Contas à Vista

Que venha 2017, e traga boas notícias para o Direito Financeiro

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10 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Foi-se o ano de 2016, alardeado por todos como muito difícil, chegando melancolicamente ao fim. Para o Direito Financeiro, também não foi dos melhores, apesar de não ter sido tão ruim quanto o de 2015, que começou mal[1] e terminou ainda pior[2].

Questões financeiras ocuparam o centro das atenções, e o impeachment da Presidente da República por crimes de responsabilidade em matéria orçamentária, se de um lado evidenciou a má conduta na gestão das finanças públicas, ao menos mostrou a força da legislação financeira e a necessidade de que seja respeitada, bem como a independência dos órgãos responsáveis pelo controle externo, como os Tribunais de Contas e o Congresso Nacional.[3]

Vislumbra-se um ano de dificuldades, e esperamos que traga avanços no âmbito do Direito Financeiro que possam colaborar para a recuperação da economia. Ou, ao menos que não se dê continuidade à degradação que foi imposta às normas de responsabilidade fiscal nos últimos anos.

Inicia-se com notícia da má situação financeira de estados e municípios, e a chance que está sendo dada aos Estados para que possam se reerguer, com a recente publicação da lei complementar 156, em 28 de dezembro de 2016[4]. Esta lei autoriza que a União reestruture as obrigações financeiras estaduais tanto por meio da prorrogação dos prazos de pagamento quanto pela via da redução das prestações.

Assim, os contratos de refinanciamento firmados com a União (como aqueles ocorridos no bojo da lei 9.496/1997) admitem prorrogação dos prazos de vencimento das parcelas, esperando-se que com a reordenação do cronograma dos pagamentos se alivie a difícil situação financeira dos Estados. E, além da nova organização dos pagamentos, autoriza-se ainda a União a diminuir o montante das prestações – reduções extraordinárias que, em relação ao conturbado segundo semestre de 2016, podem chegar a 100% da parcela mensal devida (ver artigo 3º, §3º, da lei complementar 156).[5]

Além das condições de revisão dos pagamentos, vale a pena destacar ao menos outros dois aspectos do processo de aprovação da lei complementar 156.

O primeiro é que o Congresso Nacional decidiu retirar as contrapartidas dos Estados previstas no projeto. Isto é, as principais condições e medidas de reforço à responsabilidade fiscal que estes entes deveriam cumprir para ter acesso aos benefícios de eventual reestruturação perante a União não estão previstas no texto final, mantendo-se apenas algumas exigências de divulgação de informações sobre a execução orçamentária e financeira. Entre estas contrapartidas estariam a redução de despesas de pessoal, suspensão de reajustes salariais e aumento das contribuições previdenciárias dos servidores.

Ausentes as contrapartidas na lei complementar, houve como contrarreação do governo o veto a medidas de alívio mais imediato das finanças estaduais aprovadas pelo Congresso, chamadas de “regime de recuperação fiscal”. Entre as faculdades concedidas ao ente participante de tal regime se encontrava a suspensão temporária dos pagamentos previstos nos contratos com a União — uma moratória de até 36 meses.

Sem as necessárias medidas de ajuste estrutural para que recebam benefícios financeiros, como a suspensão de pagamentos da dívida pública, a federação introduziria em um cenário de recursos já escassos um novo elemento de instabilidade: o “risco moral” devido à percepção de que a responsabilidade fiscal é desnecessária, pois sempre haverá a perspectiva do socorro federal. Já tratamos deste assunto quando analisamos as medidas de refinanciamento das dívidas subnacionais nos anos 90 e os objetivos de estabilização pretendidos com a Lei de Responsabilidade Fiscal.[6] Recentemente, Selene Peres Nunes voltou a analisar a questão, e sintetiza o problema: “a cada nova renegociação, gerava-se a expectativa de que o ajuste fiscal não era necessário porque sempre seria possível empurrar a dívida para o Governo Federal. Essa expectativa estimulava inadimplências sucessivas e frouxidão fiscal. Afinal, por que assumir o ônus político de ajustar as contas, se a União protegeria os inadimplentes?”[7]

