Opinião

Falta uniformidade de entendimento e jurisprudência nos acordos de leniência

Autores

  • Sebastião José Lessa

    é vice-presidente da ADPF – Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal e autor dos livros: Do Processo Administrativo Disciplinar e da Sindicância Fórum/BH/MG 5. ed. 2009 1ª reimpressão – 2011; O Direito Administrativo Disciplinar Interpretado pelos Tribunais Fórum BH/MG 2008; A Improbidade Administrativa Enriquecimento Ilícito Sequestro e Perdimento de Bens Fórum BH/MG 2011; Direito Disciplinar Aplicado Fórum BH/MG 2016.

  • Raphael Pereira Lessa

    é advogado militante formado pela Universidade Católica de Brasília em 2004 com especialização em Direito Tributário. É pós-graduado lato sensu em Direito Público pelo Instituto Processus de Cultura Jurídica com conclusão em 2007. Tem artigo publicado na Editora Plenum nº 53 Caxias do Sul/RS Janeiro de 2017.

25 de fevereiro de 2017, 7h00

 I. Acordo de leniência – Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) – Repercussão nas demais 

De início, é frutuoso aduzir, em razão da múltipla questão arguida na doutrina de Marcelo Ferreira de Camargo, focando a Lei Antitruste (12.529/2011):

“Assim, de todo o exposto, podemos concluir que o Ministério Público deve participar do acordo de leniência, para que o seu cumprimento resulte em renúncia da ação penal.   Por outro lado, podemos concluir também que o princípio da obrigatoriedade da ação penal – assim como na Lei 9.099/95, em espaço infraconstitucional – deve ser mitigado a exemplo dos eficazes institutos do plea bargain norte-americano e do pattegiamento italiano.” (grifamos) (O Acordo de Leniência no sistema jurídico brasileiro, Âmbito Jurídico.com.br, http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3963, acesso em 13.02.2017)

Por sua vez, pertinente ao enfoque, a Lei nº 12.846/2013, denominada “Lei Anticorrupção”, assim dispõe:

“Art. 16.  A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:

(…) § 2o  A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6o e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.

§ 3o  O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.

§ 4o  O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo.

§ 5o  Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas.”  (grifamos)

Decerto, é necessário gizar que o acordo de leniência, previsto na Lei Anticorrupção, se admitido (§ 7º, art. 16), é em verdade uma decisão administrativa (arts. 7º, VII, 8º, 16, caput, § 10, e 17), e que, sendo proveitosa a avença, “isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II, do art. 6º, e no inciso IV, do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa.” (§ 2º, art. 16); mas, repita-se, “não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado”(§ 3º, art. 16).

Portanto, nos termos do art. 30 e incs. da Lei Anticorrupção, parece satisfatório concluir, como contingenciada, a repercussão do acordo de leniência, de modo a não produzir efeitos nas demais instâncias.

I.a. Circunstâncias Atenuantes

A par dessas considerações, não é demais rememorar, a título de reflexão, dispositivos da nossa Carta Penal que valorizam o direito premial. Vejamos:

“Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) 

III – ter o agente:  (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dan

d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime;

Art. 66 – A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”  (grifamos)    

Por tudo isso, no âmbito da referida Lei Anticorrupção (12.846/2013), reputa-se razoável a possibilidade – diante do proveitoso acordo de leniência – de se postular o direito premial nas demais instâncias.

 II. Acordo de leniência e o crime de cartel – Lei Antitruste (12.529/2011) – Efeitos

Como é cediço, a expressão “cartel” significa “s.m. (…) Acordo comercial entre empresas, que se organizam numa espécie de sindicato para impor preços no mercado, suprimindo ou criando óbices à livre concorrência.”  (grifamos) (Koogan Houaiss, Enciclopédia e Dicionário Ilustrado, Edições Delta, RJ, 2000, pág. 336)

E segue a expressiva preleção:

“O Brasil tem dado passos largos para a estruturação de um marco legal e administrativo adequado para a repressão ao cartel. A nova lei do sistema brasileiro de defesa da concorrência (Lei 12.529/2011) aprimorou a inibição de tais práticas, e ofereceu diversos instrumentos para que o poder público tenha sucesso na empreitada. No entanto, alterações recentes no regimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de março deste ano, trouxeram alguma perplexidade para operadores de Direito e merecem reflexão.

