Opinião

Importação automática não garante sucesso de imitação institucional

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  • Anderson Bezerra Lopes

    é advogado mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) graduado em Direito pela PUC-SP e membro do departamento de Amicus Curiae do IBCCrim.

2 de janeiro de 2017, 5h08

O procurador-geral da República Rodrigo Janot defendeu recentemente, na imprensa, a tese de que o combate à corrupção no Brasil prescinde da criação de “novo modelo a partir do zero”, pois é possível “absorver práticas de prevenção e responsabilização consagradas pelo direito internacional”, adotando-se aquelas que atendam a nossa realidade. De acordo com tal raciocínio, a importação de instituições de combate à corrupção que foram exitosas em outros países certamente produzirão resultados semelhantes aqui.

Isto não é uma novidade. Trata-se daquilo que alguns pensadores, como Ha-Joon Chang, classificam como processo de imitação institucional. O alvo concreto da tese defendida pelo procurador-geral é o Projeto de Lei 4.850/16, vulgarmente conhecido como “dez medidas contra a corrupção”. O projeto foi votado e rejeitado em sua essência pela Câmara dos Deputados. Todavia, a votação foi recentemente anulada por decisão monocrática do ministro Luiz Fux.

Ademais, o procurador-geral buscou reforçar seu discurso com o argumento de que vários dispositivos do projeto seriam inspirados na Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (Convenção de Mérida, 2003). Em que pese tal raciocínio se mostrar bem intencionado e simpático — pois dificilmente alguém haverá de se levantar contra o combate à corrupção —, ora ele representa verdadeira falácia ora ele esconde graves equívocos conceituais e metodológicos.

Em primeiro lugar, não há dúvida de que a Convenção de Mérida representa importante inspiração para que os países signatários aperfeiçoem sua legislação interna com vistas a melhor combater o fenômeno da corrupção. Todavia, a própria Convenção, em dezenas de dispositivos, ressalva que isto deve ser feito “de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico”. Assim, a própria Convenção alerta que o combate à corrupção não deve ser travado em desconformidade com os vetores fundamentais do ordenamento jurídico de cada país, especialmente sua Constituição.

Neste ponto, o projeto de lei das “dez medidas contra a corrupção” vai na direção contrária da Convenção, pois, por exemplo, propõe restrições à garantia constitucional do habeas corpus que não foram previstas pelo legislador constituinte. Não pode o legislador ordinário criar restrições a uma garantia fundamental que sequer pode ser alterada por Emenda Constitucional (artigo 60, parágrafo 4°, IV, da Constituição Federal).

Esse mesmo vício é encontrado na grande maioria das medidas do referido projeto de lei. Daí que, sob a bandeira simpática do combate à corrupção, pretende-se corromper a própria Constituição, evidenciando o equívoco conceitual do projeto.

Em segundo lugar, ainda que fosse superado o critério da conformidade (de tais medidas) com os princípios fundamentais de nosso ordenamento jurídico, há suficientes exemplos na experiência nacional e internacional dando conta do fracasso do método de imitação institucional.

A título ilustrativo, a redação primitiva do Projeto de Lei 4.850/16 defende o aumento de pena (de crimes) proporcionalmente ao dano causado ou à vantagem ilícita auferida, justificando tal medida com a experiência adotada nos Estados Unidos da América. Acrescenta que, segundo estudos sobre corrupção, “uma das perspectivas do ato corrupto apresenta-o como fruto de uma decisão racional que toma em conta os benefícios e os custos da corrupção e os do comportamento honesto. A ponderação dos custos da corrupção envolve o montante da punição e a probabilidade de tal punição ocorrer. A inserção de tais delitos como hediondos repercute diretamente no montante da punição, sob prisma prático, pesando como fator negativo na escolha racional do agente”.

Como se vê, o projeto tenta importar a experiência norte-americana sem se atentar para outros fatores que estão relacionados ao fenômeno da corrupção. Basta observar que o próprio projeto reconhece que o agente realiza um cálculo sobre os custos e os benefícios da corrupção e os do comportamento honesto.

Ora, o empresário norte-americano não enfrenta a mesma burocracia que o empresário brasileiro em seus negócios. Lá, de largada, a corrupção se mostra desvantajosa pelo simples fato de que, em geral, o Estado não tende a ser um entrave aos negócios, mas sim um agente indutor. Basta comparar o tempo gasto para abertura de um negócio nos Estados Unidos e o tempo gasto no Brasil para atividade equivalente.

O projeto, por seu turno, vende um endurecimento das penas como solução mágica para um problema complexo. Portanto, comete equívoco o procurador-geral ao sustentar que o projeto é moderno e adequado à nossa democracia, pois a simples imitação institucional sem a consideração da cultura e das tradições internas demonstra que não surtirá aqui o mesmo efeito de lá.

De nada adianta reforçar a punição e os instrumentos de combate à corrupção se as instituições públicas permanecerem ineficientes e dotadas de burocracia que impeça o desenvolvimento econômico de modo razoável. Até o momento, não houve apresentação de qualquer dado científico demonstrando que o aumento do rigor punitivo é capaz de inibir ou reduzir a corrupção entre agentes com grande poder político e/ou econômico. Dito de outro modo, não há qualquer demonstração de que a impunidade histórica de alguns setores da sociedade seja a principal causa a impedir a redução da corrupção.

De fato, não há dúvida de que a certeza ou a alta probabilidade de permanecer impune é um dado considerado pelo indivíduo ao se decidir pelo cometimento (ou não) da conduta criminosa. No entanto, daí a inferir que esta é a principal causa dos altos índices de corrupção há uma enorme distância. A prova de que tal raciocínio é infundado pode ser ilustrada pela Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), a qual endureceu sobremaneira as penas para os crimes dessa natureza e, 26 anos mais tarde, não houve redução nos índices de crimes graves, muito ao contrário, houve substancial aumento de sua ocorrência.

Isto se deve ao fato de que a corrupção é um fenômeno multicausal. Não está relacionada apenas a uma subjetiva impressão de que a lei penal é branda na punição de tal conduta.

Em síntese, como alerta Ha-Joon Chang, o sucesso da imitação institucional não depende apenas da importação automática de modelos de outros países. É preciso atenção para outros fatores. Uma instituição pode ser funcional em determinada sociedade em virtude de outros fatores que não fazem parte da instituição. Essas variáveis que não integram a instituição não podem ser desconsideradas no processo de imitação institucional. Tal como ocorre com as tecnologias importadas, que exigem alguma adaptação às condições locais, o sucesso da importação de instituições também exige atenção a essas adaptações.

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