Ideias do Milênio

"Violência só é eficaz no início, depois é a pior estratégia possível"

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6 de janeiro de 2017, 14h40

Divulgação/Instituto Elo
Dominic Barter [Divulgação/Instituto Elo]
Divulgação/Instituto Elo

Entrevista concedida pelo cientista social e consultor em comunicação não violenta em práticas restaurativas Dominic Barter ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

A questão da violência é algo bastante presente no cotidiano dos brasileiros. É claro que para as camadas mais pobres, mais presente ainda, mas em qualquer estrato social ela vai ser um problema. E a intensidade dessa violência, os números, os índices, são assustadores. Dominic Barter pesquisa e desenvolve mecanismos de enfrentar e lidar com a violência que não sejam apenas o enfrentamento policial como a gente conhece. 

Marcelo Lins — O princípio do seu trabalho é a chamada comunicação não violenta. Explique esse conceito, o que ele é e para que serve.
Dominic Barter — A violência dói. Quando consta em nossas vidas diárias e na vida do país, é um elemento que nos preocupa. A não violência chama nossa atenção para um outro lugar, como a gente pode dedicar nossas forças, nossa inteligência, nossa influência, nossa atenção, para os lugares que realçam a vida, que celebram o que é possível quando a gente decide viver, trabalhar, colaborar juntos.

Marcelo Lins — E isso mesmo em uma situação como a brasileira, que é uma situação de crise quase que permanente de violência. Os índices nas grandes cidades são absurdos, a gente tem um índice de homicídio anual que beira os 60 mil por arma de fogo. Como introduzir conceitos que tenham a ver não com enfrentamento, mas com a conversa nesse contexto?
Dominic Barter — Talvez seja exatamente nesse contexto que a gente precisa de uma resposta que se orienta pelo diálogo, então, nessas situações, o que é necessário desenvolver são espaços em que volte a ser possível a gente reconhecer que conflito faz parte natural da convivência social, não ter mais aversão ao conflito e começar a compreender o que conflito nos chama a entender e de ouvir o que os outros estão dizendo para que aquilo que se tornou violência volte a ser o que era antes, uma conversa, uma tentativa de cuidar de todo mundo.

Marcelo Lins — Uma outra complexidade no caso brasileiro é o apartheid econômico, com comunidades sem nenhuma infraestrutura básica. Como conseguir superar esse apartheid para falar de não violência?
Dominic Barter — Tanto nas violências estruturais que a gente vive, mas igualmente no nosso dia a dia, nossas relações interpessoais, na família, no trabalho e igualmente dentro de nós, da forma que a gente se trata. A gente vê muitos exemplos de uma lógica de dominação que orienta a maneira que as pessoas agem. Então, sim, superficialmente tem alguns elementos em um bairro que são ausentes em outros, mas entre as pessoas e por dentro, ainda pode ter muito sofrimento, muita falta de escuta e o estabelecimento de relações de parceria. Então, a não violência procura olhar sempre tanto no estrutural quanto no interpessoal, tanto dentro de nós para entender como podemos criar espaços de empatia e de verdade onde as pessoas podem descobrir o que é mais gostoso sobre a vida, quais são os valores que nos orienta a todos.

Marcelo Lins — Ao longo da sua experiência trabalhando com esse tipo de diálogo, qual é a importância desse conceito que você falou da empatia. Empatia para as pessoas no geral parece apenas algo que diz se você gostou ou não daquela pessoa de cara, mas aonde que esse conceito entra na discussão da não violência, do diálogo e da superação de problemas de violência gravíssimos?
Dominic Barter — É extremamente importante. A simpatia a gente conhece, o brasileiro tem merecidamente uma fama mundial pela simpatia. A empatia é algo diferente. Na empatia eu estou procurando conectar com aquilo que a gente compartilha, apesar de todas as diferenças que no distingue. Então, a empatia é a minha capacidade de reconhecer você na sua humanidade e vibrar dentro com as coisas que vibram para você e igualmente em lutar com coisas que para vocês são tristes ou perdas. Então essa disponibilidade de estar presente com a experiência do outro, sem tentar mudá-la, educá-la, resolver as questões dela. Sem estar sempre correndo atrás de uma solução, mas simplesmente estar com outro na sua experiência de vida, isso muitas vezes está perdendo no nosso dia a dia, pela correria e por esse olhar constante na produtividade e nos resultados, então empatia é a volta de uma qualidade de processo, de convivência.

