Ligação entre áreas

"Deixar o Direito do Trabalho alheio ao Direito Civil não é benéfico"

Autores

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

  • Paulo Roque Khouri

    é diretor do Brasilcon doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Privado e especialista em Direito do Consumo ambos pela Universidade de Lisboa autor do livro "Direito do Consumidor" (Atlas 7ª. Edição São Paulo 2021) sócio majoritário do escritório Roque Khouri&Pinheiro e professor do IDP.

1 de janeiro de 2017, 11h08

Spacca
O Direito do Trabalho não se beneficia de ser um ramo separado do Direito Civil. Isso porque a especialização nessa área acaba dificultando a conexão com os princípios fundamentais e com outras áreas jurídicas. Essa é a opinião de Pedro Romano Martinez, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

De acordo com ele, a separação desses campos cria “mundos distintos” que, muitas vezes, não se comunicam entre si. Dessa maneira, Martinez defende que o Direito do Trabalho tenha uma base comum com o Direito Civil.

Para fortalecer o seu argumento, o professor cita o fim dos magistrados trabalhistas em Portugal, na década de 1970. Segundo ele, essa alteração melhorou a qualidade das decisões sobre o tema, e fez com que o campo trabalhista passasse “a ser um pouco menos político e mais jurídico”.

Pedro Romano Martinez também não é entusiasta de um Código Comercial separado do Código Civil, como alguns vêm propondo no Brasil. A seu ver, a unificação entre esses dois ramos pode até ser criticada, mas uma vez feita, “não é a melhor solução retroceder e cindir as matérias logo em seguida”.   

Com relação a outro ramo civil, o Direito de Seguros, o diretor da Universidade de Lisboa considera positivo o dever de advertir o contratante que existe em Portugal. Para ele, a regra “é útil para casos nos quais haja uma complexidade jurídica e econômica que o justifique. São situações nas quais não basta dizer “olha, este seguro é para pagar uma indenização”. Estando diante de uma situação complexa, por exemplo, com um período de carência ou com uma exclusão de certos eventos”. No entanto, o civilista diz que o dever de advertir não serve para qualquer tipo de seguro.

Romano Martinez é autor de obras conhecidas no Brasil, como Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada e Lei do Contrato de Seguro Anotada, escrito em coautoria com Arnaldo Filipe da Costa Oliveira, Leonor Cunha Torres, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado e José Vasques.

Especialista em Direito dos Contratos, Direito dos Seguros e Direito do Trabalho, o professor da Universidade de Lisboa coordenou no início do milênio, a pedido do então primeiro-ministro de Portugal, Durão Barroso, a elaboração do novo Código do Trabalho do país.

Martinez concedeu entrevista à Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (RDCC), que tem coluna semanal na ConJur. Na conversa com os integrantes da instituição Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, e Paulo Roque Khouri, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, o especialista português ainda discutiu suas obras e a relação do Direito do Consumidor com o campo civil.

Leia a entrevista:

RDCC — A dissertação de mestrado e a tese do doutoramento do senhor foram editadas como os livros O subcontrato (1989) e Cumprimento defeituoso, em especial na Compra e Venda e na Empreitada (1994). Como surgiu o interesse por esses temas?
Pedro Romano Martinez Tanto O subcontrato como o Cumprimento defeituoso resultaram de minhas experiências como docente. Foram problemas que me foram colocados pelos alunos que me estimularam a enfrentar esses temas em pós-graduação. Particularmente no caso do Cumprimento defeituoso, surgiu numa discussão que se gerou em sala de aula e logo me pareceu que seria um tema para tratar, que poderia ter interesse. Normalmente, no incumprimento — ou descumprimento, no Brasil —, alude-se às duas formas tradicionais do não cumprimento (definitivo ou mora). Daí ter surgido, por intermédio de uma discussão que se prolongou em aulas, além de outras dúvidas dos alunos, que muitas vezes transmitem ao professor a importância de certas questões.

