Opinião

Afeto transforma direito de família e inova filiação

Autor

  • Cid Pavão Barcellos

    é advogado sócio do escritório Barcellos Advogados Associados pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP e em Direito Ambiental pelo Senai ex-delegado de Polícia e doutor pela universidade UMSA.

7 de janeiro de 2017, 10h20

As mudanças nas relações humanas ao longo dos anos vêm gerando novas demandas jurídicas para atender às necessidades da população. Com isso, o direito de família passou por significativas transformações diante da ampliação do conceito familiar e a valorização jurídica do afeto, proveniente de diversos arranjos familiares.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu e colocou em condição de igualdade os filhos originados dentro e fora do casamento, além de preservar os mesmos direitos, deveres e qualificações para todos. Esta, sem dúvida nenhuma, foi uma grande inovação, já que a Constituição passou a considerar família e casamento como realidades distintas, abrindo novas possibilidades no julgamento dos processos e beneficiando, consequentemente, um maior número de pessoas.

Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002 introduziram novas formas de constituição familiar,  efetivadas através de seus dispositivos legais, abolindo igualmente a distinção entre filhos.

Não há mais filiação legítima, ilegítima, natural, adotiva ou adulterina. Está proibida qualquer discriminação entre filhos, segundo determina o artigo 227, parágrafo 6º, da Carta Magna. Hoje, por exemplo, a filiação não é determinada apenas pelo vínculo genético que liga os pais aos filhos. Pelo contrário, a afetividade passou a ter um peso importante, já que é responsável por fortalecer o vínculo e manter a unidade familiar.

Família é a base da sociedade e por muito tempo a filiação só foi reconhecida dentro desse núcleo. Nos últimos anos, no entanto, essa concepção mudou bastante e evoluiu dentro do direito. A Constituição inseriu o afeto no âmbito jurídico ao nomear a paternidade afetiva de entidade familiar, conferindo a proteção do Estado.

A legislação e a jurisprudência evoluíram no sentido de proteger o núcleo não matrimonial, introduzindo um novo conceito de família formada por laços afetivos de carinho e de amor. Também o avanço da ciência acrescentou novos desafios nessa área, incluindo outros métodos reprodutivos, onde a filiação passou a ser identificada também pelo vínculo afetivo.

Enfim, a organização familiar está passando por profundas modificações, mas mesmo assim nada abala sua estrutura essencial. No entanto, o reconhecimento de novos formatos advindos da afetividade romperam o padrão tradicional. O casamento não é mais o único modelo familiar e a filiação afetiva representa mais uma forma de família reconhecida pela Constituição Federal, pelo Código Civil, entre outras leis.

A Constituição priorizou o princípio da dignidade humana e proibiu qualquer distinção discriminatória. Nesse sentido, a filiação pode ser avaliada basicamente por três fatores: a biológica com parentesco; a adotiva sem  parentesco e nível afetivo com outro pai; e a socioafetiva que estabelece a paternidade baseada em outros fatores como a convivência e a afetividade existente entre pai e filho.

Hoje o reconhecimento da filiação biológica não está vinculado apenas ao exercício efetivo da paternidade. O que se observa é que o direito de filiação está ligado ao Princípio da Dignidade Humana e da Igualdade que regem o direito moderno de família e onde não se admite qualquer discriminação pejorativa entre a filiação biológica, adotiva ou afetiva.

Por muito tempo, a paternidade biológica foi aceita como prova única e verdadeira, especialmente após o surgimento do exame de DNA, documento científico de credibilidade indiscutível nesses processos. No entanto, hoje já se avalia a relevância dessa origem genética em relação à paternidade socioafetiva que não pode ser constatada por um exame, mas é construída e fortalecida diariamente.