As autoridades competentes para combater o cartel no Brasil têm à sua disposição uma série de instrumentos para a descoberta do ilícito e seus mentores. Desses, destacam-se dois: a leniência e o compromisso de cessação de prática, ambos previstos na Lei 12.529/2011. São mecanismos que oferecem aos participantes de carteis a oportunidade de colaboração com os órgãos públicos para desmantelar a organização, em troca de benefícios ou da extinção da punição. Além de facilitar a investigação e a identificação de provas, tais institutos enfraquecem os laços de confiança que sustentam o cartel, uma vez que estimulam a delação.

Pela leniência, o autor do cartel que coopera efetivamente com as investigações tem por prêmio a extinção/redução da pena administrativa e evita processo ou condenação criminal. Para isso, é necessário que o colaborador seja o primeiro a se apresentar às autoridades (no caso de pessoas jurídicas) e confesse sua participação nos atos ilícitos.

Já no compromisso de cessação de prática de cartel, o representado compromete-se a cessar a atividade lesiva e a pagar contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, em troca do arquivamento do processo administrativo no cade, caso cumpridas as condições fixadas. Não há exigência prevista em lei de confissão de ilícito, nem de colaboração com investigações, mas também não há menção a qualquer benefício penal. Ou seja, a celebração do compromisso não impede o processo pelo crime de cartel contra aquele que o assinou.”   (grifamos) (Pierpaolo Cruz Bottini in Acordo de leniência para apurar cartel merece reflexão.  conjur.com.br., 10.09.2013, acessado em 20.12.2016).

Ademais, no trato do benefício penal, existe divergência:  “Vale referir a existência de controvérsia na doutrina acerca da validade dessa isenção penal fixada na lei antitruste para os acordos de leniência, tendo em vista a ausência de intervenção de autoridade judiciária e também do titular da ação penal, o Ministério Público.  O assunto ainda não recebeu orientação da jurisprudência, tal debate não surgirá aqui, mas fica o registro.  (grifamos)  (Ubirajara Costódio Filho, Comentários à Lei 12.846/2013 – Lei Anticorrupção, Ed. Revista dos Tribunais, SP, 2014, págs. 236/7).

Releva anotar do acordo de leniência elencado na Lei Antitruste (Lei nº 12.529/2011):

“Art. 87.  Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940  – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.

Parágrafo único.  Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.”  (grifamos)

 III. Princípios da subsidiariedade, da fragmentaridade, da necessidade e da intervenção mínima       

Dando ênfase a tais princípios, o aresto do c. Supremo Tribunal Federal:

“HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. MONTANTE DOS IMPOSTOS NÃO PAGOS. DISPENSA LEGAL DE COBRANÇA EM AUTOS DE EXECUÇÃO FISCAL. LEI N° 10.522/02, ART. 20. IRRELEVÂNCIA ADMINISTRATIVA DA CONDUTA. INOBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS QUE REGEM O DIREITO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ORDEM CONCEDIDA. 1. De acordo com o artigo 20 da Lei n° 10.522/02, na redação dada pela Lei n° 11.033/04, os autos das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva. 3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. 4. O afastamento, pelo órgão fracionário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da incidência de norma prevista em lei federal aplicável à hipótese concreta, com base no art. 37 da Constituição da República, viola a cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante n° 10 do Supremo Tribunal Federal. 5. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal.”  (grifamos)    (STF, HC 92438 PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 19.12.08)  

No mesmo trilhar:  STF, HC 83.674, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 16.04.04; STJ, HC 77228 RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 07.02.08;  STJ, RHC 12192 RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 10.03.03.

 IV. Acordo de Leniência – Efeitos (Lei Anticorrupção e Lei Antitruste)

Deveras, a quastão comporta a edificante ponderação, quando se cogita de eventuais efeitos do acordo de leniência nas demais instâncias.

Tanto que, conforme já alertado, existe controvérsia doutrinária acerca da validade desta isenção penal, atribuída, inclusive, pela ausência do Parquet e da autoridade judiciária (Ubirajara Costódio Filho, Obra citada, págs. 236/7).