Uma medida que não é isenta de críticas, típica da sempre presente “administração-bombeiro”, dada a “apagar incêndios”. No entanto, ante o fato consumado, só resta torcer para que dela seja feito bom uso, e quem sabe os Estados consigam sair do inusitado “estado de calamidade”, mais uma novidade que apareceu neste ano de 2016 no Direito Financeiro, já contaminando vários entes da federação.[8]

E é bom que os Estados possam recuperar suas finanças rapidamente, pois necessidades para ser atendidas não faltam. O ano já começa com uma delas, extremamente grave e muito dispendiosa – a situação carcerária –, esta indiscutivelmente em um verdadeiro “estado de calamidade”. Manchete dos principais meios de comunicação do país[9], o tema foi objeto de atenção em todo o mundo durante a semana passada, em razão do lamentável episódio ocorrido em Manaus no primeiro dia do ano, em que uma rebelião interna levou à morte de dezenas de detentos, e poucos dias depois o fato se repete em Boa Vista, Roraima. O tema não é novo, já foi objeto de referência neste espaço (Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário[10]), e está “sub-judice” pela inovadora ADPF 347, que tem por objeto a declaração do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro. Destaque deve ser dado ao fato de já ter sido concedida a medida liminar que, entre outras providências, determinou a liberação e vedou o contingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). Recentemente, Medida Provisória 755, de 19 de dezembro de 2016, facilitou o repasse de recursos do fundo a estados e municípios, por meio das transferências voluntárias[11], e agora de forma “direta”, com a diminuição de exigências para a transferência dos recursos.

Outras expectativas se formam, como a do julgamento definitivo das contas de governo pelo Congresso Nacional referente aos exercícios de 2014 e 2015, cujos respectivos pareceres prévios já foram elaborados pelo TCU, propondo, em ambos os casos, a rejeição das contas, em face das graves irregularidades encontradas (Acórdão TCU 2461/2015, j. 7.10.2015, rel. min. Augusto Nardes, referente às contas de 2014; e Acórdão TCU 2523/2016, j. 5/10/2016, rel. min. José Múcio Monteiro, referente às contas de 2015).

Estaremos também sob o “Novo Regime Fiscal”, tendo em vista a aprovação da Emenda Constitucional 95, publicada em 15 de dezembro de 2016, decorrente da já famosa “PEC do Teto”, com medidas polêmicas, voltadas a tentar estabelecer limitação constitucional para as despesas públicas primárias, cuja análise merece maior atenção, inviável de ser feita nesse curto espaço.

Por ora o melhor é ser otimista, e tentar ver os aspectos positivos, destacados com muita propriedade recentemente nesta seção por Júlio Marcelo de Oliveira, para quem “A fixação de um limite constitucional para o crescimento das despesas primárias por um período razoável de pelo menos dez anos, podendo ser revisto a partir de então, passa uma mensagem extremamente positiva para os agentes econômicos, de confiança no comportamento e na responsabilidade do Estado na gestão de seus recursos e na sua capacidade de honrar e gerenciar sua dívida”[12]

Mas não há como deixar de registrar que o desapreço pelo planejamento parece afigurar-se como uma questão suprapartidária. Não se fala no PPA vigente para o período 2016-2019, e com o novo governo o que se espera é que seja cumprido, ou, caso não se tenha intenção de fazê-lo, em face da mudança de governo, que seja proposta modificação e aprovada o quanto antes. Afinal, é preciso documentar e deixar explícitas as prioridades para os próximos três anos.

