Senso Incomum

Sentença e celibato: quem pode teorizar sobre decisão judicial?

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5 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Início de 2017, primeira coluna do ano. E o assunto é…ativismo, por mais que isso chateie parcela da comunidade jurídica. Mas, para quem minimamente se informa sobre o que acontece no mundo jurídico, é pouco uma coluna semanal para abarcar as inúmeras decisões contra legem e voluntaristas-ativistas promulgadas todos os dias.

Em um intervalo de um congresso, um juiz (de segundo grau) se aproximou de mim — já o conhecia há anos — e me disse, com ar superior: “tudo isso que vocês falam e citam não tem nenhuma importância”. E arrematou: “Não existe isso de Constituição” (sic). “Não abro um livro desde que entrei na magistratura. E decido muito bem. Dificilmente erro. Faço justiça. Independentemente da lei, o que quero é justiça. Decido conforme acho que deve ser. Depois vem o recheio das decisões. Mas autores de doutrina, só aqueles que me lembro, tipo Damásio e Mirabete. Vocês ficam falando de como deve ser uma decisão, mas nunca decidiram nada. O ‘degas’ aqui é quem decide”.

Diante de “tamanha erudição”, quedei-me silente, porque seria a mesma coisa que tentar convencer a alguém da direita norte-americana que Barack Obama não é estrangeiro e que Michelle Obama não é transexual ou que os peixes do oceano pacífico não estão extintos e que não é verdade que a imprensa vem omitindo esse fato. Pedi mais um café e disfarcei, fazendo de conta que atendia um chamado no celular.

Pois essa conversa vem repetida, mutatis mutandis, por dois juízes no Facebook, a propósito de minha coluna sobre o ranking das doze decisões que mais representaram o ativismo judiciário no Brasil no ano de 2016. Disse o juiz de direito Eduardo Soares de Araújo (MG), em post comentando minha coluna: “que minhas críticas ao ativismo só atrapalham”. “Que sou um juiz frustrado”. “Meus textos críticos são mal vistos por ele e a maioria dos juízes”. “E que tenho a petulância de querer ensinar os juízes a decidir, mesmo sem nunca ter proferido uma sentença: É como um padre casto querendo ensinar educação sexual pelo que leu nos livros. Como diz o ditado, quem sabe faz, quem não sabe, ensina”. (sic) Bem assim. Pior: Seu post foi aplaudido pelo seu colega, juiz Sergio Bernardinetti (PR), que acrescentou: “Podia prestar concurso para a magistratura e mostrar como se faz. Que tal?” (sic)”.

Bom, eu poderia usar o mesmo tipo de argumentação contra o juiz Eduardo, chamando-o de vereador ou deputado ou prefeito frustrado. Ou promotor/procurador eleitoral frustrado. Afinal, “quem sabe faz, quem não sabe, ensina”, certo? (sic) Digo isto porque visitei a página do Facebook de sua excelência. E lá vi sua “frustração” esculpida em carrara com o governo passado (veja-se que pau que bate em Chico…). O dr. Eduardo mostra, ali, para o mundo, sua frustração com a política. De forma virulenta, chamou o governo Dilma de populista e mentiroso. Em outro post, foi mais longe, verbis: “Sinceramente, não consigo entender as pessoas que ficam defendendo esse governo corrupto, incompetente e irresponsável”. Até exemplo da Venezuela tirou para que o povo brasileiro abrisse os olhos (sic). Uau. Mas ele não é juiz? Nunca foi governante. Nunca foi prefeito. Nunca foi parlamentar. Como pode, então, falar mal da política desse jeito? Se Hart, Dworkin e eu não podemos falar de decisão porque nunca demos uma, por que ele pode falar assim da política? “Quem sabe faz, quem são sabe, ensina”, excelência? Candidate-se, então. Trata-se do efeito bumerangue. Viu quanto dói uma saudade? Além do mais, sua excelência foi (ou é) juiz eleitoral. Isso não exige um afastamento minimamente desejável das opiniões ideológico-partidárias? Lenio, em sânscrito clássico, que dizer: “aquele que está atento”. Isso para que os leitores vejam como são (e estão) as coisas e como está o envolvimento político de setores da magistratura brasileira. E do Ministério Público (basta ver esta matéria). Mas, caríssimo magistrado Eduardo, fique tranquilo. Sou democrata, hermeneuta e republicano (o que é uma redundância, cá para nós!). Não tenho problemas com juízes ou promotores que se posicionem politicamente, desde-que-não-ofendam-ideologicamente-os-adversários. Aliás, não faz muito lutei, fazendo parecer jurídico — de forma republicana — em favor de colegas seus, juízes do Rio de Janeiro, que fizeram manifestação contra o impeachment. Claro: no caso do Rio, eles não usaram esse baixo calão nas críticas. Mas, se necessário, faria parecer em favor do juiz Eduardo. Voltaireanamente.

