Ideias do Milênio

"Há dá para querer se tornar os EUA e a Europa, mas não querer o Estado de Direito"

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28 de fevereiro de 2017, 14h52

Reprodução/Youtube
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Entrevista concedida pelo secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, ao jornalista Marcelo Lins, para o Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Os desdobramentos da crise dos refugiados no mundo. A situação do sistema penitenciário no Brasil. A luta pela abolição da pena de morte. O preconceito em todas as suas manifestações. Temas bem diferentes, mas que têm em comum pelo menos duas coisas: a violação evidente dos mais básicos direitos humanos e a atuação da Anistia Internacional. Usam denúncias, campanhas de esclarecimento e pressão sobre autoridades. Em um mundo marcado por radicalismos, políticas excludentes e desconfianças em relação ao outro, é cada dia mais relevante a atuação dessa organização global que conta com o apoio de mais de 7 milhões de doadores no mundo e que está presente em 150 países. Em recente visita ao Brasil, o secretário-geral da Anistia, o indiano Salil Shetty falou ao Milênio.

Marcelo Lins — Eu gostaria de começar com uma pergunta histórica. Sabemos que a Anistia Internacional foi fundada no início dos anos 1950 por um advogado britânico que queria libertar dois jovens portugueses que tinham brindado à liberdade em Portugal na ditadura salazarista. Mundo afora — sei que você viaja muito — quais são algumas das causas que quem defende corre o risco de ser preso?
Salil Shetty —
Infelizmente, 55 anos após a criação da Anistia Internacional, ainda há muitas causas cuja defesa pode levá-lo à prisão ou ao exílio. Temos o caso de Edward Snowden, que expôs muitas violações do governo americano e agora tem que ficar longe dos EUA. Ele corre grande risco se voltar lá.

[…]

Mas há muitos lugares no mundo nos quais, se você questionar a autoridade ou as más ações do governo ou de empresas, pode até ser morto. Mas você mencionou a história da Anistia Internacional, e eu duvido que Peter Benenson, o advogado que criou a Anistia Internacional em 1961, teria sonhado que, 55 anos depois, teríamos mais de 7 milhões de pessoas no mundo todo atuando em prol da Anistia Internacional, que é provavelmente o maior movimento popular global pelos direitos humanos.

Marcelo Lins — Lutar por direitos humanos numa ditadura parece óbvio e fácil, mas e quanto a lutar por direitos humanos numa democracia, com o governo e o parlamento legalmente eleitos? Como é essa luta? Ela pode ser mais difícil numa democracia?
Salil Shetty —
Sempre partimos do pressuposto de que as eleições são uma forma real e significativa de responsabilizar governos. Infelizmente, esse sonho foi destruído. Muitas vezes, governos eleitos pelo voto acham que isso lhes dá legitimidade para não prestar contas. Então, sim, temos um problema sério hoje. Acontece no Brasil, na Índia, meu país, na Turquia… E nas Filipinas, que elegeram por maioria esmagadora o presidente Duterte, e ele já matou mais de 2 mil pessoas em poucos meses na chamada “guerra contra as drogas”. Acho que um dos motivos para tanta raiva e frustração no mundo todo são governos e lideranças irresponsáveis. Não se trata apenas de governos, mas empresas também.

Marcelo Lins — Em relação à ascensão da ideologia de extrema direita, de ideologias em geral e da defesa dos direitos humanos. A defesa dos direitos humanos costuma estar ligada a ideais esquerdistas. No Brasil, ela também está ligada… Não há um consenso, mas muita gente acha que a defesa dos direitos humanos é uma espécie de proteção dos direitos de criminosos. Isso é algo que acontece em todo o mundo ou só no Brasil? Como você vê isso? A Anistia Internacional tem alguma filiação política com a direita ou a esquerda?
Salil Shetty —
Não temos filiação religiosa, política nem econômica. Nosso único objetivo é combater as violações aos direitos humanos. Em relação à forma como os direitos humanos são vistos em países como o Brasil ou a Índia, onde existe uma classe média muito ambiciosa, há contradições fundamentais, porque todos nós queremos nossos direitos protegidos. Se você me diz que eu não vou poder me posicionar ou que não terei saúde ou educação, vou lutar contra isso, mas, quando não é comigo, eu passo a dizer que você está defendendo criminosos. Todos os países em desenvolvimento querem se tornar como os EUA e a Europa, mas não querem o Estado de Direito. Não há atalhos para os direitos humanos. Infelizmente, isso não é possível.

Marcelo Lins — Há não muito tempo, a Anistia Internacional era muito criticada por ser sediada em Londres e portanto, longe dos problemas, longe de onde as coisas realmente acontecem, mas parece que isso mudou nos últimos quatro ou cinco anos. Você é secretário-geral desde 2010. Essa percepção estava certa, em primeiro lugar? E este escritório brasileiro já existe há cinco anos aqui no Rio. Esse é um caminho que você vai seguir, estar mais nos lugares onde as coisas acontecem do que na sede em Londres?
Salil Shetty —
Com certeza. A Anistia Brasil é um ótimo exemplo. Estamos aqui há cinco anos e tenho muito orgulho do que conquistamos nesse período. Colocamos a questão da vida de jovens negros na agenda nacional. E a Anistia Brasil defende o que todos os brasileiros defendem: queremos um país sem violações de direitos humanos, um país que não discrimina negros, índios e mulheres, queremos um país no qual o direito à manifestação pacífica é respeitado, um país que lute pelos defensores dos direitos humanos.

