Senso Incomum

30% das cirurgias jurídicas dão errado. O que há com os "médicos"?

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12 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]a) “O acordo”:
Vejo na GloboNews de sábado (7/1) que o Poder Judiciário, Ministério Público e a Defensoria Pública do Amazonas fizeram um acordo. Objeto: de agora em diante, toda pessoa presa deve passar por audiência de custódia, para que só fiquem presas as pessoas que assim necessitem. Bingo. Além disso, vai haver mutirão. Quer dizer: até então a liberdade valia menos. Isso vale para todo o país. Livros e professores ensinam que só pode ir para o cárcere — cautelarmente — o indivíduo que preencha os requisitos do artigo 312 do CPP. Mas, nossos agentes estatais não sabiam disso? Bom, vamos ler o resto. Sigam-me.

b) As bizarrices: o jovem Júlio fazendo história e o acidente (sic)
Na verdade, não se sabe o que é mais bizarro. O secretário da juventude (?), um tal de Bruno Júlio, menino alçado a esse cargo imaginário, disse a frase do século até agora: Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. Incitação ao crime. E a estultice. Vejam: quando ele disse isso, representava ainda o governo, do alto de seu “cargo” de secretário “julior”. Só estocando comida, mesmo. Mas a bizarrice não fica nisso, porque ele foi demitido não pelo que disse, mas porque falou de assunto que não era de sua alçada. Binguíssimo. Outro ministro disse que o governo ficou desconfortável com as declarações do jovem Bruno. Desconfortável?

Já o presidente Temer criou um novo sentido para a palavra chacina. Como um nomoteta ou onomaturgo da aurora da civilização, sua excelência deu o nome à coisa: acidente. É o que se chama de pós-verdade. Novilíngua. Como em 1984, de Orwell: o Ministério da Guerra era chamado de Ministério do Amor. O Ministério que cuidava da fome era chamado de Ministério da Fartura. O resto é auto explicável.

c) A lei? Há lei?
Pois o ministro A-lexandre de Moraes não deixou por menos. A propósito: A-lex quer dizer “sem lei”; sim, o sistema penitenciário não tem lei. Ou tem? Aliás, parece não haver regras claras nem para registrar a agenda de sua excelência, uma vez que a sua assessoria sequer conseguiu dizer a data certa da audiência da governadora de Roraima pedindo ajuda antes do “acidente” (sic) ocorrido em Boa Vista. Uma sucessão de trapalhadas. Chegou a dizer que essas brigas de facções eram bravatas (logo depois ocorreram os dois “acidentes”).

Espanta-me o obsequioso comportamento da Secretária Nacional dos Direitos Humanos. Até agora, sua contribuição, ao que li, foi dizer que foi um erro não separar as facções nos presídios. Pois é. De todo modo, aproveito para avisar a professora Flávia que ela comanda a secretaria de direitos humanos e que ela não pode confundir isso com o jargão de Bruno, o espaçoso menino, para quem os Direitos Humanos-são-só-para-humanos-direitos (esse trocadilho é infame, mas não é meu). Professora: melhor sair para não manchar sua bela biografia. Na verdade, a esta altura pode ser tarde. Com tantos massacres e violações de direitos humanos, Inês é morta.

Autoridades, MPF, MPE, DP, PJ, Polícia, todos sabiam das condições do presídio privatizado de Manaus. E de Roraima, etc. O Conselho Nacional de Justiça sabia. As pedras sabiam. Jornalistas e jornaleiros sabiam. Aliás, todos sabem de há muito o que acontece nos presídios. Ninguém dá bola para o sistema prisional. Qual é o papel do juiz e do promotor das execuções? Em seminário ocorrido em Camboriú (SC) dias atrás, ficamos sabendo que o CNJ, ao fiscalizar o Presídio Central de Porto Alegre, teve que pedir licença ao “prefeito” das galerias. Binguíssimo. Presídios tomados. Por facções.

d) Meu pedido de intervenção e os princípios (in)sensíveis da CF
Em 2009, atuando como procurador de Justiça Criminal, requeri ao procurador-geral da República a intervenção no Rio Grande do Sul por violação dos princípios sensíveis, circunstância bem relatada por André Karam Trindade no diário de classe de sábado. Razões? O sistema gaúcho estava superlotado. Havia 12 mil vagas para 23 mil presos (em 2009 — tudo igual a hoje no resto do país). E o Judiciário estava deixando de prender pessoas perigosas porque não havia vagas. Alguns casos concretos como a prisão de quatro pessoas que tirotearam com a polícia, um assaltante que fizera uma menina de refém, entre outros casos que não-foram-recolhidos-por-falta-de-vagas, fizeram com que eu não admitisse a suspensão da lei. Denunciei dois “estados de exceção”: um, o prisional, violando a LEP e, outro, a segurança dos demais cidadãos, que estavam sendo assaltados por pessoas que deveriam estar presos e não havia vagas no “sistema”. Portanto, a violação dos direitos humanos tinha uma dupla face. Como continua tendo. Aliás, o PGR sentou em cima da representação. Não deu bola. Como o ministro Alexandre não deu bola para o pedido da governadora de Roraima. Como calculou o deputado Major Olímpio, com os dois “acidentes” o Estado poupou R$ 3,6 milhões em um ano. A morte como “solução final”. Eis o lema: Uma vez que os condenamos entre nós, matem-se entre vós! Bingo outra vez!