Sigo. Para dizer que, sim, sei que Eduardo e Sérgio não representam o pensamento da magistratura pátria. Sei que o juiz que me encontrou no congresso também não. Mas, fico fazendo uma recherche: Miguel Reale, Nelson Nery Jr, Jose Medina, Ronaldo Porto Macedo Jr., Georges Abboud, Marcelo Cattoni, Jacinto Coutinho, Dierle Nunes, Fredie Didier, Marinoni, nenhum deles prolatou decisões; os grandes positivistas como Hart (que foi, além de professor, um excelente advogado), Raz, Shapiro, Coleman, Walluchow e Austin não foram magistrados e nem membros de cortes. Dworkin também não foi magistrado e fez talvez a mais importante teoria que trata da decisão; Alexy, o adorado dos juízes, também não exarou decisões e elaborou extensa e sofisticada teoria para, justamente, mostrar como decidir; Savigny também não foi juiz. Paulo Bonavides, Manuel Atienza, Juan Manero, Miguel Carbonell, Tercio Sampaio Ferraz Jr, Ovídio Baptista da Silva, Micheli Taruffo, Friedrich Müller não laboraram nesse ramo sentencial. E, interessante, Kelsen, embora tivesse sido juiz constitucional, nunca prestou concurso; no nosso STF a grande maioria não foram juízes; foram indicações, sem passar pelo concurso. Pergunto: Nenhum dos grandes teóricos e processualistas citados não poderiam ter escrito ou não podem escrever sobre decisão judicial ou de como os juízes devem decidir, porque, como “celibatários”, não pode(ria)m dar conselhos “sobre casamento da lei com os casos concretos”? São todos juízes frustrados?

Todos os teóricos do Direito, processualistas, constitucionalistas citados acima nunca foram juízes. Eu nunca fui juiz. Mas fui membro do Ministério Público durante 28 anos e fiz denúncias e pareceres durante essas quase três décadas, depois de ter passado por um concurso público do mesmo nível da magistratura. E escrevi mais de 30 livros (dentre eles, um vertido para o inglês e quatro em espanhol, com mais dois com tradução feita e um em alemão no prelo — todos sobre decisão e hermenêutica) e publiquei mais de 200 artigos em vários países.

Conclamo para que paremos com mesquinharias. Está na hora de sermos republicanos. Há uma coisa maior do que nossas veleidades. Existe uma Constituição que temos que cumprir e que todos os dias está sendo vilipendiada. Aliás, a Constituição já foi substituída pelas decisões voluntaristas de parte da magistratura, apoiada por membros do MP que pensam, uma parcela, como Eduardo e Sergio. Como aquele juiz do trabalho de São Paulo, que disse que se tiver que fundamentar as decisões conforme o novo CPC se mudará para Zimbawe. E assim por diante. Neste momento, deveríamos nos preocupar com o que o Direito pode fazer pelo país. O Brasil está explodindo. Sugiro a leitura da Carta Aberta da AASP à Comunidade Jurídica publicada em dezembro passado. E acrescento: Assistimos passivamente o desmonte do já tênue estado social (artigo 3º. da CF); vem aí uma reforma trabalhista que joga o Brasil no século XIX; decretamos a inconstitucionalidade das “coisas prisionais” (Estado de Coisas Inconstitucional) e de nada adiantou (vejam-se as mortes nos presídios). E a terceirização dos presídios — o que é isto? (Manaus era terceirizado! — veja-se o que dizem peritos!). Ainda: Mais de 20% dos presos de crimes de tráfico e propriedade são/foram condenados com base na tese inconstitucional da inversão do ônus da prova. E onde está o Direito, que não responde? O Direito “foi tomado”. Sabem por que(m)? Porque o (des)moralizamos. Paradoxalmente, desmoralizamos o Direito no momento em que o substituímos por juízos morais e políticos. Como disse na semana passada, futebolizamos o Direito. O tribunal não decide correta ou incorretamente. Não. Ele decide bem… se é a nosso favor; e… mal, se for contra. Por isso o ministro que hoje é herói, amanhã será vilão.

