Tribuna da Defensoria

Superando expectativas negativas: o indulto natalino de Temer e seu ministro

Autor

  • Paulo Henrique Drummond Monteiro

    é defensor público de Minas Gerais membro da Comissão de Execução Penal do Colégio de Defensores Públicos-Gerais (Condege) e da Câmara de Estudos em Execução Penal da Defensoria Pública de Minas Gerais.

3 de janeiro de 2017, 7h00

O Decreto Federal 8.940/2016, que concede o indulto natalino, publicado no dia 23 de dezembro, significou terrível retrocesso em termos de política criminal e penitenciária, alterando um caminho que vinha sendo traçado há anos nessa seara.

Após as notícias veiculadas na grande mídia sobre a Política de Drogas do Ministério da Justiça[1], as expectativas negativas sobre o conteúdo do decreto só aumentaram na comunidade jurídica que atua na execução penal e que conhece de perto as mazelas do cárcere.

As palavras do ministro Alexandre de Moraes no dia anterior à publicação do decreto eram preocupantes:

“É uma sinalização, seja para a criminalidade, para quem está preso, seja para a sociedade, do que realmente se pretende combater de forma mais dura, e do que se pretende como prioridade na questão da criminalidade”[2].

No entanto, o decreto conseguiu ser pior que qualquer prognóstico catastrófico eventualmente feito por aqueles que denunciam a falida política de encarceramento em massa.

Trata-se do primeiro ato efetivo deste governo que coloca em prática uma política criminal que está na contramão das tendências mundiais de desencarceramento. Vejamos as principais mudanças.

1. Da supressão da comutação
Para iniciar, diferentemente dos últimos decretos natalinos, o decreto de 2016 não concedeu comutação a qualquer título. Não há previsão de qualquer possibilidade de redução parcial da pena por clemência presidencial no Decreto 8.940/16. Trata-se de uma decisão política que terá drásticas repercussões no controle da população carcerária, na medida em que a comutação da pena tinha o condão de surtir efeitos sobre todos os demais direitos da execução.

2. Restrição no indulto humanitário
No que se refere ao indulto humanitário, o decreto de 2016, diferentemente dos anteriores, exige o cumprimento de uma fração de pena (1/4, 1/3 ou 1/2, conforme o caso) para que os sentenciados gravemente enfermos possam fazer jus ao indulto.

Nos decretos anteriores, o indulto humanitário não era condicionado a quaisquer requisitos relativos ao tempo de cumprimento de pena, mas apenas a requisitos referentes à comprovação da doença e, em alguns casos, referentes à restrição de participação e à impossibilidade de tratamento no estabelecimento penal.

3. Supressão de hipóteses específicas de indulto
Por outro lado, foram suprimidas no novo decreto várias hipóteses específicas de concessão do indulto que, nos decretos anteriores, traziam requisitos mais brandos para determinados grupos e situações, tais como: o indulto para idosos com menos de 70 anos; para mulheres com filhos; para pessoas com longuíssimo tempo de cumprimento ininterrupto de pena; para pessoas que concluíram ensino formal durante o cumprimento da pena; para pessoas que exerceram trabalho externo e gozaram de saídas temporárias por determinado tempo; para pessoas em regime aberto, em prisão domiciliar e em livramento condicional; para pessoas que cometeram crimes patrimoniais sem violência e repararam o dano etc.

4. A restrição das hipóteses gerais de indulto
No que se refere às hipóteses gerais de indulto, únicas que restaram, verifica-se no novo decreto o estabelecimento de critérios diferenciados para o perdão de crimes praticados “com violência ou grave ameaça” e de crimes praticados “sem violência ou grave ameaça”.

Estipularam-se, ainda, diferentes requisitos objetivos a depender do quantum de pena em execução.

Analisando-se o panorama geral, os requisitos objetivos tornaram-se muito mais gravosos do que aqueles previstos nos decretos anteriores. Ilustra-se:

Requisitos
  Decreto 8.615/2015 Decreto 8.940/2016
Crimes com violência ou grave ameaça
  • Pena aplicada ≤ 8 anos
  • Cumprimento de 1/3 da pena se primário e 1/2 se reincidente 

    (artigo 1º, I do Decreto 8.615/15)

  • Pena aplicada ≤ 4 anos
  • Cumprimento de 1/3 da pena se primário e 1/2 se reincidente ou
  • 4 anos < pena aplicada ≤ 8 anos
  • Cumprimento de 1/2 da pena se primário e 2/3 se reincidente

    (artigo 5º, I, a e II, a do Decreto 8.940/16)

Crimes sem violência ou grave ameaça
  • Pena aplicada ≤ 12 anos
  • Cumprimento de 1/3 se primário, o 1/2 se reincidente

    (artigo 1º, I c/c II do Decreto 8.615/15)

  • Pena aplicada ≤ 12 anos
  • Cumprimento de 1/4 se primário e 1/3 se reincidente

    (artigo 3º, I, a do Decreto 8.940/16)

Veja-se que o decreto dificultou a possibilidade de indulto dos crimes praticados com violência ou grave ameaça, prevendo a necessidade de cumprimento de nada menos que 1/2 da pena (se primário) e 2/3 da pena (se reincidente), caso reprimenda em execução seja superior a quatro anos e não superior a oito anos. Nos decretos anteriores, a exigência era de apenas 1/3 e 1/2, respectivamente.

