Sanha arrecadatória

Lei que tributa streaming iguala cessão de uso a serviço, alertam advogados

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14 de janeiro de 2017, 6h18

A Lei Complementar 157/2016, que permitiu a incidência de ISS sobre serviços de streaming, erra ao tratar um produto, que é o conteúdo disponibilizado pela empresa, como serviço. A opinião é de Rafael Korff Wagner, vice-presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET) e sócio da Lippert Advogados, e de Evandro Grili, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes.

Streaming são transmissões online de músicas, séries e filmes oferecidas por empresas como Netflix e Spotify, por exemplo. E é justamente esse “oferecimento” que gera a questão da incidência ou não do Imposto Sobre Serviço. “Efetivamente não é um serviço, pois não há caracterização de prestação de serviços”, diz Wagner.

Segundo o vice-presidente do IET, quando há um serviço, existe obrigação de fazer, mas no caso do streaming a obrigatoriedade é de dar. Ele explica que as empresas desse ramo de negócios nada mais são do que cedentes, por tempo determinado, de um direito autoral já adquirido por elas.

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Netflix é uma das empresas que passaram a sofrer incidência de ISS sobre suas atividades.
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“Enquanto você paga a mensalidade, você tem direito de usar (de forma doméstica e sem direito de ceder a terceiros) aqueles conteúdos”, detalha Evandro Grili, para quem a norma é inconstitucional.

O advogado diz ainda que a discussão sobre a incidência do ISS sobre streaming lembra o debate que motivou o Supremo Tribunal Federal a proibir a cobrança do tributo sobre a locação de bens móveis.

“A decisão impediu a cobrança do imposto municipal sobre a locação de filmes em VHS, DVD, sobre a locação de cartuchos e discos com jogos de videogame”, relembra Grili. Sobre o tema, a corte emitiu a Súmula Vinculante 31: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

Além mar
O fato de as empresas estarem sediadas no exterior é outro capítulo do debate. Reforçando que as empresas de streaming apenas armazenam o conteúdo e só os cedem ao consumidor por um tempo determinado, Wagner destaca que, apesar das empresas terem filiais no Brasil (o que, teoricamente, legitimaria a cobrança), o material disponibilizado está no exterior.

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Spotify é outra empresa que sofrerá incidência de ISS em suas atividades.
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“É totalmente esquizofrênico”, diz. O que dificulta essa equação, continua Wagner, é o fato de o Judiciário não ter entendimento solidificado em relação à cobrança de ISS sobre serviço prestado no exterior.

Já Grili diz que esse argumento é fraco juridicamente justamente pela possibilidade de os municípios usarem o conceito de que o fato gerador acontece no local do estabelecimento do prestador. “É uma ficção jurídica que tem sido admitida. Nesse caso, o imposto, em tese, seria devido no local do domicílio do estabelecimento.”

O advogado especialista em Direito Digital Rafael Maciel, membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico, vai mais longe e explica que a incidência de ISS sobre serviços prestados a partir do exterior já era prevista mesmo antes da complementação da legislação sobre o tema.

"É o que consta do parágrafo 1º do artigo 1º da LC 116/2003. O dispositivo prevê a incidência até mesmo quando a prestação do serviço tenha se iniciado no exterior e sido concluída no Brasil. Depende de uma análise técnica do local dos servidores, porém se constatado que o acesso é exclusivamente em solo nacional, a Netflix terá que recolher o tributo no local do estabelecimento principal", detalha.

Dupla tributação
Rafael Wagner levanta ainda a hipótese de haver dupla tributação, pois o consumidor já paga impostos, inclusive o ISS, sobre os pacotes de internet necessários para ter acesso ao streaming oferecido pelas empresas. “Pode ser questionado sobre vários pontos de vista”, diz.

Ele complementa o raciocínio explicando que as inovações tecnológicas que surgiram nos últimos tempos não são acompanhadas pela legislação. Como exemplo, o advogado cita o debate sobre o Uber.

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Assim como Netflix e Spotify, natureza dos serviços do Uber também é questionada para fins de tributação.
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Segundo Wagner, o Uber já foi classificado como plataforma de transporte ou aplicativo que apenas coloca o usuário em contato com os motoristas. “O Uber não presta um serviço de transporte”, opina.

Diz ainda que atitudes como essa são tentativas da sanha arrecadatória estatal, que é um comportamento histórico. Classificando essas iniciativas de intervenções exageradas do estado, Wagner ressalta que o “Estado sempre busca ser ‘sócio’ dos negócios”, inclusive desrespeitando garantias constitucionais tributárias.

“Cada ente tributante vai puxar para o seu lado”, afirma Wagner, complementando que o Brasil já tem uma carga tributária elevadíssima e um sistema tributário desproporcional.

Por outro lado, Evandro Grili não vê dupla tributação alguma, reforçando que são contratos diferentes. “Ter acesso a internet e pagar por isso é uma coisa. E isso não tem nada a ver com assinar o streaming de música e vídeo para ter acesso aos conteúdos disponibilizados.”

Esse opinião é compartilhada por Rafael Maciel. "Os fatos geradores são diferentes. Um é o pagamento para ter a conexão à internet, pela qual se pode realizar as mais variadas atividades, e na maioria das vezes gratuitas. Outra é contratar um provedor de aplicações que opera pela internet para usufruir determinado serviço, tal como vídeo ou mesmo contratação de softwares e aplicativos."

ICMS sobre download
Além do debate sobre a incidência de ISS em streaming, há também o da cobrança de ICMS em downloads de softwares. A Confederação Nacional de Serviços questiona o tema no STF alegando que os programas de computador são "intangíveis e incorpóreos", não tendo natureza jurídica de mercadoria, mas sim de direito autoral e propriedade intelectual, do qual seu criador é o titular.

“O adquirente passa a ter, tão somente, o direito de uso, por meio de uma licença/cessão concedida por seu criador, que é o seu real proprietário”, diz a confederação. A ação foi movida depois que o governo de São Paulo instituiu a cobrança. Em janeiro de 2016, a administração estadual paulista suspendeu a exigência para os programas transferidos de eletronicamente, mas manteve o tributo nas demais operações.

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