, frustração, decepção, e só se passaram seis anos. A Primavera Árabe acabou ou ainda tem futuro?
Adam Roberts —
Não acho que ela tenha acabado. Ela sofreu derrotas muito sérias, e é um paradoxo terrível o fato de que os recursos para uma luta que pretendia evitar o uso da violência, trazer algo novo para a política do Oriente Médio e criar a possibilidade de mudança não violenta para a democracia tenham acabado, ou melhor, tenham originado tantas guerras. Então essa é uma preocupação. Deve haver uma abordagem nova e diferente, mas em muitos países existem movimentos que operam às vezes numa escala mais modesta, até mesmo dentro da Tunísia, que claramente pretendem evitar o declínio catastrófico para a violência testemunhado por tantos países árabes.

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