RDCC — Passados todos esses anos, houve alguma mudança significativa nesses institutos, até em função até da reforma do direito obrigacional alemão?
Pedro Romano Martinez
Passados tantos anos, sinto-me contente, porque, em grande parte, essas obras não perderam a sua atualidade. Até por isso O subcontrato continua ainda a ser editado e vendido. Quanto ao Cumprimento defeituoso, pese embora a alteração na Alemanha, onde houve uma modificação de alguns aspectos que analisei, em Portugal, até porque não era exatamente um sistema idêntico ao alemão, não houve mudanças significativas. O que escrevi (comecei a escrever em 1990), acabou por manter-se atual. Retirando-se, evidentemente, a questão do consumo, porque aí, sim, houve alterações. No demais, mantém-se atual porque havia já, naquele momento, uma diferença entre o regime alemão e o regime português e, de facto, as alterações introduzidas em Alemanha, na Reforma de 2000, levaram a uma maior aproximação daquilo que já era, antes, o sistema português. Dito de outro modo, nesse aspecto, o sistema português não tinha totalmente acompanhado o alemão e identificou-se depois, em alguma medida, excluindo-se a parte do consumo (que essa aí evidentemente está diferente), que terminou por haver certa aproximação depois da reforma do Direito alemão. Portanto, no respeito ao Direito português, não houve mudanças de relevo, ou seja, o regime que analisei mantém atualidade.

RDCC — O senhor é um conhecido especialista em três áreas: Direito Civil, Direito dos Seguros e Direito do Trabalho. Como aconteceu essa especialização em três áreas tão distintas?
Pedro Romano Martinez
De fato, tanto minha dissertação de mestrado quanto minha tese de doutoramento foram em Direito Civil, especificamente na área de obrigações. Mas quando me doutorei, em 1994, como era o doutor mais novo, na primeira distribuição de serviço de docente, havia uma cadeira sem professor atribuído para regê-la, e era Direito do Trabalho. E assim foi! Dediquei-me a estudar o Direito do Trabalho, que não tinha voltado a estudar desde os tempos de aluno. Por aproximadamente oito anos, salvo engano, regi a disciplina de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito. Mantive sempre alguma ligação com o Direito Civil, porque ministrava também Direitos Reais e Direito dos Contratos, mas demorei algum tempo, depois de doutor, a voltar às Obrigações. É necessário lembrar que lecionei Direito das Obrigações como assistente, mas só ao fim de oito ou dez anos é que regressei à minha disciplina de origem. E, portanto, exerci o magistério no Direito do Trabalho durante quase uma década, o que me levou a estudá-lo com regularidade e, posteriormente, a escrever lições sobre a matéria. No fundo, tentei fazer algo que, às vezes, os laboristas não gostam muito de ouvir quando brinco e afirmo que eu tentei “civilizar” o Direito do Trabalho, como utilizar nessa matéria a lógica do contrato obrigacional. Quando me aproximava do fim de meu período como regente da disciplina, o governo convidou-me para fazer a reforma no Direito do Trabalho.

RDCC — Qual governo?
Pedro Romano Martinez
Do primeiro-ministro Durão Barroso [primeiro-ministro de Portugal de 2002 a 2004]. Fui designado para coordenar, com uma equipe de juristas que indiquei, a elaboração do novo Código do Trabalho, que veio a se converter na Lei 99, de 27 de agosto de 2003. Foi um trabalho de equipe, por meio do qual demos luz ao Código do Trabalho e o fizemo-lo com bases novas, tendo por objetivo aproximar o Direito do Trabalho ao Direito Civil, essa “civilização” a que me referi. Exemplo disso é a regra da boa-fé na contratação laboral, além de outras regras de Direito Civil relativas à forma do contrato, que vieram para o Código do Trabalho e que não constavam da legislação trabalhista. Na legislação portuguesa, isso ficou diferente e creio que posso dizer que tive alguma influência nessa transformação dos institutos, nessa “civilização” introduzida no Direito do Trabalho. Passada essa experiência de quase uma década no Direito do Trabalho, retornei ao Direito das Obrigações.

RDCC — E como foi o ingresso no Direito dos Seguros?
Pedro Romano Martinez
Na sequência de minha carreira acadêmica, tive de elaborar a tese da agregação, que antecede a cátedra. Em Portugal, com a agregação, faz-se necessário outro trabalho, a respeito do qual há uma certa tradição de, além de se elaborar um relatório de uma disciplina, fazer uma monografia. Esse relatório deve ser inédito. Para o relatório lembrei-me de uma disciplina que nunca havia sido lecionada na faculdade, mas que estivesse dentro das minhas áreas de gosto. Foi o Direito dos Seguros. Com a monografia, para as provas e agregação, escrevi a Cessação do Contrato.

