Opinião

A evolução do conceito de escravidão à luz da Corte IDH e do Supremo

Autor

  • Fernando César Costa Xavier

    é professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR) professor doutor Nível II da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiário pós-doutoral no Instituto e Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências em Ecaterimburgo.

8 de janeiro de 2017, 5h42

No último dia 15 de dezembro, o Brasil foi notificado da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que o condenou no caso "Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde"[1]. Nesse caso, que envolveu 81 trabalhadores resgatados da Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia (PA), em março de 2000, considerou a Corte IDH que o Estado brasileiro seria responsável, dentre outros, pela violação ao direito humano de não ser submetido à escravidão, conforme previsão do artigo 6.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

A decisão foi saudada como um marco no sistema interamericano de direitos humanos, ao ponto de a própria Corte IDH registrar em comunicado que se tratava do “primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte Interamericana, de modo que esta teve a oportunidade de desenvolver e atualizar o conteúdo destes conceitos, de acordo com a Convenção Americana e o Direito Internacional”[2].

Entretanto, com relação especificamente ao conceito de escravidão, talvez seja necessário dizer que a corte não avançou tanto quanto poderia ou dela se esperava, pelo menos quando se compara o teor da sentença com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

Sobre a escravidão, pode-se dizer, dentre outras classificações possíveis, que ela comporta três formas, relacionadas a épocas distintas: a) a escravidão clássica ou chattel; b) a escravidão pré-moderna; e c) a escravidão moderna ou contemporânea.

A escravidão clássica ou chattel, ou ainda escravidão de “bem móvel”, remete à escravidão legalizada, em que alguém detinha direitos de propriedade sobre outra pessoa. A escravidão pré-moderna passou a ser definida pela restrição ou controle, de forma ilícita e sistemática, sobre a autonomia individual e a liberdade de movimento de alguém, ofendendo o bem mais precioso da modernidade liberal: a liberdade individual. A escravidão moderna ou contemporânea, por fim, pode ser definida como restrição ou constrangimento, de forma ilícita e sistemática, sobre a condição econômica de alguém, comprometendo-lhe a existência social digna, ainda que sem envolver, necessariamente, restrição física ou violência.

Na sentença do caso "Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde", a corte deixa claro que o Direito internacional evoluiu bastante desde o fim dos regimes escravocratas: “A partir do resumo de instrumentos internacionais vinculantes e das decisões de tribunais internacionais listadas anteriormente, observa-se que a proibição absoluta e universal da escravidão está consolidada no Direito Internacional [..] não é essencial a existência de um documento formal ou de uma norma jurídica para a caracterização desse fenômeno, como no caso da escravidão chattel ou tradicional” (parágrafos 268 e 270 da sentença).

Contudo, ao buscar a definição mais apropriada para a escravidão como violação de direito humano, a corte parece levar muito a sério a ideia de direitos civis e políticos como “direitos de liberdade” e economiza na interpretação evolutiva da norma do artigo 6.1 da CADH.

Acompanhando orientações firmadas em casos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, do Tribunal Especial para Serra Leoa e da Corte de Justiça da Comunidade Econômica da África Ocidental, a Corte IDH refere que, para se considerar uma situação como escravidão nos dias de hoje, deve-se tomar em consideração os chamados “atributos do direito de propriedade” (parágrafo 272). E, dentre os elementos que configurariam esses atributos, são destacados, inter allia, a restrição ou controle da autonomia individual” e a “perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa”.

Essa preocupação com a dimensão da liberdade ambulatorial remonta aos primórdios dos sistemas liberais modernos, em que interessava à conjuntura econômica desregular a livre iniciativa e a liberdade de ação (inclusive da força de trabalho), livrando-as de qualquer controle estatal ou de corporações privadas que representassem forças opressivas contrárias às leis de mercado.

É certo que a decisão da Corte IDH se trata de uma evolução em relação à compreensão mais clássica de escravidão: “Ao analisar o caso, a Corte observou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre a pessoa”[3]. Em todo caso, não se poderia afirmar que a proibição da escravidão ou de formas a ela análogas, quando calcada na proteção da liberdade individual dos sujeitos, remete à mais desenvolvida noção de escravidão, conforme certas interpretações.

No Relatório sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, incluindo suas causas e consequências, formulado pela relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CD/ONU) Gulnara Shahinian, por ocasião de sua visita oficial ao Brasil, em maio de 2010, é tratada como uma forma contemporânea de escravidão no país o trabalho escravo no setor rural. Falando das causas dessa forma de escravidão, diz a relatora especial: “Sem terras, desempregados e, portanto, incapazes de sustentar a si mesmos e suas famílias, os trabalhadores se submetem à exploração, aceitando os riscos de caírem em situações desumanas de vida e de trabalho, e buscam oportunidades de emprego na região norte e nordeste do Brasil. Tais condições criam alta vulnerabilidade para esses trabalhadores, levando-os a aceitar condições de trabalho degradantes” (parágrafo IV, A, 1, 26 do relatório). Esse relatório, a propósito, é referenciado em algumas notas de rodapé na sentença da Corte IDH.

Nas oportunidades em que enfrentou a questão, julgando inquéritos de indiciados com foro privilegiado, o Supremo Tribunal Federal desenvolveu um entendimento sobre a proibição da redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) que, segundo parece, aproxima-se daquela classificação mais contemporânea de escravidão.