A Constituição priorizou a convivência familiar, fazendo prevalecer o interesse da criança. E o Código Civil garante tratamento privilegiado à filiação socioafetiva. Entende-se por paternidade afetiva aquela em que o pai cumpre seu papel na totalidade, amando, educando e se interessando pela criança. A afetividade passou a ser um elemento identificador da família, ou seja, um elo entre pai e filho, onde os laços surgem da convivência e não do sangue. Assim, reconhecida a existência da paternidade afetiva, estabelece-se um vínculo jurídico, visando, principalmente, a proteção do filho. Não há nada mais autêntico do que reconhecer como pai quem dá afeto, assegura a proteção e garante a sobrevivência.

A paternidade afetiva está cada vez mais presente e fortalecida na sociedade e no meio jurídico. Ela se fundamenta nos laços afetivos cotidianos e no relacionamento de carinho, companheirismo, proteção e doação entre pais e filhos, diferenciando o pai do genitor, independente da origem do filho.

Esta é uma nova visão do modelo de família contemporâneo, onde o afeto causa impacto e traz à tona a discussão do que deve prevalecer se a verdade biológica ou a afetividade. Isso demonstra a importância da unificação paternal e evita que a dignidade humana seja afetada em virtude dos conflitos existentes. O filho tem o direito ao reconhecimento genético, a paternidade biológica não está descartada, porém a socioafetiva ganhou destaque com a valorização desses novos elementos na filiação.

Baseado na legislação vigente, o escritório Barcellos Advogados Associados obteve, recentemente, uma importante vitória na 2ª Vara da cidade de São Pedro (SP), que deu, por liminar, a guarda de um garoto de quatro anos para o pai socioafetivo, até que seja julgado o mérito da ação. Essa liminar encerra temporariamente o conflito entre o pai socioafetivo e o biológico, iniciado com a morte da mãe da criança em setembro de 2015, onde o pai socioafetivo solicita a guarda definitiva e a regulamentação de visitas por parte do pai biológico.

Ocorre que o pai socioafetivo namorava a mãe da criança quando ela engravidou de outro rapaz. Eles ficaram separados por alguns meses e depois reataram o relacionamento. Desde então, ele cuidou da criança como se fosse seu filho. Acompanhou seu nascimento e foi o primeiro a segurar o bebê no colo. Durante quase quatro anos, dispensou ao menor os cuidados decorrentes do poder familiar, participando de várias atividades inclusive escolares.

Quinzenalmente, a criança passava o fim de semana com o pai biológico e depois retornava para São Pedro. Mas, após a morte da mãe em setembro de 2015, o pai biológico decidiu levar a criança para outra escola, separando-a do pai socioafetivo e de sua irmã materna mais nova.

Essa iniciativa motivou a ação e o pedido de guarda definitiva pelo pai socioafetivo ao alegar que o menino já estava ambientado em sua escola e que o afastamento de sua irmã causaria mais prejuízos a ele. Relatórios psicológicos e do Conselho Tutelar apontaram que a angústia da separação da mãe pode gerar sentimentos como medo e ansiedade. E isso só pode ser amenizado pelos vínculos já estabelecidos com a família e o sentimento de autoproteção, segurança e conforto.

O Ministério Público deu parecer desfavorável ao pedido por entender que não ficou comprovado que o menor está em situação de risco. Mas o juiz da 2ª Vara de São Pedro decidiu favoravelmente ao pai socioafetivo, pelos laços familiares criados com a convivência diária, e concluiu que "a verossimilhança decorre do fato de se tratar de regularização da situação de fato, enquanto o risco de dano irreparável da tenra idade da criança à vista do conflito amoroso noticiado, podendo prejudicar seu regular desenvolvimento educacional, caso não lhe seja assegurado domicílio certo enquanto pendente a solução da demanda". A guarda temporária vale até novo estudo psicossocial.

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    é advogado, sócio do escritório Barcellos Advogados Associados, pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP e em Direito Ambiental pelo Senai, ex-delegado de Polícia e doutorando pela universidade UMSA.

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