Em defesa do legado

Ao contrário de Trump, Obama pede Justiça Criminal menos punitivista

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6 de janeiro de 2017, 11h11

Enquanto Donald Trump foi eleito presidente dos EUA com uma plataforma punitivista, prometendo endurecer penas, expulsar imigrantes e dificultar abortos, o atual presidente dos EUA, Barack Obama, pede que o sistema de Justiça Criminal norte-americano troque o objetivo de castigar o acusado pelo de buscar a sua reabilitação.

Pete Souza/Official White House flickr
Antes advogado de direitos civis e comunidades carentes, Obama defende uma Justiça menos punitivista
Pete Souza/Official White House flickr

Em artigo publicado na edição de janeiro da Harvard Law Review, publicação da Universidade Harvard da qual foi editor e presidente, Obama fez um balanço das medidas tomadas por sua gestão com o objetivo de reduzir o punitivismo no país. No entanto, o presidente norte-americano ressaltou que ainda há muito a ser feito para que os EUA tenham um sistema criminal justo. Hoje em seus últimos dias de mandato, Obama foi advogado de direitos civis em comunidades pobres e professor de Direito Constitucional.

Escrito em linguagem clara e direta, e com argumentos fundamentados em dados, o artigo começa com Obama criticando o gigantismo do sistema prisional dos EUA. Com 2,2 milhões de detentos, a nação tem 25% da população carcerária do mundo — o Brasil é o quarto no ranking, com 622 mil encarcerados. Além disso, 70 milhões de norte-americanos, ou quase um terço da população total, tem algum tipo de histórico criminal. Esse sistema custa US$ 81 bilhões por ano, verba que, para o presidente, poderia ser melhor usada na formação de jovens.

“Nós sacrificamos bilhões de dólares de contribuintes e desperdiçamos uma quantia imensurável de capital humano em um sistema que joga jovens demais em um duto que liga escolas subfinanciadas a presídios superlotados. (…) Mesmo que os crimes violentos tenham diminuído nas últimas duas décadas, os dados indicam que nossos massivos níveis de encarceramento não têm aumentado a nossa segurança”.

"Por isso, a minha administração buscou reverter a escalada repressiva das décadas de 1980 e 1990 reformar a Justiça Criminal de forma a torná-la mais humanitária", disse Obama, ressaltando que esse é um dos poucos temas nos quais há consenso entre democratas e republicanos. 

Uma das medidas implementadas citadas por Barack Obama é a reversão da política que exigia que promotores tivessem que buscar a maior condenação possível em todos os casos que assumissem. As novas diretrizes estabelecem que os acusadores públicos devem analisar as circunstâncias pessoais dos suspeitos buscar um julgamento e punições justas e razoáveis. Outra foi a eliminação de uma penalidade mínima para posse de crack, que punia desproporcionalmente negros.  

Quanto ao sistema prisional, Obama alegou que as restrições que impôs ao encarceramento de presos na solitária melhoram a qualidade das vidas deles, bem como sua saúde mental. Ele também citou a decisão de reduzir progressivamente os presídios privados, os quais “não só resultaram em pior condições para os detentos como provaram ser menos seguros e não gerar economias significativas”.

A ideia por trás desses atos é que quem que praticou um crime deve ser reabilitado, e não isolado da sociedade. Por isso, o primeiro presidente negro dos EUA instituiu escolas em cadeias e centros de recuperação para os que acabaram de deixar a prisão voltarem a se acostumar com a vida fora das grades. Nesse sentido, ele proibiu agências federais de fazerem perguntas sobre o histórico criminal de candidatos a empregos e firmou convênios com empresas e instituições de ensino para admissão de ex-detentos.

Além disso, Barack Obama mencionou que anistiou mais de 1 mil condenados — ultrapassando, assim, as marcas dos últimos 11 presidentes dos EUA juntos. Esse foi um aspecto que “me tocou pessoalmente”, assumindo que ele próprio poderia ter sido capturado pelo sistema.

Apesar disso tudo, Obama disse estar ciente de que deixará a reforma criminal incompleta. Devido a isso, ele conclamou os EUA a tomarem os próximos passos para garantir que não haja retrocesso. Talvez o principal deles seja a aprovação de uma lei que fixe critérios menos punitivistas para sentenças. Também é essencial restringir o acesso a armas de fogo, pontuou o presidente, expandindo o controle sobre o histórico dos compradores e dificultando que tais artefatos caiam nas mãos de terroristas.

Passar a tratar o uso de drogas como questão de saúde pública é mais uma mudança prioritária, alertou o líder norte-americano, defendo o tratamento, não encarceramento, de viciados. Ele ainda se manifestou favorável a um maior uso de dados para basear alterações e decisões judiciais e à implementação de padrões científicos rígidos a investigadores, para evitar condenações indevidas.

Por fim, Barack Obama (que deixa a Casa Branca em 20 de janeiro) mostrou-se otimista quanto ao futuro. Pela primeira vez em 36 anos, um presidente dos EUA termina seu mandato com menos presos do que quando começou. Isso mostra, segundo ele, que os norte-americanos estão no caminho certo para dar maior suporte às famílias vítimas do crime e uma chance para os que erraram se redimirem.

Silêncio sobre Guantánamo
Vale notar, entretanto, que Barack Obama não mencionou em seu artigo que falhou em fechar o presídio de Guantanamo, uma de suas principais promessas de campanha em 2008. O presídio, que fica em Cuba, abriga suspeitos de terrorismo, e é alvo de críticas de defensores dos direitos humanos, tanto pela supressão do direito de defesa dos detentos quanto pelas práticas de torturas as quais são submetidos.

