Retrospectiva 2016

No campo das instituições, Carf se distingue como uma arena democrática

Autor

  • Breno Ferreira Martins Vasconcelos

    é sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados doutorando em Direito e Desenvolvimento na FGV Direito SP (beneficiário da Bolsa Mario Henrique Simonsen) advogado professor da pós-graduação lato sensu da Escola de Direito de São Paulo da FGV e do Insper e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV e do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper.

2 de janeiro de 2017, 12h13

“How can I begin anything new
with all of yesterday in me?”

Leonard Cohen, em Beautiful Losers

2016 foi um ano tão intenso, disse um amigo, que demandaria alguns anos para ser explicado.

O convite que recebi para escrever esta retrospectiva veio com um gentil, porém impossível, pedido de ser breve. Por essa incapacidade, optamos por dividir a retrospectiva do Carf em duas partes: esta primeira, sobre a instituição; e a segunda, sobre os julgamentos de suas três seções, incluindo as turmas da Câmara Superior.

2016 marcou a retomada das atividades do Carf a partir de um novo paradigma. Com a reestruturação introduzida pelo Regimento Interno da Portaria MF 343, de 9 de junho de 2015, os julgamentos administrativos voltaram sob nuvens carregadas de pressão arrecadatória, alimentadas por uma crise econômica persistente e agitadas pelos ventos incertos da operação zelotes.

Nesse cenário, a estrutura e o funcionamento do Carf não apenas ganharam ainda mais relevância entre pesquisadores e juristas que acompanham sua evolução, mas se tornaram objeto de atenção de toda a sociedade.

1. Paridade, equilíbrio e voto de qualidade
A debandada de conselheiros representantes dos contribuintes após a publicação do Decreto 8.441/15, que instituiu a remuneração para conselheiros representantes dos contribuintes, e o acórdão do Conselho Federal da OAB, que entendeu serem absolutamente incompatíveis a atividade de conselheiro e a advocacia, trouxe uma leva de novos profissionais para integrar o órgão.

Até os últimos dias de 2016, contudo, a composição do Carf ainda não havia sido concluída. A existência de vagas em aberto, para conselheiros titulares e suplentes, fez com que contribuintes recorressem ao Judiciário para suspender os julgamentos até que o colegiado competente estivesse completo, como forma de garantir a paridade prevista em lei[1].

O órgão reagiu publicando a relação de vagas não preenchidas e indicando as representações perante o Carf (Fazenda Nacional, confederações e centrais sindicais) responsáveis pelo envio da lista tríplice de candidatos[2].

A paridade também teve destaque sob o enfoque dos votos de qualidade.

Pesquisa divulgada pelo Observatório do Carf demonstrou que 100% dos votos de qualidade proferidos pela Câmara Superior de Recursos Fiscais entre dezembro de 2015 e 30 de junho de 2016 foram favoráveis ao Fisco[3].

A resposta a esse padrão decisório veio, em princípio, por meio de ações judiciais ajuizadas pelos contribuintes para combater os julgamentos que contaram com voto de qualidade[4]. A OAB também se posicionou afirmando que pretende propor uma ação declaratória de inconstitucionalidade contra a Lei 11.941/09, por entender que a atribuição do desempate a representante da Fazenda Nacional prejudica a paridade[5].

No Legislativo, o deputado Carlos Bezerra apresentou em agosto deste ano o Projeto de Lei 6.064/2016, em que propôs a alteração dos artigos 25, parágrafo 9º e 37, parágrafo 4º do Decreto 70.235/72 para suprimir a previsão de voto de qualidade e determinar que, havendo empate, (i) deve ser aplicada a interpretação mais favorável ao contribuinte e (ii) a Procuradoria da Fazenda Nacional poderá ingressar com ação judicial caso a decisão administrativa de cancelamento do auto de infração seja definitiva.

O objetivo da modificação seria buscar uma decisão mais imparcial no julgamento dos processos fiscais em âmbito administrativo.

O dado objetivo de que todos os julgamentos que demandaram o voto de qualidade na CSRF foram desfavoráveis aos contribuintes representa, sem dúvidas, um importante indício de desequilíbrio entre as partes no processo administrativo, cuja confirmação deve ser buscada por meio da conjugação com outros elementos, por exemplo, comparando o histórico das decisões e submetendo-as ao crivo de análises qualitativas.