Marcelo Lins — Qual é a importância de um olhar específico sobre a educação para trabalhar um conceito como esse, da empatia? A gente às vezes fica com a impressão de o sistema de educação estratificado e ainda mais separado, educação pública para pobre, educação particular para quem pode pagá-la, torna tudo mais difícil. Como juntar a educação nisso?
Dominic Barter — A gente aprende como conviver em casa, na rua, na escola e um pouco, cada vez mais, através da mídia. Então, esses espaços são extremamente importantes, porque a gente forma todos os nossos conceitos de orientação, de relação com o outro ali. Então a escola tem um enorme papel, uma potência magnífica para estar ajudando as pessoas a entender que conflito não é para ser temido, pelo menos se um dia talvez a gente queira viver em uma democracia, nós vamos precisar fazer as pazes com o conflito, faz parte da vida, e na escola as pessoas podem viver isso. Elas podem viver práticas restaurativas, elas podem viver momento de diálogo, de entendimento dentro da sala de aula, mas também dentro da convivência normal do pátio, do corredor, então a escola tem um papel muito importante.

Marcelo Lins — Em algumas cidades do Brasil as linhas que dividem os lugares onde há mais conflito, ou seja, onde há mais carências, mais problemas sociais, e os lugares onde esses problemas aparecem menos, porque são lugares mais ricos ou com mais infraestrutura, essas linhas são muito claras. A cidade do Rio de Janeiro tem essas linhas muito misturadas, no meio de um bairro rico você tem comunidades pobres, no meio de uma comunidade pobre, surge um condomínio de classe média, classe média alta. Você acha que essa geografia pode facilitar de alguma forma a circulação também da informação?
Dominic Barter — Ela pode facilitar, como também pode facilitar os níveis de violência que a gente vê. São poucos lugares no mundo, e na história você vê a mesma coisa, onde foi permitido que as pessoas mais carentes de recursos materiais ocupavam os lugares geograficamente mais altos. Isso criou um cenário onde a cada dezoito meses morre mais jovens no Rio do que em cinco anos em Alepo, na Síria, por exemplo. Somos 2,8% da população mundial cometendo 13,9% de todas as mortes do mundo.

Marcelo Lins — Esses dados podem não parecer suficientemente chocantes, então vale lembrar, que entre 2011 e 2015, o Brasil registrou mais mortes violentas do que a Síria: foram 278.839 entre assassinatos, mortes em consequência de assaltos, lesão seguida de mortes ou mortes em episódios envolvendo a polícia. No mesmo período, a Síria em guerra teve 256.124 mortes violentas. Em apenas um ano, 2015, 58.383 brasileiros foram mortos violentamente. Um assassinato a cada 9 minutos. 160 assassinatos por dia. 28,6 mortes violentas para cada 100 mil habitantes.

Marcelo Lins — Como começou essa sua curiosidade com o Brasil até você chegar ao ponto de ver “dá para eu trabalhar com isso neste país.”
Dominic Barter — Eu me apaixonei. Minha teoria secreta é que todo gringo que está aqui em algum momento se apaixona por um brasileiro ou brasileira, então me apaixonei e fui seguindo ela quando ela voltou para cá e cheguei em 92, vi essa cidade [Rio de Janeiro] que é tão incrível em tantos sentidos, mas que é tão sofrido, apartheid social, racial e tudo mais que vive. Queria fica, mas fazendo algo que ainda não sabia o que era. Então lembrei de uma conversa de um casal que vi na Europa alguns anos antes. Eles começaram a discutir, e quando eles estavam não se entendendo o volume de voz de cada um aumentou. Achei estranho, porque eles estavam na mesma distância um do outro. Eles não se afastaram, estava perto. Então por que começaram a gritar? Aqui no Rio, no início dos anos 90, lembrei dessa situação e pensei: será que a violência está agindo do mesmo jeito? Será que isso é uma conversa que há 500 anos a gente está tentando ter aqui? E cada vez que o outro não escuta, bota grade, bota distanciamento, usa lei, dinheiro e todas as outras culturas para separar as pessoas, cada vez que isso acontece o outro aumenta o volume da voz, até que começa a usar estratégia mais eficaz de chamar a atenção de alguém: violência. Nos primeiros dois segundos violência é extremamente eficaz, porque chama a sua atenção. Depois disso é a pior estratégia possível, porque ele corrói a conexão entre a gente que faz todo o resto possível. Igual a um celular, que só funciona com o sinal, a gente também precisa de alguma coisa compartilhado para poder entrar em colaboração, em parceria. Então eu pensei: se a violência social no Rio está funcionando desse jeito, então eu tenho que fazer alguma coisa totalmente contra intuitiva. Eu tenho que, para ser mais seguro, me aproximar dos lugares onde eu tenho mais medo de ir. Eu tenho que ir para os lugares onde estou avisado para não ir, encontrar as pessoas que todo mundo diz que eu preciso evitar. Assim eu fui e comecei a escutar as pessoas e descobri que a verdade, a maior qualidade da minha relação com os outros, o maior que a gente descobre, que a gente compartilha, sem precisar se restringir, ser conservador, nossas escolhas de vida, quanto mais a gente é capaz de ver a humanidade do outro, mais seguro todos nós ficamos. Então esse foi o meu caminho, comecei me apaixonando por uma, depois me apaixonei pelos outros 200 milhões.