Havia também uma razão especial: a matéria de Direito dos Seguros era muito pouco tratada em Portugal e uma das poucas obras escritas nessa área havia sido de autoria de meu avô, também chamado Pedro Martinez — daí muitas vezes haver uma confusão, quando citam como minha uma obra dos anos 1950, de autoria de meu avô [Pedro Nicolas Martinez, atuário e diretor da Companhia de Seguros A Mundial]. À época eu ainda não havia nascido, mas citam por vezes a obra como se minha fosse. E tenho de explicar que “não fui eu quem escrevi. Essa não é da minha autoria” [risos].

E o facto é que o Direito dos Seguros acabou por ser um pouco também fruto dessa procura por uma área que não havia sido explorada em relatórios de concurso e terminou por ser uma matéria que eu tenho ministrado várias vezes na Faculdade de Direito. Tempos depois, fui convidado pelo governo português para elaborar o projeto de Reforma da Lei dos Seguros, que está em vigor atualmente, a Lei do Contrato de Seguros. Eu também presidi a comissão de elaboração dessa lei, o que criou um vínculo especial com essa área do Direito.

Posso fazer um paralelo entre essas duas áreas e meus vínculos com ambas nos dias de hoje. Em Portugal, elaborou-se um novo Código do Trabalho. Restou muito da estrutura e da base do projeto cuja redação coordenei, mas tem-se agora uma nova realidade. Quanto à Lei do Contrato de Seguros, o quadro é um tanto diferente. Eu tenho estado mais próximo da legislação e acompanhando-a mais de perto, até porque muito pouco mudou desde 2009.

RDCC — É interessante a localização da matéria de Seguros em Portugal…
Pedro Romano Martinez
Sim, porque integra o Direito Comercial. A matéria foi regulada anteriormente no Código Comercial. Com a atual lei, a matéria deixou de estar regulada no Código Comercial e consta de legislação especial, a Lei do Contrato de Seguro. Normalmente, o contrato de seguro, em nosso país, é entendido como um contrato comercial.

RDCC — Qual é a visão do senhor sobre a conveniência de se manter o seguro como um contrato em espécie no Código Civil brasileiro ou tratá-lo em uma lei extravagante, com relativa autonomia epistemológica?
Pedro Romano Martinez
A minha resposta pode ser um tanto contraditória. Em Portugal essa matéria localizava-se no Código Comercial e isso foi favorável, porque patrocinou uma autonomia do Direito dos Seguros, o que implicou ter-se agora uma legislação autônoma, que corresponde à Lei de Contrato de Seguros. Sendo assim, não admitir que se faça isso no Brasil poderia ser contraditório. Mas há um aspecto diferenciador: em Portugal, o seguro estava regulado no Código Comercial, no entanto esse código é de 1888, que, por sua vez, correspondia a uma legislação da primeira metade do século XIX e permanecia vigente em pleno século XXI. Essa particularidade permite diferenciar a realidade portuguesa da brasileira, em relação a esse contrato. O Código Civil brasileiro, que já é do século XXI, com seus mais de 2 mil artigos, possui um conjunto de normas sobre o contrato de seguro, na ordem de quase 60 artigos, o que já não se pode dizer que seja dado ao tema um tratamento do século XIX. Por essa razão, parece-me um pouco estranho que, de repente, se amputasse do Código Civil brasileiro aqueles artigos e se dissesse “agora já não se aplica o que aqui está e passamos a ter uma legislação autônoma”. Isso não quer dizer que o que está no Código Civil não careça de alguma atualização e complemento em legislação avulsa. Mas daí a ser amputado por alguma legislação específica sobre o mecanismo do seguro, talvez não seja conveniente.

RDCC — Temos iniciativas do tipo no Congresso Nacional.
Pedro Romano Martinez
O projeto que conheço e que estava em discussão, ao regular a matéria do seguro, implicaria, ainda que implicitamente, na revogação de vários artigos do Código Civil brasileiro. A isso não sou muito favorável. Não é conveniente que um código novo, que tem uma estrutura de interligação, seja parcialmente substituído por um diploma avulso. Parece-me que a ideia da codificação ficaria posta em causa e por isso, admito, que haja uma necessidade de revisão, de alguns aspectos do contrato de seguro, mas talvez não careça de uma revogação das normas do Código Civil.