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Milhares de pessoas já se uniram à Anistia Brasil. Talvez muitos brasileiros não saibam que podem fazer parte do movimento. Na verdade, os donos da Anistia são nossos membros e ativistas. Não vou saber pronunciar direito, mas quem quiser se tornar voluntário ou doador, acesse anistia.org.br. Como se diz “br”?

Marcelo Lins — Vamos falar sobre os assuntos que estão no noticiário: a guerra na Síria e a crise dos refugiados. Às vezes, ao ouvir alguns políticos e generais, temos a impressão de que eles acham que é possível resolver um problema sem enfrentar o outro. Como seria possível enfrentar essas duas batalhas ao mesmo tempo?
Salil Shetty —
Esse é outro exemplo… Essa crise de refugiados que o mundo está enfrentando é a maior que testemunhamos desde a Segunda Guerra. Sessenta milhões de pessoas foram expulsas de casa e quase 22 milhões são refugiados, o que significa que deixaram seu país fugindo da guerra e da perseguição. E estive, no último ano, nos acampamentos nas fronteiras do Iraque, da Síria e de outros países, e conversei com mulheres, homens e crianças. Nenhum deles me disse que queria ir para a Europa.

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Adivinhe para onde querem ir? Querem voltar para casa, na Síria, mas não podem. Eles estão fugindo dessa situação, e a maioria dessas pessoas, no caso da Síria, 95% dos sírios que tiveram que deixar o país estão em quatro ou cinco países vizinhos. Globalmente, 50% dos refugiados do mundo estão concentrados em dez países, muitos são pobres e não reúnem nem 2% da riqueza do mundo. Os países mais ricos do mundo, na Europa e os EUA, são signatários do Estatuto dos Refugiados, mas violam completamente o estatuto. É um problema grave, mas é menos de 1% da população mundial. Vimos nos exemplos de Canadá e Alemanha que, com liderança, o problema pode ser resolvido. Precisamos de um sistema global de divisão de responsabilidade.

Marcelo Lins — Então, se a crise de refugiados é o maior problema de direitos humanos de 2016, e acho que há um consenso de que ele é, qual foi a maior vitória do ano para o avanço da causa dos direitos humanos no mundo?
Salil Shetty —
Nós obtivemos muitas vitórias. Acho que a maior vitória é que hoje não há onde se esconder. Até mesmo no caso da Síria. O pai de Assad, o atual presidente, cometia muitas atrocidades contra o povo, mas ninguém sabia. Hoje as pessoas sabem e agem. Há muitas pessoas que o enfrentam. O caso da Coreia do Sul, por exemplo. Todo domingo, centenas de milhares de pessoas vão para as ruas protestar contra um governo irresponsável, e é disso que eu tiro minha inspiração, das pessoas que não aceitam mais essas coisas.

Marcelo Lins — O Milênio está de volta, hoje entrevistando Salil Shetty, secretário-geral da Anistia Internacional em visita ao Brasil. A presença da Anistia Internacional aqui já tem cinco ano, mas claro que sempre recebemos seu informe anual sobre o Brasil e a América do Sul. Qual é a visão da Anistia Internacional sobre o Brasil hoje, sobre nossos maiores problemas e desafios e algumas das iniciativas que lhe dão esperança em relação a possíveis conquistas para o país?
Salil Shetty —
Ao contrário do que ouço quando estou aqui e do que leio na imprensa sobre a realidade do Brasil, estou muito esperançoso. Sei que vocês enfrentam um período difícil, mas tenho muita fé no povo brasileiro. Não tenho a mesma fé nos líderes brasileiros. Os líderes nos decepcionaram, sem dúvida. Tanto a liderança do governo anterior como a do atual, que está propondo coisas que são desconcertantes, seja um teto para gastos sociais, um novo código de mineração, revogação do estatuto da família, a nova lei antiterrorismo, que pode criminalizar os protestos pacíficos e atacar movimentos sociais e seus líderes. Estamos trilhando um caminho difícil e incerto, mas acho que a Anistia Brasil já faz parte da estrutura do país e é uma esperança para os jovens… Uma coisa é ficar com raiva, indignado ou decepcionado, mas é preciso agir.

[…]

No caso da segurança pública, há um problema real aqui, porque o povo deste país é afetado pelo crime e tem razão de reivindicar segurança pública. É responsabilidade do Estado proteger o povo. Mas segurança pública não é um problema das favelas nem da população negra. O país está vivendo um ciclo de violência e drogas, e a solução não pode ser tomar atalhos e matar pessoas. Claro que as pessoas têm que ser punidas se cometerem crimes, mas não acredito na solução de simplesmente comprar mais armas e reprimir essas populações. Temos de buscar soluções trabalhando com elas. Precisamos achar uma saída. A solução não é ter conflito, raiva e divisão, é nos unirmos para buscar soluções.