Marcelo Lins — Você teve uma experiência com as unidades de polícia pacificadoras no Rio de Janeiro, que é um projeto de uma mudança no jeito de se fazer policiamento em comunidades carentes, em favelas, que previa uma presença policial mais forte de uma nova polícia com depois a chegada do Estado em outras formas. E hoje em dia esse modelo para muita gente está em crise, para outros, houve avanços sensíveis. Como foi essa sua experiência?
Dominic Barter — Como muitas pessoas eu olhei para a proposta das UPPs no início com bastante cautela. Qualquer um que convive com a situação das favelas no Rio e também que tenham entendimento sobre a situação em que o policial do dia a dia se encontra, tive que ter muita cautela, mas eu também vi uma possibilidade de uma maior aproximação entre comunidade e as pessoas que estavam dentro da farda, o ser humano que está procurando fazer o trabalho de polícia, não de força bélica. Então o Tribunal de Justiça do Rio me chamou para apoiar o desenvolvimento de núcleos de mediação dentro das UPPs. Nesses ambientes policiais no serviço, mas servindo como mediadores, podiam ajudar diferentes conflitos na comunidade que surgem naturalmente no dia a dia em qualquer lugar, a serem resolvidos de forma satisfatória para todas as partes. E essa proposta foi muito inovadora, teve muito sucesso, mas ela como muitas outras coisas sofreu as limitações que a própria proposta das UPPs sofreu, principalmente o fato que o dito UPP social não acompanhou, não desenvolveu para criar a base sustentável dentro da comunidade de uma força que não era simplesmente policial, mas que era uma chegada de todos os diferentes serviços.

Marcelo Lins — Falando de exemplos práticos, que têm a ver com o uso de diálogo para resolver questões, teve um episódio em que você esteve envolvido que ganhou bastante repercussão na mídia que era a história de um carteiro assaltado por um adolescente que levou o celular dele e essa história graças ao uso, talvez intuitivo inicialmente de uma comunicação não violenta, ela teve um final diferente do que acontece muitas vezes. Como é que foi esse caso?
Dominic Barter — Sim, isso é um caso corriqueiro aqui no Rio, esse caso ficou conhecido, porque não era qualquer carteiro que teve seu celular levado, mas uma figura que sabe se comunicar e tem uma imensa preocupação com o cuidado social.

Deivid Domênico: “O menino pegou o meu celular pela janela, eu olhei para trás, ele olhou para mim assim, no momento em que ele me olhou ele falou ‘vem’. Aí eu tomei um susto, falei, ‘vem, como assim, então eu vou…’ Aí as pessoas pegaram ele e começaram a bater nele.”

Adolescente: “A população, tipo, quando me pegou também, tipo, fez muitas coisas que aconteceu… Soco na cara. Eu ganhei muito bico. Eu tomei um susto muito grande que tipo eu nunca tinha passado por isso.”

Deivid Domênico: “Eu falei ‘gente, não precisa bater…’ ‘Mas ele roubou…’ ‘Mas ele roubou foi a mim, está tranquilo, vamos pegar, vamos prender, mas não vamos bater, não vamos linchar o menino.’ E aí ele tava lá, eu perguntei ‘rapaz, você mora aonde?’ ‘Eu moro na Mangueira.’ ‘Eu falei, pô, logo na Mangueira?’ Eu sou compositor e cantor da Mangueira.”

Deivid teve então a certeza de que precisava fazer algo pelo garoto. E os dois voltaram a se encontrar nesta semana na audiência que definiria o destino do jovem infrator.