No Inquérito 3.412[4], o Pleno do STF decidiu, por maioria, conforme consta da ementa do acórdão, que, “para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção […] A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos”. Explicou o STF, nesse caso, que tratar alguém como coisa também implica privá-lo de sua liberdade, e não apenas de sua dignidade. A violação intensa e persistente ao direito ao trabalho digno, atingindo “níveis gritantes”, poderia ser considerada, conforme a maioria dos ministros, como trabalho escravo.

No Inquérito 3.564[5], a 2ª Turma da corte, reportando-se ao Inq 3.412, registrou na ementa do acórdão que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano”.

Nesses dois julgados, como em outros, restou vencido o ministro Gilmar Mendes, o qual reiterou sua preocupação com a necessidade de distinção entre um eventual descumprimento da legislação trabalhista e o trabalho escravo.

No Inquérito 2.131[6], após pedir vistas, o ministro Gilmar Mendes referiu em seu voto isolado que, embora reconhecesse que a escravidão contemporânea tenha “múltiplas facetas”, sendo diferente dos regimes escravagistas do século XIX, a limitação da liberdade de ir e vir e a submissão da vontade de uns a outros continuavam sendo os elementos centrais para definição de escravidão. Ao se reportar a um relatório contido nos autos, que estaria deixando de descrever as infrações cometidas pelo réu para fazer “digressão ideológica” sobre a reprovabilidade da exploração econômica dos trabalhadores rurais, o ministro demonstra preocupação com a possível caracterização de uma nova modalidade de escravidão moderna (um “neoescravagismo”) a partir de critérios político-ideológicos.

Em seu voto-vista, o ministro Gilmar Mendes também faz referência ao relatório Gulnara Shahianian, da ONU, sobretudo para destacar uma recomendação feita nele ao governo brasileiro: “O Governo deve decretar uma definição mais clara do crime de trabalho escravo, o que ajudaria mais a Policia Federal a investigar e abrir processos criminais contra perpetradores do trabalho escravo”. Tendo que apresentar uma definição própria, optou o ministro pela caracterização da escravidão como uma violação da liberdade, em que “o empregador visa, precipuamente, subjugar o empregado, impedindo que esse procure melhores condições de vida e qualquer tipo de ajuda ou socorro público ou privado”. Nas suas conclusões do voto-vista, ele consigna: “O bem jurídico tutelado pela norma não é a relação de trabalho, mas a liberdade individual” (destaque no original). Enfim, uma caracterização próxima da definição pré-moderna da escravidão, como aqui entendida.

Embora o caso julgado pelo STF no Inq 2.131 também seja relativo a uma fazenda no interior do Pará (no município de Piçarra), indicando talvez um problema estrutural na região Norte do Brasil, ambos tratavam de situações distintas. O caso julgado pela jurisdição interamericana tratava de trabalhadores limitados de facto em sua liberdade de locomoção, vigiados por capatazes armados, proibidos de se evadir e constantemente ameaçados. De outro lado, no caso analisado pela jurisdição constitucional, não havia real coação à liberdade de ir e vir dos trabalhadores, embora estivessem “escravizados” pela situação de penúria e extrema necessidade; essa a razão, inclusive, para o ministro Gilmar Mendes defender que se tratava de hipótese de irregularidade trabalhista, e não de crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo.

É possível que essa diferença entre os casos não tenha dado a melhor oportunidade para que a Corte IDH, neste primeiro caso, desenvolvesse e atualizasse a sua definição jurídica de escravidão na direção de uma compreensão mais contemporânea do fenômeno. Outra explicação é a de que o sistema interamericano tenderia, necessariamente, para interpretações mais liberais (centradas na ideia de liberdade individual), o que faria com que a própria vedação da escravidão não fosse examinada como uma questão econômica, social ou cultural, haja vista a incompetência material da Corte IDH para o julgamento de direitos dessa natureza.

De todo modo, ao menos no tema em questão, a jurisprudência do STF demonstra um desenvolvimento mais progressista e atual do que o precedente interamericano. Não se pode afirmar, no entanto, se isso é bom ou ruim, pois talvez esse desenvolvimento tenha sido alcançado à custa de um quadro persistente de trabalho escravo em certas partes do Brasil, que nem mesmo o processamento perante a Corte Suprema conseguiu debelar. Na sentença da Corte IDH, foram determinadas garantias de não repetição de novas violações desse tipo. Deseja-se que a decisão interamericana logre mais sucesso na mudança da realidade.


[1] Cf. Corte IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil. Exceções Preliminares. Sentença de 20 de outubro de 2016.
[2] Cf. Corte IDH. Comunicado. Corte IDH_CP-44/2016 Português. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_44_16_por.pdf. Acesso em 16.dez.2016.
[3] Idem, ibidem.
[4] “Redução a condição análoga à de escravo. Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto (Redação dada pela Lei 10.803, de 11.12.2003).”
STF. Inq 3.412. Relator(a): min. MARCO AURÉLIO, relator(a) p/ acórdão: min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/3/2012.
[5] STF. Inq 3.564. Relator(a): min. RICARDO LEWANDOWSKI, 2ª Turma, julgado em 19/8/2014.
[6] STF. Inq 2.131. Relator(a): min. ELLEN GRACIE, relator(a) p/ acórdão: min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 23/2/2012.

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