Insisto: Está na hora de recuperarmos o Direito. Temos de salvá-lo das idiossincrasias pessoais. Advogados de todas as querências são humilhados todos os dias nos fóruns deste país e ninguém faz nada. Decisões são tomadas com base em opiniões pessoais. E ninguém faz nada. Quando alguns juristas se insurgem e passam a ser uma pedra no sapato, tem-se uma bizarra reação.

O que me importa é a República. Importa-me escrever todos os dias pregando para que o Direito seja o instrumento para filtrar a subjetividade dos juízes e promotores e não que o direito seja o resultado de um filtro moral. Sei que milhares de juízes, membros do MP, da advocacia pública e defensores públicos concordam comigo. Muitos têm receio de escrever ou dizer. Mas temos de lutar contra o autoritarismo.

Padres castos podem, sim, falar sobre casamento. Padres podem sim, falar sobre coisas mundanas, como educação sexual, etc. Aliás, padres estudam muito. Teologia, filosofia. Não é preciso mergulhar na piscina para falar da água. Hart nunca prolatou uma decisão e… bem, o resto vocês sabem.

Neste 2017 paremos de ser hipócritas. Paremos de esconder o sol com a peneira. Construímos o pior Direito dos países civilizados. Formamos um conjunto de operadores analfabetos funcionais. As salas de aula viraram um simulacro. Parcela considerável dos livros utilizados nas salas de aula deveria ter uma tarja com os dizeres “o uso desse material pode fazer a sua saúde mental” (desculpem-me por repetir esse bordão que inventei nos anos 90). Cursinhos fazem training. Coachings. A literatura só vende se for super-facilitada. Concurso públicos viraram quiz shows e gincana de pegadinhas. Agentes políticos recebem salários e benefícios fora da lei e ficam acima da lei. Não se cumpre o teto escrito na Constituição. Veja-se o que disse o ministro Gilmar Mendes no artigo do dia 28 de dezembro de 2016.

Então quem não é magistrado não pode criticar juízes e nem pode se arvorar no Direito de “ensinar como se decide”? Façam-me o favor. O Direito é um fenômeno complexo e nós estamos brincando de escolher. Sim, decisões viraram escolhas subjetivas. Na Bahia uma juíza disse que não tinha prova contra o prefeito, mas ela sabia que ele era culpado… e cassou o seu mandato.

O Brasil é o único país do mundo em que o que menos importa é o que você escreve na peça inicial. Porque o pedido será conhecido ou negado de acordo com o que o decididor pensa. E se reclamar, fazendo embargos, leva multa. O CPC exige fundamentação e nem o STF obedece o artigo 489 (lembrem-se dos Einsatzgruppen de recursos denunciados por Dierle Nunes).

E ainda tenho que aguentar Eduardo e Sergio fazendo troça no Facebook. Envergonhemo-nos. Eis o lema. Urgente. E salvemos o Direito. Se começarmos agora, exigindo accountability e responsabilidade política, talvez a próxima geração esteja livre desse império subjetivista que formamos. E estejamos livres de um certo “patrimonialismo epistêmico”.

Salvemos o Direito. Urgentemente. Feliz 2017 a todos. Faz escuro, mas eu canto, dizia o poeta. Ou, melhor ainda, permito-me repetir a frase de T. S. Eliot:

Numa terra de fugitivos quem anda na direção contrária parece que está fugindo!

Não desistirei! Saludo!

A propósito: Obama é, sim, americano, reconhecido pelo próprio Trump. Michelle Obama não é transexual. E ainda ontem comi um gostoso peixe pescado no oceano pacifico. E, ainda mais uma coisa: Calmon de Passos nunca foi juiz também. Foi procurador. Como eu. Tenho saudades do velho professor Calmon. Que já fazia críticas como essa nos anos 80-90. Lembro-me nos anos 90 Calmon carregando meu livro de Súmulas em frente ao peito dizendo: “— eu entendi o que ele quis dizer”. Passeava entre o público no Hotel Glória. Ele e eu, mais tanta gente que nunca fez uma sentença, ousamos dizer como se faz. Ou pelo menos como não se faz. Já é um bom começo, pois não?

*Texto alterado às 16h21 do dia 5 de janeiro de 2017.

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