Opinião

É prudente construir exceções à regra da execução em segundo grau

Autor

  • Eugênio Pacelli de Oliveira

    é mestre e doutor em Direito. Advogado ex-procurador regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República.

10 de janeiro de 2017, 19h04

Bobbio, em obra imperdível aos estudiosos do Direito, positivistas ou não, advertia que a verdadeira questão a ser enfrentada neste século não seria mais sobre o que é o Direito, mas, para que serve o Direito? De modo assim bem simples, os novos tempos não estariam mais ao abrigo do estruturalismo, mas sob as ponderações epistemológicas do funcionalismo.

Recém-chegada ao Direito Penal brasileiro, a aludida perspectiva funcionalista levanta relevantíssimas indagações acerca das funções da pena pública e do direito penal, além de se insinuar também como proposta de revisão das principais categorias da dogmática.

O primeiro debate, sobre as funções da pena pública, é tão velho quanto o próprio direito penal. Pior, enquanto a dogmática penal vem se sofisticando cada vez mais ao longo dos anos, o tema da pena jamais foi resolvido satisfatoriamente. Mas, habemus legem. E o art. 59 de nosso Código Penal esclarece que a aplicação da pena se destinaria à prevenção e à reprovação do delito.

O espaço aqui é pequeno. O tema é infindável. Cumpre então traçar os limites dessa abordagem. Dois eventos recentes convidam a todos para nova imersão nos significados e consequências que deles poderão ser extraídos.

A primeira é a virada da jurisprudência da Suprema Corte, para o fim de permitir a execução provisória da pena, como se definitiva fosse, a partir do segundo grau de jurisdição. A segunda, em meio a gritos, lamentos e brados, se reporta às recentes tragédias ocorridas no sistema penitenciário nacional.

O propósito desse texto é reunir as duas questões sob a perspectiva funcionalista, à consideração da validade e da exigência do citado art. 59 do Código Penal. Observe-se, por primeiro, que não há como fazer concessões em questão fundamental e vinculante de direitos igualmente fundamentais: a modulação de significados do princípio da não culpabilidade – ninguém será considerado culpado – e do quase secular conceito nacional de trânsito em julgado, tal como realizado pela Suprema Corte, é mesmo inadmissível!

Pode até traduzir preocupações nobilíssimas com outras questões subjacentes ao enfrentamento da criminalidade, mas é juridicamente insustentável. O Supremo Tribunal Federal sabe disso. Mas quis assim mesmo.

Certamente não veio daí, dessa mudança jurisprudencial, a tragédia carcerária aqui referida, que deve sempre ser entendida no plural. O ambiente nefasto e o altíssimo grau de periculosidade da vida no cárcere são conhecidos há muito tempo. Um Ministro da Justiça chegou a dizer, publicamente, que preferia estar morto a ser preso!

Preferimos outra via. A de um funcionalismo processual penal e penal pelo menos redutor de excessos, e, sobretudo, dos mais que evidentes riscos de aprisionamento de pessoas que não serão condenadas ao cárcere após o trânsito em julgado!

Note-se que, a se manter o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, muito em breve nós teremos atingido as metas de celeridade processual impostas pelo Conselho Nacional de Justiça e, enfim, teremos também uma população carcerária ainda maior que a atual, já em torno de mais de meio milhão de pessoas. E a culpa não será do Judiciário, ressalvado o pecado originário da nova ordem.

Mas se a execução provisória com jeito e efeito de definitiva continuar a ser imposta indiscriminadamente em segundo grau, aí sim, a responsabilidade passará a ser dos órgãos públicos que cuidam da persecução penal, com o Poder Judiciário à frente.

Nem estamos ainda a cuidar, como ainda o faremos em outras instâncias editoriais, do injustificável excesso de prisões cautelares. Não é possível que haja tantos casos de indispensabilidade da privação da liberdade para a tutela da investigação e do processo. Prende-se como nunca se prendeu antes. Aplausos populares são reconfortantes, mas não podem ensombrar os deveres normativos.

Mas o objeto de nossas cogitações tem outro endereço, bem mais modesto: porque não pensarmos na imediata criação de exceções à regra da execução em segundo grau? Porque não reconhecer que inúmeros julgados nas instâncias ordinárias conflitam com entendimentos dos Tribunais Superiores em matéria assemelhada?

De outro lado, não são poucos os casos de indefinição conceitual na jurisprudência nacional. O âmbito de aplicação do crime de lavagem de dinheiro é um exemplo cristalino: quem não se deparou com a frequente confusão entre atos de consumação do crime (pelo desvio clandestino de valor) e imputações de ocultação como lavagem?

Há, com efeito, relevantes questões de direito penal não consolidadas na jurisprudência nacional e que nada tem que ver com a materialidade e da autoria. Questões de tipicidade mesmo, sem falar em questões ainda mais complexas como ocorre no concurso aparente de crimes.

Todos conhecemos as dificuldades do acesso aos Tribunais Superiores pela via dos recursos de natureza extraordinária, e, sobretudo, em matéria de aplicação da pena. E, no entanto, são tantos os erros de dosimetria que a ação de habeas corpus frequentemente entope os gabinetes dos Ministros desses Tribunais. Inevitavelmente!

O que precisamos começar a discutir, e imediatamente, é se o juiz ou tribunal deve ou não levar em consideração o tipo de prisão ao qual está remetendo o condenado, seja como medida cautelar, seja como pena provisória com efeito de definitiva.

Se o que se pretende é manter a execução da pena em segundo grau, precisamos urgentemente abraçar o funcionalismo e indagar se aquela prisão cumpre mesmo as funções da pena pública. Se ela é mesmo indispensável para prevenir delitos. Quantos não são os casos de dúvida sobre o erro de proibição, por exemplo?

Em síntese, e apenas para início de conversa: havendo possibilidade de revisão da condenação nas instâncias superiores, ou seja, sendo relevante o conteúdo de direito da questão penal, não seria funcionalmente adequado postergar a execução até o assentamento em definitivo do caso concreto? Não seria prudente construirmos algumas exceções à regra da execução em segundo grau? Se com isso conseguirmos poupar a vida de um único inocente já terá valido a pena! A de Fernando Pessoa e não a do cárcere.

P.S. Éramos a favor da Emenda Peluso. Porque sempre acreditamos ter compreendido o significado jurídico de nossas opções constitucionais sobre o tema.

Autores

  • Brave

    é mestre e doutor em Direito. Foi procurador regional da República, relator-geral da Comissão de Juristas responsável pela elaboração do novo CPP (Projeto de Lei 8.045/10, Câmara dos Deputados).

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