Marcelo Lins — Você mencionou que os líderes brasileiros decepcionaram o país. E acho que podemos dizer que, para muita gente, até o parlamento está nos decepcionando. Nossos representantes no parlamento decepcionaram o país. Aí, nesse vácuo que foi criado, nós vimos a judicialização do país, como advogados e juízes ganhando muito destaque e sendo proativos até politicamente. O que você acha disso para uma democracia tão grande quanto é o Brasil?
Salil Shetty —
A democracia brasileira é relativamente jovem. Podemos dizer que o país ainda vive uma transição democrática e os três poderes — o Legislativo, o Executivo e o Judiciário — estão… A cada momento, o equilíbrio de poder entre os três se alterna. Acho muito importante que todos tenham um peso igual. O sistema deve funcionar assim. Atualmente, estamos vendo um ativismo do Judiciário mais vigoroso porque há um vácuo do outro lado.

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No fim das contas, a democracia não se resume a esses três poderes. O povo deve se beneficiar da enorme riqueza que este país tem, da inovação e criatividade que este país tem. Até agora, o sistema frustrou o povo. Não foram só os líderes. Dizer que eu vou lá e deposito meu voto a cada quatro anos é inadequado. Os jovens não aceitam mais isto: “Votei em você, então lhe dei carta branca.” Essa opção não é aceitável, e é por isso que buscamos responsabilização em tempo real e direito a participação 24h por dia. Esse é o objetivo da Anistia Internacional: responsabilizar os líderes.

Marcelo Lins — E o que podemos esperar, acho difícil prever algo no mundo de hoje, mas quando a Anistia Internacional olha para 2017, quais continuarão sendo os maiores desafios para vocês e também onde buscam esperança para continuar avançando?
Salil Shetty —
Um deles nós já discutimos, que é o denso movimento de pessoas e o impacto disso, porque, além dos refugiados…

Marcelo Lins — Não há sinais de que isso acabará tão cedo.
Salil Shetty —
De jeito nenhum, porque os fatores que levam a conflitos, má governança e violações de direitos humanos não vão mudar em 12 meses. Já lançamos uma campanha chamada Eu Acolho refugiados, uma campanha muito importante.

[…]

Mas o segundo desafio, que não discutimos tanto, está no cerne de nossa segunda campanha global de proteção dos defensores dos direitos humanos. Uma das coisas que aconteceram em todo o mundo nesse processo de má governança e de aumento de governos conservadores é que os defensores dos direitos humanos estão sendo atacados como nunca foram. Quando pensamos nesses defensores, pensamos em ONGs e em ativistas, mas não são só eles, são jornalistas, acadêmicos, estudantes…

Marcelo Lins — E acontece no mundo todo?
Salil Shetty —
Infelizmente é um fenômeno presente em muitos lugares. Estive recentemente na América Central. Falamos sobre homicídios. Algumas das maiores taxas de homicídio do mundo estão na América Central, e a questão da proteção de defensores dos direitos humanos tem a ver com a luta contra a impunidade. Num país como Honduras a impunidade chega a 90%. Ninguém é condenado. E, muitas vezes, por trás disso, há a questão da polícia e das forças de segurança. Aqui no Brasil, a impunidade das forças de segurança também é enorme, mas os policiais estão matando e sendo mortos. Há os dois lados do problema. Então nosso outro grande foco é o uso de leis repressoras contra a sociedade civil e defensores dos direitos humanos. Essa vai ser nossa principal campanha de 2017. O Brasil também não tem um histórico muito bom de proteção de defensores dos direitos humanos, e não quero que esse pareça um termo técnico. São pessoas que trabalham em prol dos direitos humanos. Elas estão sendo atacadas. Quando você defende os direitos humanos, responsabiliza alguém que está no poder, e os poderosos não gostam disso.

Marcelo Lins — Para terminar nossa conversa, vou insistir: onde busca esperança?
Salil Shetty —
Você perguntou sobre esperança, e fico feliz por estarmos finalizando assim, porque tenho o enorme privilégio, como chefe da Anistia Internacional, de passar tempo nas comunidades indígenas, com grupos de mulheres, com refugiados, com as vítimas de violações de direitos humanos, e quando converso com essas pessoas, elas enfrentam dificuldades inacreditáveis. Há mulheres que lutam contra o estupro e a violência sexual apesar do enorme risco pessoal, e lhe garanto que isso é o espírito humano e que nunca vai morrer. Nenhum governo ou empresa pode acabar com isso. É assim no Brasil e em qualquer lugar do mundo. E tenho confiança absoluta de que a balança da Justiça sempre tende para a humanidade e para as liberdades no final. Tenho certeza de que venceremos essa batalha.

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