Direito Comparado

Código Civil completa 15 anos com o mérito de ter trazido estabilidade ao Direito

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

11 de janeiro de 2017, 17h38

Spacca
O Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, completou nesta terça-feira (10/1) 15 anos de sua promulgação. Essa efeméride, em tempos de mudanças legislativas apressadas e com baixa participação das universidades (até por culpa dela mesma), não pode ser ignorada. Nesta coluna, não se fará um inventário dos principais fatos que envolveram o processo de codificação civil no país, muito menos uma análise superficial dos livros do código de 2002. Não terão centralidade aspectos históricos. Esta coluna, que também dialogará com a experiência estrangeira, tem três objetivos: a) examinar os efeitos do vigente Código Civil no Direito contemporâneo; b) testar a hipótese de que o movimento de codificação ainda é útil ou atual; c) indagar sobre a conveniência de um código global, como se pretendeu o código de 2002.

O código de 2002 não operou uma revolução no Direito Civil brasileiro, como alguns tentaram nele identificar. O uso de cláusulas gerais era encontrável no código de 1916, em menor escala, evidentemente. Questões de natureza moral, consubstanciadas especialmente no Direito de Família, desde os anos 1960, passavam por um lento, mas permanente processo de erradicação de nossas leis civis, ao exemplo do divórcio e da união estável, ao tempo em que a jurisprudência oferecia soluções progressistas ou conservadoras, a depender das circunstâncias históricas ou de contingências pessoais de certas figuras de destaque na cena nacional. A Constituição de 1988 veio a consolidar diversas tendências de evolução do Direito de Família e do Direito das Coisas, que já se encontravam na lei, na doutrina ou na jurisprudência, o que obrigou, por decorrência natural da vigência de uma nova Constituição, a se considerar não recepcionados vários dispositivos do código de 1916. Evidentemente que o fator retórico, que nunca pode ser desconsiderado, serviu para reescrever a história de certos institutos ou figuras jurídicas, como a célebre função social da propriedade, inserida no ordenamento jurídico pelo regime militar em 1964 (Estatuto da Terra) e 1967-1969 (Constituição).

Como era propósito dos autores do anteprojeto do atual Código Civil, membros da comissão presidida por Miguel Reale, aproveitou-se ao máximo a estrutura do código de 1916, o que foi adequadamente considerado como uma “reforma” do código anterior, mas enriquecida com décadas de experiência doutrinária e jurisprudencial. Não se causa é que se ergueram vozes respeitáveis contra a edição do novo Código Civil, em um exercício legítimo da crítica acadêmica, ao exemplo de Antonio Junqueira de Azevedo, Luiz Edson Fachin e Gustavo Tepedino.

Passados 15 anos, as virtudes da nova codificação terminaram por se afirmar, até por seu caráter de manutenção das partes conserváveis do código de 1916, ao passo em que algumas de suas deficiências hão sido mitigadas (ou infelizmente aprofundadas) pelo trabalho da jurisprudência e da doutrina (esta última cada vez menos influente). De tal modo, é possível respçonder ao primeiro tópico, formulado na abertura da coluna: os efeitos da nova codificaão.

O primeiro — embora não tenha sido o mais importante — está na unificação das obrigações de Direito Civil e de Direito Comercial. Retomando-se uma ideia do século XIX, presente nos escritos de Augusto Teixeira de Freitas, o Código de 2002 revogou a Parte Primeira do Código Comercial de 1850, um dos grandes monumentos jurídicos de língua portuguesa. Embora se tenha conservado a autonomia do Direito Empresarial, que ganhou um livro específico no Código Civil, o tratamento unificado de obrigações e contratos de Direito Privado foi excelente em termos jurídicos, econômicos e sociais. Imaginar que alguém, em 2001, ao enfrentar um problema com vícios redibitórios em uma compra e venda teria de se haver como prazos de 10 (Código Comercial), 15 (Código Civil) ou 30 dias (Código de Defesa do Consumidor) é algo que beira um pesadelo. As especificidades dos contratos comerciais permanecem, mas é enorme a tranquilidade de se localizar essa matéria referida em um livro específico, com normas gerais e especiais sobre contratos.

Outro importante efeito está na possibilidade de se renovar a interpretação do Direito Civil. Evidentemente que toda legislação nova traz consigo a busca por novos caminhos hermenêuticos. Muitas vezes, esses caminhos se revelam atalhos ou levam a destinos indesejáveis. Na experiência do código de 2002, foi interessante para que os civilistas deixassem de lado a (cada vez mais consolidada) impressão de que a legislação extravagante havia substituído o Código Civil como fonte primária de soluções para casos concretos. O peso dos quase 90 anos de vigência do código de 1916 havia sido excessivo para condená-lo a uma retórica defensiva, muito bem ilustrada por Ricardo Lorenzetti, na abertura de seu livro Fundamentos do Direito Privado, traduzido por Véra Maria Jacob de Fradera, quando ele compara o Código Civil aos velhos centros das grandes cidades, abandonados pelos habitantes dos bairros residenciais, que neles encontravam quase tudo o que antes buscavam nos centros[1].

As cláusulas gerais, aprofundadas no código de 2002, talvez tenham sido a grande promessa da codificação civil do início do século XXI. Para o bem ou para o mal, elas encontraram um ambiente fértil para os exageros em certa interpretação judicial e uma profunda incapacidade da doutrina em coibi-los com uma crítica honesta e contributiva. Esse é um dos efeitos que ainda carece de maior distanciamento histórico para ser avaliado, especialmente quanto ao valor da técnica legislativa das cláusulas gerais em uma sociedade que cada vez mais reclama de segurança jurídica e objetividade normativa para a tomada de decisões.