E, claro, que se tem aqui um aspecto que é particularmente importante: há quem entenda que a solução constante do Código Civil é pouco protetora para o consumidor de seguros, se é que verdadeiramente possa existir essa figura do consumidor de seguros. E que, por isso, segundo os defensores do projeto, seria necessário um novo regime que assumisse esse caráter protetor aos consumidores. Por algumas razões que considero relevantes, o Direito dos Seguros não pode ter a mesma lógica de proteção do consumidor, idêntica à de um contrato de compra e venda, dado que tem aquela triangulação dos sujeitos que é bem diversa de um negócio jurídico no qual só há vendedor e comprador. Adotar mecanismos de tutela do consumidor, usando-se da mesma lógica empregada na compra e venda, é algo que desvirtua muito o instituto do seguro.

Eu apontaria mais para uma lógica de um contrato de seguro, que assenta em uma estrutura comercial e que depois tem de ter regras pontuais de proteção ao consumo. Não sou adepto da ideia do contrato “de consumo” de seguro.

RDCC –— No regime geral do Direito dos Seguros em Portugal, é muito elogiada a parte relativa ao dever de informação imposto.
Pedro Romano Martinez
A consagração do dever de informação não resultou de uma criação do legislador português, resulta das diretivas. O que é inovador é a sistematização do dever de informação.

RDCC — Mas lá há um dever de advertência
Pedro Romano Martinez
Esse é um contributo nosso. O dever de esclarecimento, constante da Lei do Contrato de Seguro (portuguesa) não resulta do Direito europeu.

RDCC — Esse ponto não está nas diretivas e se traduz em um momento necessário para se advertir o contratante. Parte-se da lógica de que a simples informação não é suficiente. Deixa-se a simples informação objetiva e parte-se para o dever de advertir.
Pedro Romano Martinez
Exatamente, só que esse dever não é para todo e qualquer seguro. É para os seguros de especial complexidade. Não é o caso dos chamados seguros de massa do dia a dia, do seguro de automóvel ou de um seguro de saúde básico. Em relação a estes, precisa-se simplesmente do cumprimento do que vem das diretivas e que hoje está transposto no dever de informação.

Esse dever específico de esclarecimento ou de advertência, que está sujeito a algumas dificuldades, é útil para casos nos quais haja uma complexidade jurídica e econômica que o justifique. São situações nas quais não basta dizer “olha, este seguro é para pagar uma indenização”. Estando diante de uma situação complexa, por exemplo, com um período de carência ou com uma exclusão de certos eventos. É, portanto, neste sentido que é preciso um especial dever de esclarecimento sobre certas situações. Reitero: esse dever não é para todo e qualquer seguro. Nota-se, por vezes, uma tendência por parte de alguns consumeristas em ordem a confundir a Lei do Contrato de Seguro como fonte desse dever de esclarecimento, como se fosse uma inovação extraída do seu artigo 22. Muito bem, houve inovação na lei portuguesa, mas não é possível generalizá-la para todo e qualquer contrato submetido ao regime dessa lei. A prevalecer essa ampliação do sentido da norma, criar-se-ia uma dificuldade extrema para a aplicação da norma. Ou então, ter-se-á uma norma vazia, porque se tem de esclarecer o básico.

RDCC — No Brasil também temos em discussão um projeto de Código Comercial.
Pedro Romano Martinez
Que separaria novamente? A matéria contratual, atualmente localizada no Código Civil? Vão amputar o Código Civil?