Embora Obama tenha, em oito anos, reduzido de 700 para 40 o número de encarcerados, ele é criticado por não ter insistido em fechar a prisão de Guantánamo. Conforme esse argumento, uma postura mais enérgica do presidente poderia ter ajudado a contornar a resistência dos republicanos, que têm maioria nas duas casas do Congresso desde 2014.

Plataforma punitivista
Donald Trump foi eleito para suceder Obama com uma plataforma punitivista. Durante a campanha, o bilionário manifestou-se favoravelmente a mandar mais pessoas para a prisão — e isso em um momento em que democratas e republicanos concordam ser preciso diminuir o encarceramento em massa. Embora o governo dos EUA tenha decidido fechar presídios privados federais, o republicano declarou acreditar que eles funcionam “muito melhor” do que os públicos.

Gage Skidmore
Trump defende prisões privadas, expulsão de imigrantes e veto aos muçulmanos
Gage Skidmore

Ele também apoia a tática policial de “parar para revistar”, dizendo erroneamente que, em Nova York, ela vem ajudando a reduzir os índices de criminalidade. Além disso, Trump propôs pena de morte para quem matar um policial apontou que restaurar os direitos políticos de ex-presos é “política torta”.

Sua promessa mais famosa é a de construir um muro na fronteira com o México para banir a entrada dos moradores deste país nos EUA. O motivo é que, segundo Trump, muitos “bad hombres” vão para território praticam assaltos e estupros em território norte-americano.

Nessa mesma linha, o magnata defende bloquear temporariamente a entrada de muçulmanos no país. Com isso, o país evitará novos ataques terroristas e conseguirá criar melhores filtros para admitir imigrantes islâmicos, argumenta Trump, que também disse que irá deportar todos os estrangeiros em situação irregular.O mesmo estilo linha-dura é aplicado à suas ideias de “combater duramente o crime”.

Com relação ao aborto (que é legal no país), o bilionário chegou a afirmar que a mulher que o praticar deve receber “alguma forma de punição”. Posteriormente, ele voltou atrás, e opinou que apenas médicos e outras pessoas que ajudaram no procedimento devem ser responsabilizadas.

Exageros tupiniquins
Mas o Brasil não fica atrás dos EUA quando se fala em punitivismo. Na contramão de Obama, que defende menos encarceramento e mais reabilitação, a reação do presidente Michel Temer ao massacre em um presídio de Manaus foi prometer repasses de R$ 800 milhões para a construção de, pelo menos, uma nova penitenciária em cada estado, além de cinco novas cadeias federais para criminosos de alta periculosidade.

Na mesma linha de seu chefe, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou em dezembro que lançará em breve um plano de redução de homicídios focado em ações policiais, sem a participação de pastas da área social. Entre as medidas estarão o aumento do tempo necessário para progressão da pena (atualmente, o condenado deve cumprir um sexto de sua punição para ir para outro regime; se cometeu crime hediondo, mas é réu primário, dois quintos; se já tivesse antecedentes, três quintos) e a intensificação do combate às drogas.

Contudo, o punitivismo não é só de direita no Brasil. Quando era presidente, Dilma Rousseff apresentou um pacote anticorrupção que previa a tipificação do crime de “caixa dois eleitoral”; a alienação antecipada de bens apreendidos; e uma espécie de “Lei da Ficha Limpa” para todos os ocupantes de cargos comissionados na administração pública federal. 

A sanha por castigar também recebeu importantes contribuições do Ministério Público Federal e do Judiciário nos últimos tempos. Propostas por procuradores da força-tarefa da operação "lava jato", as 10 medidas contra a corrupção incluem não anular processos nos quais foram usadas provas ilícitas; transformar em crime hediondo a corrupção envolvendo altos valores; e permitir prisão preventiva para evitar a dissipação de dinheiro desviado.

O projeto chegou à Câmara dos Deputados, mas foi aprovado com muitas modificações, como a responsabilização de juízes e de membros do Ministério Público por crimes de abuso de autoridade. Indignados, os integrantes do MPF ameaçaram deixar a "lava jato" se o texto entrasse em vigor dessa forma.

Entendendo que as 10 medidas foram desvirtuadas, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux depois ordenou que elas deixassem o Senado e voltassem à Câmara dos Deputados, para serem analisadas tal como propostas pelo MPF, acompanhadas por 2 milhões de assinaturas.

O juiz responsável pela "lava jato" em Curitiba, Sergio Moro, também vem sendo acusado por profissionais do Direito de exceder limites legais na busca pela punição de corruptos. Muitos criticam a estratégia da operação de prender preventivamente os acusados até que eles resolvam firmar acordo de delação premiada — intenção já admitida por integrantes do MPF.

Outra violação ocorreu quando Moro tornou públicas as gravações de telefonemas entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com professores de Direito e advogados ouvidos pela ConJur, os grampos não poderiam ter perdido o sigilo, pois envolviam autoridade com prerrogativa de foro por função e foram captados ilegalmente.

Porém, nessa ocasião, Sergio Moro não quebrou o sigilo telefônico apenas de Roberto Teixeira, advogado de Lula, mas também do telefone central da sede do escritório dele, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca.

A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente está prevista no artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). Segundo a norma, é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Até o STF entrou na onda punitivista. Em 2016, a corte mudou sua jurisprudência e passou a permitir que, depois de decisões de segundo grau que confirmem condenações criminais, a pena de prisão já seja executada. Além disso, o Supremo decidiu ser constitucional a Lei complementar 105/2001, que permite aos órgãos da administração tributária quebrar o sigilo fiscal de contribuintes sem autorização judicial.

Clique aqui para ler a íntegra do artigo (em inglês).

*Texto atualizado às 15h25 do dia 6/1 para acréscimo de informações.

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