Quanto à segunda questão proposta, a utilidade e a conveniência dos códigos, ela vem a ser fonte de um debate contínuo, que atravessará o século XXI, assim como o fez no século passado. Não há mais as certezas autoconfiantes nas codificações, que havia no século XIX, e, no entanto, não se encontram as incertezas depreciativas das codificações, que vicejaram a partir dos anos 1930-1950 em muitos países. Se não chegarmos a um ponto de equilíbrio, contudo, é possível admitir que a ideia de codificação segue viva nos parlamentos cada vez mais fecundos nesse tipo de produção legislativa. Os austríacos, os alemães e os franceses mantêm seus códigos do século XIX, respectivamente promulgados em 1812, 1804 e 1896. Os códigos da Alemanha e da França sofreram grandes reformas em 2002 e 2016, respectivamente, em um processo muito semelhante ao que ocorreu no Brasil, embora tenham mantido em vigor seus códigos originais.  

Nos últimos 30 anos, contudo, elaboraram-se dezenas de novos códigos civis. Alguns deles, por efeito das transformações ocorridas após a queda do Muro de Berlim, como os códigos da Ucrânia (2004), da Romênia (2011), da República Tcheca (2012), da Lituânia (2000), da Federação Russa (cuja renovação total concluiu-se em 2008), dentre outros. No Reino dos Países Baixos, houve uma ampla reforma em 1992, que praticamente se pode considerar um novo Código Civil. O Código Civil do Quebec é de 1994, ao tempo em que a Região Administrativa de Macau editou seu novo Código Civil em 1999.

O Código Civil e Comercial argentino foi promulgado em 2014. Embora muito criticado, aproximou-se da experiência brasileira ao unificar as matérias cíveis e comerciais. Em muitos países, permanecem as divisões entre códigos civis e comerciais por mero apego à tradição. Modernamente, não se cogita mais em se elaborar um Código Comercial separadamente do Código Civil.

A vitalidade dos modelos de codificação no Direito Civil parece responder positivamente à segunda questão.

Remanesce a terceira indagação sobre a supervivência de um código central. O discurso sobre a centralidade do Código Civil não se confunde com uma afirmação de sua supremacia na ordem hierárquica das normas jurídicas. É evidente que a Constituição é o conjunto de normas que vincula e subordina as emanações do legislador ordinário, assim como o faz em relação ao Estado-juiz e ao Estado-administração. É também claro que, se admitida uma ordem jurídica pluralista e não monista, não se pode reconduzir tudo à Constituição e esperar que todo o direito, especialmente aquele produzido fora do Estado, seja uma mera reprodução da vontade constitucional. 

Feito esse esclarecimento, a noção de centralidade está em se afirmar que um Código Civil é suficiente para reger o sistema de Direito Privado ou se o ideal estaria na adoção de códigos setoriais. Quanto a essa resposta, volta-se para o que disse Reinhard Zimmermann ao ser indagado sobre a conveniência do Código Civil central na contemporaneidade:  

“Mas o que sobrará do Código Civil se o Direito do Consumidor, o Direito Comercial, o Direito de Família, e possivelmente também outras partes forem retiradas? Considero que seja errado conceber um código dessa forma. O código pode mudar e, de fato, deve mudar paulatinamente. Mas é necessário lembrar que as diversas áreas do Direito Privado estão profundamente interligadas. Nesse sentido, o Código Civil pode perder um pouco da sua aura de monumento atemporal e se tornar algo mais próximo de um canteiro de obras.”[2]

No Brasil, a existência de um Código de Defesa do Consumidor decorre de um comando constitucional específico, o artigo 48: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Nosso CDC, editado em 1990, é um belo exemplo de uma codificação contemporânea bem-sucedida.

Quanto a fracionar o Código Civil para dele retirar, por exemplo, o Direito de Família ou o Direito Empresarial, essa não parece ser uma iniciativa das mais convenientes. A experiência estrangeira assim o confirma, quando se observa a manutenção dessas matérias na maior parte dos códigos civis contemporâneos. O exemplo argentino, já referido, é apenas um deles.

Evidentemente que o código de 2002 apresenta problemas. Muitos deles poderiam ser resolvidos por reformas pontuais, sem comprometimento de sua estrutura e de seus princípios fundantes.

A mudança de códigos reflete câmbios muito sensíveis em três níveis, não necessariamente simultâneos. O primeiro é o político-econômico, quase sempre simbolizado por trocas de regimes ou de sistemas econômicos, bem como a descolonização. O segundo é uma grande revolução de valores sociais, como o que ocorreu na década de 1960 ou durante os anos 1930-1940. O terceiro é o surgimento de novas escolas de pensamento jurídico ou a mudança de matriz na recepção de influências de sistemas jurídicos exógenos, ao exemplo do que ocorreu em Portugal com o código de 1966, que representou a mudança da matriz francesa para a alemã. Fora disso, salvo méritos inexcedíveis de um código, este não será feito para durar.

O código de 2002 celebra seus 15 anos com méritos. Um dos maiores, embora ça va sans dire, talvez esteja no fato de ter sido fruto de um lento, longo e refletido processo legislativo, à semelhança do código de 1916. Que venham os próximos 15 anos. E que a doutrina tenha, nesse próximo marco, uma função mais relevante e independente na construção do sentido do Código Civil.


[1] LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado.Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais,1998.
[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sergio. Entrevista com Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 5. ano 2. p. 329-362. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2015. p.359.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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