5. Do indulto para idosos
No que se refere à clemência para os idosos, o Decreto 8.940/16 deixou de prever a possibilidade de indulto para idosos com mais de 60 e menos de 70 anos. De outro lado, para aqueles que tenham 70 anos de idade ou mais, o indulto se tornou mais difícil caso a pena em execução se refira a crime praticado com violência ou grave ameaça e seja superior a quatro anos e igual ou inferior a oito anos. Isso porque foram exigidas frações maiores (1/3, se primário, e 1/2, se reincidente) para essa hipótese do que as previstas nos anos anteriores (1/4 e 1/3, respectivamente, v.g. art. 1, IV do Decreto 8.615/15).

De outro lado, suprimiu-se, também, o indulto para idosos condenados a pena superior a oito anos.

6. Indulto para pessoas que possuam filhos
No que tange às pessoas que possuem filhos, o reconhecimento do indulto também se tornou mais difícil.

Nos decretos anteriores era previsto indulto para pessoas que possuíssem filhos menores de 18 anos, exigindo-se diferenciadas frações para condenados homens e condenadas mulheres. No decreto de 2016, apenas é prevista a possibilidade de indulto para pessoas que possuem filhos menores de 12 anos, e, ainda, sem diferenciação para homens e mulheres.

Lado outro, no que se refere o indulto para condenados com filhos deficientes ou gravemente doentes, passou-se a prever que o indulto apenas será concedido se a criança necessitar de cuidados diretos do recluso, requisito inexistente nos decretos anteriores (artigo 1, parágrafo 1º, III do Decreto 8.940/16).

7. Do indulto das penas restritivas de direito
Quanto às penas restritivas de direito, deixou-se de prever expressamente qualquer hipótese de indulto.

No entanto, considerando que a PRD prevista no Código Penal tem natureza jurídica de pena substitutiva da Pena Privativa de Liberdade (artigo 44,CP), o melhor entendimento é aquele segundo o qual, se estiverem cumpridos os requisitos objetivos e subjetivos, o perdão da Pena Privativa de Liberdade aplicada alcançará a Pena Restritiva de Direitos que a substituiu.

8. Da supressão do indulto da pena de multa
Ignorando a realidade social daqueles que costumam ser os destinatários do sistema penal, o presidente da República, no artigo 10 do Decreto 8.940/16, vedou expressamente a possibilidade de indulto da pena de multa.

Conforme salientado anteriormente, entendemos que a multa substitutiva não foi alcançada por essa vedação, na medida em que ela apenas substitui uma Pena Privativa de Liberdade aplicada.

No entanto, as multas cumulativa ou alternativamente cominadas ou aplicadas não foram agraciadas com a clemência do presidente.

9. Do requisito referente ao crime impeditivo
Para as situações em que há execução cumulada de pena comum e de pena referente a crime hediondo, os decretos anteriores previam a necessidade de cumprimento de 2/3 da pena referente ao crime hediondo para que se pudesse indultar a pena comum.

O artigo 11, parágrafo único do Decreto 8.940/16, porém, exige o cumprimento da totalidade da pena hedionda para que se possa fazer jus ao indulto da pena comum.

Essa mudança também ensejará graves efeitos sobre os índices relativos à população carcerária, na medida em que a execução cumulativa de penas comuns e hediondas consiste em situação muito recorrente.

10. Supressão do dever de encaminhamento
No decreto de 2016, não há previsão, como nos decretos anteriores, sobre o dever da unidade prisional de remeter ao juiz a lista de sentenciados que fazem jus ao indulto. Também não houve previsão do poder anteriormente conferido à OAB e às ouvidorias do sistema penitenciário de também remeter a referida lista.

O decreto deixou, ainda, de arrolar as pessoas e entidades legitimadas para requerer o indulto, bem como de prever expressamente a possibilidade de reconhecimento de ofício pelo juiz.

Em que pese decorra da Lei de Execução Penal a possibilidade do reconhecimento de ofício do indulto pelo juiz bem como a legitimidade de todos os órgãos da execução penal, do estabelecimento prisional e do próprio sentenciado para requerê-lo, a supressão dessas previsões demonstra o evidente propósito do governo de dificultar o reconhecimento da benesse, uma vez que desnecessariamente foi aberta a possibilidade de divergência sobre a questão.

11. Restrições referentes ao requisito subjetivo
A novidade mais desastrosa desse decreto se refere ao requisito subjetivo.

Os decretos anteriores condicionavam a declaração de indulto à “inexistência de aplicação de sanção, reconhecida pelo juízo competente, em audiência de justificação, garantido o direito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, por falta disciplinar de natureza grave, prevista na Lei de Execução Penal, cometida nos doze meses de cumprimento da pena contados retroativamente a 25 de dezembro”. Nesses termos, os decretos mantinham respeito à presunção de inocência, permitindo o afastamento do indulto apenas se a falta grave tivesse sido reconhecida em juízo.