RDCC — Haveria uma superposição de diversos institutos. O senhor, considerando toda a evolução da matéria, acredita que é conveniente ou que seria, dentro do estado da arte da matéria no mundo, uma boa opção legislativa ter essa dualidade de regimes?
Pedro Romano Martinez
Sempre tive como referência essa unificação que os italianos e os suíços fizeram. É claro que a distinção entre o Direito Civil e o Direito Comercial tem uma base, porque é claro que há certas diretrizes distintas no âmbito do civil e do comercial. Mas a grande dificuldade é estabelecer uma linha de fronteira entre o que sejam contratos civis e contratos comerciais. Só para se dar um exemplo, uma das dificuldades reside no contrato de compra e venda. Em Portugal, o regime está no Código Civil, onde basicamente se encontra regulada a compra e a venda, mas há algumas normas no Código Comercial, com algumas soluções divergentes. Veja-se o exemplo da compra e venda de bens alheios: o regime do Código Civil é diferente do regime do Código Comercial. A pergunta a fazer é: quando é que aplicamos à compra e venda o regime civil ou o regime comercial? Há casos óbvios nos quais prevalece o regime comercial, mas nem sempre a resposta é evidente. A distinção entre o civil e o comercial diria que não é uma fronteira tão clara, haverá uma interligação. E daí que a unificação italiana — partindo do pressuposto de que a Itália foi o grande pilar da unificação —, pareceu sempre vantajosa. Os italianos, nessa estrutura de unificação, incluíram inclusive o Direito do Trabalho no Código Civil. O contrato de trabalho está no Código Civil e é lá regulado. E tem uma vantagem ter sempre os mesmos princípios orientadores da relação contratual para todos os contratos, independentemente de serem civis, comerciais ou laborais. É conveniente ter sempre a mesma estrutura, as mesmas diretrizes. Depois ter-se-ão em conta as respectivas especificidades em função dos casos concretos. Daí que criar uma legislação comercial independente é algo a respeito do que eu sempre tenho alguma dificuldade em assimilar e me questiono se isso não irá criar mais problemas.

Tendo eu participado de duas comissões de reforma da legislação em Portugal, poderia parecer um pouco estranho dizer que não sou favorável ao surgimento de uma nova legislação. Mas entendo ser vantajoso, tanto quanto possível, coibir-se o legislador do excesso legislativo, muito frequente na atualidade. No caso do Brasil, depois de se assentar em uma lógica de unificação, de repente retomar a divisão das matérias, é algo a respeito do que não sei se não vai trazer mais problemas do que resolvê-los.

RDCC —O senhor vê como retrocesso a criação de um novo Código Comercial?
Pedro Romano Martinez
Sim. Podemos até ser contrários à unificação, mas uma vez tendo esta ocorrido, como se deu no Brasil, penso que não é a melhor solução retroceder e cindir as matérias logo em seguida.

RDCC — Outra questão muito interessante no campo metodológico e legislativo está na vantagem de se ter uma legislação autônoma de Direito do Consumidor em relação ao Código Civil. A Alemanha optou por um caminho de unificação das matérias no Código Civil. Apesar de se haver elaborado um Código de Consumo em Portugal, de autoria do catedrático Antônio Pinto Monteiro, a criação desse código não teve sequência. Como o senhor vê a questão dessa dualidade de regimes do Direito do Consumidor e do Direito Civil, à luz das experiências alemã e portuguesa?
Pedro Romano Martinez
Gosto do sistema alemão, porque ele introduziu o regime especial do consumo no próprio Código Civil, indicando certas normas que receberiam solução diversa sempre que estiver em causa a tutela do consumidor. Não parece mal esse sistema e, no fundo, um pouco na lógica do que referi, ou seja, será sempre o melhor que os vários regimes estejam unificados por se sujeitarem aos mesmos princípios. Partamos do princípio de que tudo é reconduzível ao regime contratual e que a base de tudo está no Direito Civil. Assim, eu não sei se a autonomia de um Direito do Consumo, que passa a ter agora soluções jurídicas totalmente diferenciadas, não pode levar a um distanciamento excessivo da base histórica de onde ele provém. A ideia de proteger o consumidor, é evidente que tem pleno sentido, mas criar uma figura nova, que é um novo direito, distinto do Direito Civil não sei se não trará o inconveniente de, depois, termos um regime jurídico que é à parte, no qual as pessoas hajam perdido a capacidade de dialogar com a base comum. Essa afirmação segue a linha do que tenho afirmado em relação ao Direito do Trabalho e, em razão disso, sou normalmente mal compreendido pelos laboralistas: a ideia de que o Direito do Trabalho tem de viver um mundo à parte, alheio ao Direito Civil, não é nada benéfica para o Direito do Trabalho. A lógica de se manter uma base comum de caráter geral parece-me ser preferível para a solução dos casos. A criação de regimes traz geralmente consigo jurisdições diferenciadas e, depois, como mundos distintos, muitas vezes não comunicáveis entre si.