Defensora Pública: "Saiu o resultado, a juíza deu a decisão já, acho que a sua participação na audiência foi fundamental, ele vai ser encaminhado para uma medida em que ele vai ter… é um meio semi-aberto, ele vai ter a possibilidade de trabalhar e estudar e nos finais de semana ir para casa."

Sem medos, sem mágoas, com aperto de mão e abraço.

Adolescente: “Só o que eu tenho para dizer para você mesmo é agradecer pelo que você está fazendo por mim, por estar acreditando que eu possa mudar.”

David: “Isso aí você pode ficar tranquilo, porque eu não vou desistir de você, mesmo que você desista.”

Dominic Barter — Nesse caso a gente teve a oportunidade para montar o início de um processo de círculo restaurativo. Isso que agora a gente espera com a Resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça, que organiza a implementação de justiça restaurativa no Brasil, nós procuramos que isso seja não um caso isolado, mas um caso que vai continuar. É uma oportunidade para que o adolescente, neste caso, a pessoa que teve seu objeto levado e a comunidade impactada por aquilo que aconteceu, podem se juntar para dialogar sobre a situação e pensar criativamente sobre os passos que precisam ser feitos a seguir para mudar a realidade das pessoas.

Marcelo Lins — Como é a aplicação desses círculos restaurativos em outras situações, que não a da violência brasileira. 
Dominic Barter —
Uma resposta não violenta ao conflito procura aproximar as pessoas, ao invés de distanciá-las. Tanto em casa, no trabalho, na escola, como na justiça formal, nossa resposta é organizar, em separar as pessoas e às vezes de puni-las com a ideia de que isso traz mais segurança comunitária. Mas poucas vezes a gente via que saia resultado. Então, tanto no Brasil como no estrangeiro, a gente vê muitas aplicações disso. É interessante ver como precisamos de um contexto sistêmico seguro para que uma prática restaurativa como os círculos possam surgir e ser válidos, e às vezes isso envolve uma certa proteção para as pessoas envolvidas, a nossa aplicação aqui no Rio, em outros lugares no Brasil, com os tribunais, por exemplo, sempre tem essa cautela com a proteção das pessoas envolvidas.

Marcelo Lins — Você autou na África. Conte um pouco desse caso.
Dominic Barter —
 Reunimos rebeldes, representantes do exército, guerilheiros. Fizemos um encontro chamado pré-círculo, antes de todo mundo, se junta em uma roda, em que a gente pode ouvir cada um. Essa atenção com a escuta é profundamente transformativa quando a gente resgata a capacidade de uma atenção empática para a outra pessoa, não concordando e nem discordando com ela. Foi em um desses encontros que um dos rebeldes falou para a minha colega o seguinte: “às vezes, a única maneira de fazer com que alguém te escuta é matá-lo”. Um comentário chocante e ao mesmo tempo tem uma estranha lógica. No nosso dia a dia muitas vezes a gente age do mesmo jeito, a gente corta colegas, tem membros da nossa família com quem a gente não conversa há muito tempo, procurando de uma certa forma matar essa relação como uma maneira de alertar eles de que a gente não está bem, e o resultado é trágico sempre que isso acontece. Então, através de uma escuta da preocupação dele, que ele nunca seria compreendido no amor que ele tinha para a sua terra, da independência que ele procura para essa terra, foi possível juntar as pessoas e ter uma conversa em que as opiniões se diferenciam, mas o reconhecimento da humanidade do outro está presente. E a partir daí a nossa criatividade para poder imaginar estratégias novas floresce e fica muito mais forte.

Marcelo Lins — O que alimenta a sua esperança nesse trabalho?
Dominic Barter — O combustível de um trabalho não violento é a gratidão, é de ver a transformação acontecer. De ver o aluno que chega no Espaço Beta tenso, cada vez mais a gente ver o desenvolvimento de condições de muito estresse entre alunos e entre universitários, de ver alguém chegando e depois de poucos dias aqui em uma escola que respeita a inteligência e o intuito e o desejo de criar dela, de ver ela se transformar pelo relato dela, pelo relato dos pais. Ou de ver aquele momento tão significativo em que um grupo de pessoas sai de uma sala em um fórum e vai até um elevador, pessoas que não podiam estar na mesma sala antes e você tem um breve momento de um aperto de mão. A gente não esquece os horrores que a gente comete para o outro, não é isso, não é que as pessoas vão ser amigas, mas é ver que elas são capazes de conviver, apesar de tanta dor, de tanta destruição.

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