O Decreto de 2016, porém, prevê redação completamente diferente da que vinha sendo repetida há anos:

Art. 9º A declaração do indulto prevista neste Decreto fica condicionada à ausência da prática de infração disciplinar de natureza grave, nos doze meses anteriores à publicação deste Decreto. 

Parágrafo único. Caso a infração disciplinar não tenha sido submetida à apreciação do juízo de execução, a declaração do indulto deverá ser postergada até a conclusão da apuração, que deverá ocorrer em regime de urgência. 

Como se vê, o novo decreto determina que, caso uma suposta falta, praticada nos 12 meses anteriores à sua publicação, não tenha sido submetida à apreciação judicial, deverá ser postergada a análise do indulto, até a conclusão da apuração da falta.

Essa redação, decorrente de péssima técnica legislativa, ensejará diversos problemas que terão que ser enfrentados pelos que militam na execução penal.

Inicialmente, há que se salientar que a previsão do artigo 9º, parágrafo único é de constitucionalidade duvidosa na medida em que viola frontalmente o Estado de Inocência (artigo 5º, LVII, CR/88), ao possibilitar a suspensão do reconhecimento de um direito adquirido na data da publicação do decreto, em razão de mera notícia de suposta falta.

Na tentativa de salvar o dispositivo, interpretando-o conforme a Constituição, alguns sustentarão que a postergação da análise do indulto tem caráter cautelar, devendo ser fundamentada pela presença de fumus comissi delicti e de periculum libertatis.

No entanto, questiona-se se o decreto presidencial poderia estabelecer essa suspensão cautelar para o indulto.

Isso porque, embora o direito ao indulto decorra de discricionariedade do presidente da República, a previsão de postergação de sua declaração em juízo constitui regra de caráter processual, ou ao menos regra de procedimento em matéria processual, que deveria ser tratada mediante lei (artigo 22,I e 24,XI da CR/88). Lado outro, não há qualquer previsão em lei da possibilidade de suspensão dos direitos da execução em caráter liminar ou cautelar.

Ainda que se considere válido o dispositivo, outros problemas deverão ser enfrentados.

O texto do artigo 9º, parágrafo único estabelece que a declaração do indulto deverá ser postergada caso a suposta falta não tenha sido “submetida à apreciação judicial”. Isso quer dizer, a contrario sensu, que se a suposta falta grave já tiver sido submetida à apreciação judicial pela unidade prisional, nos termos do artigo 48, parágrafo único da LEP, mas o juízo ainda não a tiver julgado, não haverá postergação da análise do indulto?

O imbróglio torna-se ainda mais nebuloso diante do teor do artigo 12 do decreto, que estabelece a prioridade da declaração de indulto sobre qualquer outro incidente da execução, o que por conceito inclui o incidente de apuração de falta grave.

Além disso, pergunta-se: caso a notícia de suposta falta sobrevenha à data da publicação do decreto de indulto, deverá ser postergada a análise do perdão ou essa postergação só ocorrerá caso a notícia tenha chegado aos autos até a data da publicação do decreto? Qual será a data-base para a análise?

Entendemos que só será possível essa suspensão se a notícia de falta grave tiver chegado aos autos até 23/12/2016. Se não houver notícia de suposta falta até a data de concessão do indulto pelo presidente da República, a análise do perdão passa a ser preferencial, nos termos do artigo 12 do decreto, porquanto já adquirido o direito.

Enfim, serão intermináveis as questões a serem debatidas sobre esse requisito, em razão da péssima técnica legislativa que foi utilizada. Não se pretende nesse momento apresentar respostas definitivas, mas apenas demonstrar a completa ausência de clareza do texto publicado.

12. Conclusão
Essas foram, dentre outras, as principais alterações promovidas pelo novo decreto de indulto.

É indiscutível que, com essas novas regras, o decreto tornou-se absolutamente inócuo para fins de limitação do crescimento exponencial da população carcerária brasileira.

Afinal, o alto rigor dos requisitos objetivos, a inexistência da comutação e as modificações relativas ao requisito subjetivo desenharam uma realidade extremamente difícil para que alguém deixe o sistema prisional em razão do perdão presidencial.

A maior parte da pequena parcela de pessoas que se enquadram nos requisitos do indulto de 2016 já deixou o sistema penitenciário em função de outros institutos, tais como a progressão para o regime aberto, a prisão domiciliar e o livramento condicional, ressalvando-se algumas exceções decorrentes de incidentes da execução.

Certo é que o decreto não alcança situações que são essenciais no controle da população carcerária, colaborando para que o Brasil continue caminhando a passos largos até o alcance do triste título de maior encarcerador do planeta.


[1] Nos referimos à notícia veiculada pelos jornais Estadão e O Globo, sobre o Plano Nacional de Segurança apresentado pelo ministro da Justiça. http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/alexandre-de-moraes-quer-erradicar-maconha-no-continente.html, acesso em 27/12/2016.
[2] Declaração noticiada em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-12/indulto-natalino-tera-criterios-mais-rigidos-para-crimes-violentos-diz, acesso em 27/12/2016.

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