RDCC — No Brasil, é comum dizer que o Direito do Trabalho não integra mais o Direito Privado e que se teria constituído em um ramo híbrido, integrando o Direito Público e o Direito Privado, ou mesmo se colocando como um Direito sui generis. O senhor concorda que o Direito do Trabalho deixou de integrar o Direito Civil?
Pedro Romano Martinez
Tenho defendido que não. Mantenho a ideia de que é Direito Privado. Evidentemente tem especificidades, nomeadamente resultantes da intervenção do Estado, em vários níveis, no âmbito de proteção do trabalhador. Mas isso, na minha perspectiva, não o desvirtua.

RDCC — O senhor considera que a autonomia judiciária do Direito do Trabalho é um fator benéfico para o trabalhador ou seria um fator que aumenta a burocracia na relação Estado-cidadão?
Pedro Romano Martinez
Em Portugal, a situação é diferente do que se dá no Brasil. Temos tribunais do Trabalho, mas estes não possuem autonomia, fazem parte da jurisdição comum. O tribunal do Trabalho não tem um juiz que só conhece de questões trabalhistas, porque o respectivo juiz já tratou ou tratará de outras questões, como de família ou de comércio. Por isso, permita-me aqui uma visão, diria, mais alargada do Direito do que a existente em um sistema como o do Brasil. Claro que há sempre vantagem em se ter um juiz especializado, que sempre está vinculado a uma determinada área do Direito. A questão da especialização é positiva ao se imaginar que o juiz terá conhecimentos mais aprofundados sobre um tema a respeito do qual ele o examina de modo exclusivo. A dúvida é se a especialização em uma área como o Direito do Trabalho — que tem evidentemente vantagens —, posteriormente não trará a desvantagem de impedir a conexão com os princípios estruturantes do Direito, o que seria, por vezes, contraproducente.

Um exemplo: contribui para a inserção daquela norma no Código do Trabalho sobre a boa-fé na formação do contrato, que permite atender à assimetria informativa do trabalhador na celebração do contrato. Deste regime decorre que a boa-fé obriga a que as partes tenham deveres mútuos de informação, atendendo às suas necessidades especiais. Portanto, se calhar, parte da discussão em torno da proteção do trabalhador na formação do contrato poderá ser resolvida dentro de um padrão comum. Isso pode, às vezes, ter alguma vantagem na resolução dos problemas.

RDCC — O senhor não considera que esse afastamento do Direito Civil e do Direito do Trabalho não tem sua raiz na falta de doutrinadores que se tenham dedicado simultaneamente às duas áreas, ao exemplo de Orlando Gomes, no Brasil da segunda metade do século XX?
Pedro Romano Martinez
Não vou falar do Brasil, porque não conheço suficientemente a realidade. Mas, na realidade portuguesa, alguns dos autores do Direito do Trabalho mais antigos seguiam uma linha de explicação do Direito do Trabalho, diria, um pouco sentimental. Para eles, a relação jurídica laboral era analisada de um ponto de vista unilateral. Algumas das antigas lições de Direito do Trabalho só referenciavam o trabalhador, os direitos do trabalhador. É evidentemente que esse quadro não pode ser reproduzido em relação aos autores mais recentes, porque, no caso destes, a situação é um pouco diferente. Quanto aos antigos, a quase generalidade seguia essa visão mais apaixonada. Estou a excluir, evidentemente, o professor Menezes de Cordeiro, que também escreveu em Direito do Trabalho. Ele é igualmente um dos que cultivaram juntamente o civil e o trabalho.

As obras mais antigas eram algo sentimentais e, com frequência, com um traço político. Notava-se uma certa influência política no Direito do Trabalho, o qual, tanto em Coimbra como em Lisboa, por um certo tempo, era basicamente um Direito de uma determinada corrente política. Num certo período, só pessoas ligadas a partidos de esquerda é que estudavam o Direito do Trabalho. Já na segunda metade dos anos 1980 isso mudou. No período anterior a 1974, o Direito do Trabalho era estudado no âmbito do corporativismo e, portanto, do Estado Novo, onde também predominava a ideia tradicional de proteção do trabalhador. No entanto, sob a lógica corporativa.

Nesta evolução importa realçar que, inicialmente, para dirimir questões no âmbito do Direito do Trabalho foram criados tribunais e juízes especiais. Em Portugal, essa magistratura especial foi extinta em 1976 e terminou por ser integrada na magistratura comum. Creio que isso trouxe vantagens e foi talvez a partir daí que se fez a mudança e o Direito do Trabalho passou a ser um pouco menos político e mais jurídico.

Autores

  • Brave

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

  • Brave

    é mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!