Em 2009, juntei dados dos mais variados: as decisões que mandavam soltar aos borbotões pessoas que não poderiam estar em liberdade, casos que demonstravam que aqueles que dias antes tinham de ter sido presos (e não foram) haviam inclusive cometido latrocínios e juntei filmagens do estado das celas e das galerias. Para se ter uma ideia, falava-se de contrato pelo qual as facções dividiam o presidio central. Pelo contrato, a facção administrava tudo, desde a venda de drogas até os castigos. Os familiares tinham que depositar, na rede bancária, os valores atinentes a: direito ao sono, tipo de drogas consumidas pelo preso, seguro de bunda, enfim, tudo o que diz respeito à barbárie pós-moderna do sistema que está delineado na idealística Lei de Execuções Penais.

e) O “ontológico” Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)
E vejam que, desde 2015, nossa Suprema Corte declarou o sistema carcerário como Estado de Coisas Inconstitucional. Em ADPF. É a primeira vez que uma “coisa” inconstitucional ainda gera efeitos, se me permitem a ironia. Na época, fiz uma dura crítica à decisão, inclusive alertando para o risco do forte desgaste do STF, porque não havia como fazer cumprir a referida decisão. Porque não há coisas inconstitucionais. Coisas não podem ser inconstitucionais. Nem seu “estado”. Passado mais de ano, eis “a solução”. Estou curioso para saber qual é o precedente (já que está na moda falar disso) que se pode tirar da ADPF…

f) Direitos humanos e a ontologia do mendigo
Acreditar em “estado de coisas inconstitucionais” é fazer fé em “ontologias”. Veja-se como os juristas gostam de “ontologias”. Pensa-se que existem essências nas e das coisas. Trata-se de uma tese realista (metafísica clássica). Acredita(va)-se que há(via) uma essência nas coisas. Hoje ainda gostam de falar em ratio essendi. “Ontologia” seria o “ser das coisas”. Como seria isso? Mais ou menos assim: Primeiro imagina-se coisas e depois delas se tiram “essências”. Vamos imaginar um pouco isso. Faço, é claro, uma caricatura bem humorada: A “coisa” coisa julgada a gente imagina sendo uma senhora obesa, que mal pode andar; a “coisa” litis consorte ativo parece um sujeito longilíneo com gel no cabelo; a “coisa” litis consorte passivo… já não; a “coisa” ADPF parece um advogado com terno maior que ele e com uma pasta 007 debaixo do braço; a “coisa” ação popular, ontologicamente, deve ser como uma vendedora de Avon; o/a aluvião deve ser escritx como x-aluvião (porque é uma questão de gênero; sim, há uma disputa para saber se é a ou o aluvião; a ou o usucapião — mas a “essência” da coisa aluvião é uma coisa — sim, uma coisa — que vem e se agrega ao seu patrimônio); o princípio da dignidade parece estar cansado, algo como um operário, com macacão e tudo, que faz de tudo um pouco e está com o salário atrasado; já a “coisa” direitos humanos imagino ser algo como um mendigo com um pires na mão, andando de muletas; agravo de instrumento é um flanelinha (é insistente); e o ECI (estado de coisas inconstitucional) é algo universalizante: como se houvesse um conjunto de coisas que seriam, em si mesmas, inconstitucionais. Tirando a caricatura… essa “coisa” de estado de coisas inconstitucional remonta, sim, filosoficamente, à metafísica clássica. Trata-se da tese da filosofia como espelho da natureza. Adeaquatio intellectum et rei. Considera-se que os enunciados verdadeiros se referem a estado de coisas existentes – e nisso reside um compromisso ontológico. “O estado de coisas” substitui a antiga substância do realismo (como lembra o filósofo Smilg Vidal, falando de “la verdade como “adecuación”). Acharam que inventei isso? Ah: faltou o livre convencimento. “Ontologicamente”, imagino uma autoridade condenada por improbidade (ou algo assim) aposentada com vencimentos integrais: “livre-com-vencimento(s)”!