2. Relatório das decisões do Carf de janeiro a agosto de 2016
Em outubro, o Carf publicou o Relatório das Decisões Proferidas de Janeiro a Agosto de 2016[6], destacando, em especial, os resultados dos julgamentos (i) a favor dos contribuintes, em sua maioria, vencedores em 52% dos processos considerados no relatório contra os 48% da Fazenda, e (ii) por tipo de votação, concluída por unanimidade em 67,20% dos casos.

A divulgação desses dados, em si, já é um importante e louvável passo em direção à transparência, mas merece as ponderações críticas tão bem expostas por Cristiane Leme e Susy Hoffmann[7]:

(i) nos dados relativos aos julgamentos de recursos repetitivos, o relatório considerou apenas o resultado do paradigma de cada matéria, o que causa uma distorção na análise quantitativa dos resultados, pois reduz significativamente o número de processos considerado no cálculo do percentual de decisões favoráveis aos contribuintes e à Fazenda;

(ii) os provimentos parciais aos recursos voluntários, de ofício e especiais foram incluídos no cômputo dos resultados favoráveis à respectiva parte recorrente. A análise, contudo, foi restrita às atas de julgamento, sem verificação das matérias objeto de provimento. Como bem notou Daniel Santiago, “é comum que os conselheiros anulem as multas ou reconheçam a decadência de parte do recurso, por exemplo. Nesses casos, o montante derrubado é muito inferior ao que é mantido”[8]. Ou seja, para fins estatísticos, o correto seria proporcionalizar, conforme a matéria ou o valor, os ganhos e perdas das partes.

(iii) os recursos não conhecidos também foram considerados no cálculo dos resultados, sendo fator de distorções por não representar o posicionamento do tribunal a favor do contribuinte ou da Fazenda quanto ao mérito da discussão administrativa.

A essas considerações, acrescento um desdobramento quanto à não vinculação dos resultados dos julgamentos aos valores dos créditos tributários. De acordo com o relatório de gestão do próprio órgão, aproximadamente 68,42% do crédito tributário pendente de julgamento está concentrado em 873 processos (0,07%), contra 117.468 processos (99,03%) correspondentes aos 31,58% restantes. Assim, para os próximos relatórios, espera-se que o Carf divulgue os resultados de julgamento e respectivos valores mantidos ou cancelados[9].

3. A via crucis dos julgadores administrativos no Carf
O grupo de conselheiros representantes dos contribuintes que ingressaram após o Decreto 8.441/15 vem exercendo sua função de julgador administrativo em situação extremamente delicada.

Destaco a nota Elementos de uma via crucis: o ofício de julgador administrativo no Carf, publicada pela ConJur, por meio da qual a Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf expôs os aspectos tortuosos das regras que envolvem o volume de trabalho versus a carga horária estabelecida para seu cumprimento e da falta de garantias quanto ao recebimento da remuneração, vinculada ao comparecimento em sessões públicas de julgamento (artigo 2º do Decreto 8.441).

Os pontos levantados pelos conselheiros ganharam ainda mais destaque em outubro deste ano, quando sessões de julgamento foram suspensas em razão da greve dos auditores fiscais, aderida por grande parte dos conselheiros representantes fazendários. Consequência: os conselheiros representantes dos contribuintes continuam recebendo mensalmente lotes de processos e trabalhando para cumprir os prazos para preencher as pautas de julgamento, sob pena de perda de mandato, mas não são remunerados porque as sessões estão suspensas. 

O cenário, de retumbante inconstitucionalidade por exigir que conselheiros trabalhem sem remuneração, em condição análoga à de escravo, é de clara desigualdade entre conselheiros e enfraquecimento dos representantes dos contribuintes, um retrocesso incompatível com a estrutura definida para o órgão.

Desse quadro caótico — e injusto — surgiu uma reação aparentemente positiva: segundo notícias recentes, Ministério da Fazenda e Carf articulam alteração normativa para garantir o pagamento de remuneração nos casos em que a atividade de julgamento for impedida por “motivos de força maior”[10].

4. Proposta de extinção do Carf
Em 7 de dezembro, a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados surpreendeu toda a comunidade jurídica e aprovou, sem debate público, o Projeto de Decreto Legislativo 55/15, que pretende extinguir o tribunal administrativo, sem criar nenhuma instância recursal alternativa.