E a LDO, como está se tornando praxe, voltou a ser publicada intempestivamente (Lei 13.408, publicada somente em 26 de dezembro, seis meses após o prazo constitucionalmente fixado). Tendo o novo governo assumido provisoriamente em 12 de maio do ano que passou, pode até ser compreensível alguma dificuldade em aprovar esse documento com decisões tão importantes[13] até o final de junho, como deveria, mesmo porque assumiu definitivamente somente em agosto. Mas não é razoável publicar a lei de forma simultânea à Lei Orçamentária, tornando a LDO atualmente uma verdadeira peça de ficção, deixando de ter relevância como lei de planejamento para ficar com sua função anômala e secundária de regular questões mais voltadas à execução orçamentária, servindo como substituto das lacunas da Lei 4.320. Aliás, esta é outra oportunidade que não se pode perder nesse ano que se inicia, pois os projetos que a substituem tramitam a passos lentos, e nada melhor do que promover a aprovação da Lei de Qualidade Fiscal.

Não são só os Estados, mas também e principalmente os Municípios, cujos Prefeitos tomaram posse neste primeiro dia do ano, que se encontram em severas dificuldades financeiras, como noticiado na mídia, que foi praticamente unânime em ressaltá-las. Sabendo que o primeiro ano de mandato não é próprio para cumprir promessas[14], e não há milagres na gestão e nas contas públicas[15], espera-se que iniciem seus mandatos não esquecendo que devem desde já dar início à elaboração do plano plurianual[16], e agindo com responsabilidade, especialmente fiscal, pois lição dada pelo Direito Financeiro no ano de 2016 certamente não foi e não será esquecida.

Que todos enfrentem as dificuldades com criatividade, desde que não seja na contabilidade, pois o Direito Financeiro ainda não entrou na era da “pós-verdade”; nesse aspecto é conservador, e exige a verdade nas contas públicas!


[1] Coluna Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, publicada em 10.2.2015, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, edição Blucher-Conjur, 2016, pp. 109-113, cuja versão impressa pode ser adquirida na Livraria ConJur, e a versão eletrônica gratuita baixada no site da editora Blucher.
[2] 2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer terminar, publicada em 15.12.2015, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, mencionado na nota de rodapé 1, pp. 235-240.
[3] Julgamento histórico do TCU reprova as contas do governo, publicada em 20.10.2015, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, mencionado na nota de rodapé 1, pp. 199-202.
[4] Que “estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal”.
[5] Desde que a redução não ultrapasse o valor mensal de 500 milhões de reais para cada parcela mensal, por Estado (como consta do artigo 3º, §5º).
[6] Refinanciar as dívidas nada mais é do que postergar problemas, publicada em 3.5.2016.
[7] O risco moral do refinanciamento de dívidas, in Blog da Selene, em 17.10.2016 ().
[8]  Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade”, publicada em 28.6.2016.
[9] Incluindo a capa das revistas semanais, como Veja (A explosão da barbárie nas prisões brasileiras, edição 2152), Época (O país da carnificina, edição 968), Isto é (Os chefes do crime que apavoram o Brasil, edição 2456) e Carta Capital (Massacre amazônico, edição 934).
[10] Publicada em 25.8.2015, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, mencionado na nota de rodapé 1, pp. 59-64.
[11] Sobre o assunto, veja-se DALLAVERDE, Alexsandra K. As transferências voluntárias no modelo constitucional brasileiro. Série Direito Financeiro (Coord. José Mauricio Conti). São Paulo: Blucher, 2016. A versão eletrônica do livro pode ser baixada gratuitamente no site da Editora Blucher.
[12] O que há de bom no novo regime fiscal? Publicada em 22.11.2016.
[13] Decisões financeiras fundamentais são tomadas na LDO, publicada em 18.10.2016.
[14]  No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas, publicada em 20.11.2012, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, mencionado na nota de rodapé 1, pp. 93-96.
[15] Ano e prefeitos “novos” não trazem milagrosamente melhor gestão, por Élida Graziane Pinto, publicada nesta mesma Seção no último dia 4 de janeiro.
[16] Planejamento municipal precisa ser levado a sério, publicada em 24.9.2013, e que consta do livro “Levando o Direito Financeiro a sério”, mencionado na nota de rodapé 1, pp. 73-76.

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