Sigo. Como a ontologia clássica e a verdade real são coisas interligadas, poderíamos extrair desse conceito (estado de coisas inconstitucional) a sua “essência”, se me permitem uma blague com a tal “verdade real”: a essência da inconstitucionalidade… tem como substância…o próprio Brasil. Fracassamos. O problema será a modulação dos efeitos (efeito ex tunc? Ex nunc?). E como se retira (ou se capta) a essência das coisas? Quem vai saber?

Post scriptum: quando leio que uma desembargadora de Santa Catarina se orgulha de nunca ter concedido uma liminar em habeas corpus; quando leio que só agora se deram conta, no Amazonas, das audiências de custódia; quando leio que um promotor de São Paulo, que já dissera que a polícia podia matar uns “bugios” e que ele arquivaria os inquéritos, agora, preconceituosamente, diz que a desembargadora do Amazonas tem “cara de empregada” e que poderia fazer faxina por R$ 50 na casa dele, quando sei — e já denunciei isso — que, todos os dias, mandamos para prisão pessoas condenadas por inversão do ônus da prova, quando o próprio ex-presidente do CNJ diz que denunciamos mal, prendemos mal e condenamos mal, quando os tribunais (todos) dão mau exemplo ao não cumprirem as leis… cada vez fica mais claro porque o Brasil é isso-que-está-aí. Não poderia ser diferente. O Brasil tem como futuro o seu imenso passado (Millôr). Por isso ainda há elevadores sociais e de serviço. E elevadores privativos. Como disseram a atriz da Globo e a “promoter” paulistana há 20 anos (eu denunciei isso à época), “cada um tem de saber o seu lugar”… Depois vamos nos queixar.

De novo, insisto com Eráclio Zepeda, o poeta mexicano: quando a água da enxurrada vem e cobre a tudo e a todos, é porque já de há muito começou a chover na serra. Nós é que não demos conta.

A propósito: se o establishment jurídico-político está se dando conta — agora depois dos dois “acidentes” — de que 30% dos encarcerados (sim, 30%) não deveriam lá estar, é porque, então, reconhecemos que prendemos mal, denunciamos mal e condenamos mal. E defendemos mal. No mínimo, confessamos que erramos em 30% das “cirurgias” judiciárias (fossemos médicos… que horror!).

O interessante é que perdemos o pudor: não há problema nenhum em dizer que mais de 100 mil presos provisórios não deviam estar nos presídios. “— Vamos fazer mutirões”. Viva. E continuar agindo do mesmo modo? Prendendo mal… completem a frase. Pergunto: fosse uma fábrica e 30% dos produtos saíssem com defeito, o que fariam os proprietários?

Nada disso vem de chocadeira! Ah, mas não vem mesmo. Alguém fez isso!
Não há grau zero. A conta vem a cavalo. Jabuti não sobe em árvore. Alguém o botou lá. Parafraseando um filme trash (e o Brasil é um filme trash: a gente enxerga o zíper da fantasia do monstro… mas o diretor não): “eu sei o que vocês fizeram até agora”. [1] Meu amigo Alexandre da Rosa perguntava, aqui na ConJur: como ensinar processo penal depois da "lava jato"…(ler aqui). Ao que respondi, perguntando: mas, já se ensinava processo penal antes?

O Conselheiro Acácio é que estava certo: as consequências vem sempre depois. Viram no que dá ensinar LEP cantando funk ou rap? Viram no que dá falar em “conceito ontológico de delito”? Viram no que dá ficar acusando o “maldito garantismo”? Com “o maldito garantismo” (já vi muita gente fazer essa “acusação”) estes 30% estariam presos? Hein? Viram no que dá falar, ensinar e aplicar a verdade real? Primeiro põem dezenas de milhares no cárcere e agora, por mutirão, confessam o erro? Viram no que dá transformar concursos públicos em quiz shows? Viram no que dá ensinar e estudar por facilitados e resumões? Viram no que dá dizer que princípios são valores? Viram no que dá dizer, quando da aprovação do artigo 212 do CPP, que não precisava ser cumprido porque o que valia era a tradição (eu lembro muito bem dos penalistas e processualistas famosos que disseram isso).

Garçom: traz a conta.


1 Não, não sou um outsider. Estive 28 anos dentro. E tenho estatísticas que demonstram que ao redor de 80% dos pareceres que emiti em segundo grau foram para reformar decisões equivocadas de primeiro grau e denúncias mal formuladas. Cerca de 70% dos pareceres foram a favor dos réus: não porque “gostava deles”; mas porque as decisões originais não paravam em pé. Dizia-se, à época, quando meu parecer era pela condenação: Bom, se até o procurador Lenio sustenta a condenação… Não me surpreende ouvir que 30% dos presos provisórios estão assim indevidamente. Mas não me surpreende, mesmo. Fora o restante “das coisas inconstitucionais”.

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