A justificação é a de que o Carf serviria apenas para garantir um “aparente” devido processo legal, tratando-se, na verdade, de um “bem articulado esquema de corrupção com graves prejuízos para o Erário e que pode ter causado um desvio de quase R$ 20 bilhões dos cofres públicos”.

Não negamos os diversos indícios de desvios investigados e que devem ser apurados, mas a solução proposta é absurda.

a. Carf não serve apenas para garantir um aparente devido processo legal
Mais uma vez, os números trazem evidências fáticas da efetividade e importância do Carf. Apenas a título de exemplo, de acordo com dados divulgados pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), aproximadamente 30% das decisões proferidas por DRJs, e devolvidas ao Carf via recurso de ofício, foram reformadas pelo tribunal paritário[11].

A tentativa de extingui-lo encontra ainda a insuperável inconstitucionalidade de violar as garantias de “contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, inscritas no artigo 5º, inciso LV da Constituição. 

Além disso, o controle de legalidade realizado no Carf parte de um referencial mais amplo que o das delegacias de julgamento. As DRJs estão amarradas ao “entendimento da RFB expresso em atos normativos”, por imposição da Portaria do Ministério da Fazenda 341/11, ou seja, julgam conforme a interpretação da lei manifestada em soluções de consulta, atos declaratórios ou instruções normativas. Imagine o leitor quantos créditos tributários ilíquidos e incertos seriam despejados no já assoberbado Poder Judiciário federal, que conta com a expressiva taxa de congestionamento de 93,9%[12].

b. Carf não é um bem articulado esquema de corrupção e graves prejuízos ao erário. Soluções plausíveis para o tribunal
O Carf representa um órgão vocacionado, que permite uma revisão técnica e paritária dos atos administrativos e, consequentemente, a redução do estoque de processos judiciais.

Se projetássemos ao extremo a relação de causa e consequência que sustenta o projeto de decreto legislativo, chegaríamos à bizarra conclusão de que o Congresso Nacional, as empresas investigadas nas diversas operações de investigação de corrupção em curso e parte dos cargos do Executivo deveriam, todos, também ser extintos. Ou seja, é um rematado contrassenso a ideia de que a solução para a corrupção é o fim da entidade, e não sua reconstrução sob novos paradigmas.  

Novamente, estendo o período dessa retrospectiva e retomo o cenário analisado em 2015 sobre as falácias levantadas em defesa da extinção do conselho. Mais de um ano depois, a salvo de toda a turbulência e das reviravoltas de 2016, minha visão sobre o órgão se mantém: um Carf forte, transparente e independente é um objetivo a ser conquistado, não atacado. Um debate intelectualmente honesto e republicano é, portanto, o melhor caminho.

Enumero três propostas alternativas plausíveis:

(i) transformação do Carf em uma autarquia autônoma, sem relação de subordinação com o Ministério da Fazenda, no modelo do Cade, como defendido pelo especialista em microeconomia, Marcos Lisboa[13];

(ii) criação de uma instância judicial especial para julgamento das questões tributárias, na linha das propostas formuladas por Marcos de Aguiar Villas-Bôas e pelo Movimento de Defesa da Advocacia em artigos publicados na ConJur[14], ou;

(iii) como propus com o professor Daniel Santiago, em nossos estudos na Escola de Direito da FGV-SP, manutenção do modelo atual com a inclusão de um terceiro grupo de conselheiros, concursados, e, portanto, absolutamente desvinculados dos interesses do Fisco e dos contribuintes, preservando os benefícios decorrentes da dialética que caracteriza o modelo paritário. Nesse modelo, o voto de qualidade desapareceria, pois as turmas teriam número ímpar de conselheiros.

As duas primeiras alternativas parecem se adequar melhor à experiência internacional, mas poderiam pecar pelo distanciamento técnico dos julgadores da experiência prática de um sistema tributário extremamente complexo. A terceira alternativa seria uma adaptação de nosso modelo (paritário) — cuja virtude é agregar conhecimentos e formações diversas em um mesmo ambiente — à necessidade de julgamentos mais equilibrados, com a participação de um terceiro conselheiro concursado.

Conclusão
Remeto ao aforismo que inaugura o texto, uma frase do incomparável Leonard Cohen, poeta e cantor morto em 2016, em um de seus livros. A mensagem — “Como começar algo novo com todo o ontem que está dentro de mim?” — remete à inexorabilidade do passado para se pensar o novo. Não o passado que imobiliza, mas o que nos rende mais fortes, mais sábios e que, se não ensina o caminho certo a ser trilhado, pelo menos exclui aqueles que certamente são errados. No campo das instituições, tão surradas ao longo do ano, o Carf se distingue como uma arena democrática[15], responsável por lançar luz sobre a melhor interpretação a ser dada ao confuso emaranhado de normas tributárias, o que, no longo prazo, contribui para estabilizar as relações entre Fisco e contribuinte e garantir segurança jurídica às partes. Toda e qualquer alteração a ser promovida nesse campo deveria partir da premissa de fortalecer esses conceitos, não contrariá-los. É isso que, olhando o velho 2016, espero ver nascer em 2017.

*Com a colaboração de Thais Romero Veiga e Maria Raphaela Dadona Matthiesen.


[1] OLIVON, Beatriz. Judiciário impede julgamento no Carf. Valor Econômico, edição de 15/9/2016.
[2] Disponível em http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2016/carf-divulga-levantamento-com-vagas-de-conselheiros-nao-preenchidas, acessado em 23/12/2016.
[3] LEME, Cristiane. DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. HOFFMANN, Susy Gomes. O voto de qualidade em números. Disponível em: http://jota.info/colunas/observatorio-do-carf/observatorio-carf-o-voto-de-qualidade-em-numeros-12082016, acessado em 22/12/2016.
[4] RODAS, Sérgio. Voto de qualidade no Carf não vale por dois, e sim para desempatar julgamento. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-18/voto-qualidade-carf-nao-vale-dois-sim-desempate, acessado em 23/12/2016.
[5] OLIVON, Beatriz. OAB questionará no STF voto de qualidade do Carf. Valor Econômico, edição de 14/11/2016.
[6] Disponível em http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2016/relatorio-julgamentos-do-carf-jan_ags_2016-1.pdf, acessado em 23/12/2016.
[7] LEME, Cristiane. Hoffmann, Susy Gomes. Observações sobre o relatório das decisões do CARF publicado pelo CARF. Disponível em: http://jota.info/colunas/observatorio-do-carf/observacoes-sobre-o-relatorio-das-decisoes-carf-publicado-pelo-carf-04112016, acessado em 23/12/2016.
[8] Bárbara Mengardo, No Carf, contribuintes ganham nas câmaras baixas, mas perdem na Câmara Superior, disponível em: http://jota.info/tributario/no-carf-contribuintes-ganham-nas-camaras-baixas-mas-perdem-na-camara-superior-26102016, acessado em 23/12/2016.
[9] Para evitar a alegação de quebra de sigilo (artigo 198, CTN), os dados podem ser informados de forma global, e não individualizados.
[10] MENGARDO, Bárbara. Ministério garantirá remuneração no Carf durante a greve. Disponível em: http://jota.info/tributario/ministerio-garantira-remuneracao-no-carf-durante-greve-07122016, acessado em 22/12/2016.
[11] POMBO, Bárbara. MENGARDO, Bárbara. Vitória da Receita em metade dos casos derruba ideia de viés no Carf. Disponível em: http://jota.info/justica/vies-de-conselheiros-do-carf-e-mito-aponta-pesquisa-29052015, acessado em 22/12/2016.
[12] Relatório Justiça em Números – 2016, do CNJ: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf, Acesso em 22/12/2016.
[13] SAFATLE, Claudia. Lisboa propõe reformulação do CARF e redução da insegurança jurídica. Disponível em: http://www.valor.com.br/brasil/4804721/lisboa-propoe-reformulacao-do-carf-e-reducao-da-inseguranca-juridica?utm_source=JOTA+TRIBUT%C3%81RIO&utm_campaign=d7dface403-EMAIL_CAMPAIGN_2016_12_14&utm_medium=email&utm_term=0_eeb3d76a33-d7dface403-380165853, acessado em 22/12/2016.
[14] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Uma boa saída para o Carf é se tornar um tribunal judicial especial. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jul-22/marcos-villas-boas-boa-saida-carf-tornar-tribunal-especial, acessado em 22/12/2016.
CANÁRIO, Pedro. Advogados propõem instância única para julgamentos administrativos fiscais. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-30/advogados-propoem-instancia-unica-julgamentos-fiscais, acessado em 22/12/2016.
[15] Os recursos podem ser assinados pelo próprio contribuinte e não há limites de alçada para recorrer.

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