A propósito, priorizando a intervenção do Ministério Público, faz-se menção a matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, edição de 20.03.15, intitulada “A impunidade não está à venda”, de onde se extrai:

“O Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública e principal legitimado pela Constituição Federal a defender com independência o patrimônio público.  Por isso, os acordos de leniência jamais poderão se prestar a frustrar ardilosamente investigações e ações penais e civis públicas do MP.  Os acordos precisam de legitimidade.

 De forma acertada e sintonizada com o interesse público, o Senador Ricardo Ferraço (PMDB – ES) protocolou no dia 10, deste mês o Projeto de Lei nº 105/15, que propõe vital modificação na lei que pretende coibir a corrupção empresarial, exigindo a homologação do acordo de leniência pelo Ministério Público, medida que o governo não incluiu no decreto de regulamentação da lei nem no pacote anticorrupção.

 Acordos de leniência são bons, desde que a concretude da Lei nº 12.846/13 não se desvie de sua original razão de ser – a efetiva punição da corrupção.” (grifamos) (Roberto Livianu, Doutor em Direito pela USP, é Promotor de Justiça em São Paulo e Presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.  É autor do livro  “Corrupção – Incluindo a Nova Lei Anticorrupção”, Editora Quartier Latin).

IV.a. Princípio da Intervenção Mínima
A despeito do princípio da intervenção mínima, versado, inclusive, no julgado do Pretório Excelso (STF, HC 92438, DJe. 19.12.2008), segue a doutrina no trato da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013):

“E o acordo de leniência também não repercutirá sobre a esfera criminal, não isentando o particular das eventuais sanções penais aplicáveis à sua conduta ilícita, a exemplo daquelas fixadas nos arts. 312 a 337-A do CP e arts. 89 a 99 da Lei 8.666/1993.” (grifamos) (Ubirajara Costódio Filho, Obra citada, págs. 236)

Em tal contexto, mesmo considerando a apontada dissidência no trato da Lei Antitruste (12.529/2011) e o fato do silêncio da Lei Anticorrupção (12.846/2013), o acordo de leniência que tenha atendido os requisitos legais (art. 16, caput, incs. I e II, §§ 1º, incs. I a III, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 10 e art. 17), ao nosso ver, poderia ser levado em conta no momento da mensuração da censura e justificar, pelo menos, a redução das sanções nas correspondentes instâncias penal e de improbidade administrativa.

Ademais, deve ser considerado, de igual modo, o Princípio da Juridicidade. Em torno de tema, elucidativa é a lição de Carmen Lúcia Antunes Rocha, leciona: “O princípio da legalidade é para a Administração Pública, a consonância material e formal não apenas à lei, tomada no seu sentido formal, mas ao complexo de normas jurídicas.”  (C.f.: Lei nº 9.784/1999, art. 2º, caput, § único, inc. I; Sebastião José Lessa, Direito Disciplinar Aplicado, Ed. Fórum, BH, 2016, págs. 123/4).

Contudo, é de se reiterar que os efeitos do acordo de leniência, nas correspondentes instâncias penal e de improbidade administrativa, ainda comporta a edificante modulação.

V. Conclusão 
A bem dizer, a Lei 12.846/13, veio diminuir considerável vazio em nosso direito positivo, sobretudo no resguardo da Administração Pública, quando prioriza o ressarcimento do dano, os meios proveitosos para a investigação e coleta da prova, bem como responsabiliza com igual rigor a pessoa jurídica hospedeira do elemento corruptor (empresário e pessoa natural), na medida de sua culpabilidade (arts. 2º, 3º, §§, 4º e §§).

Deveras, “O privilégio de firmar acordo é concedido a quem causa a lesão e adota algum dos meios eleitos pela norma para minorar as consequências, contribuindo com as investigações, indicando os demais envolvidos ou prestando informações e documentos para tornar célere a apuração.  O incentivo é plenamente justificável, em bom tempo trazido para a seara administrativa.”  (Jorge Ulisses Jacoby Fernandes e Karina Amorim Sampaio Costa, obra citada, pág. 45).

Por todo o exposto, prestando-se a devida reverência aos postulados penais, inclusive o da ultima ratio, e não olvidando as vozes dissidentes e o silêncio do legislador da Lei Anticorrupção (12.846/2013), entendemos razoável postular a repercussão do acordo de leniência, pelo menos, para reduzir as sanções nas correspondentes instâncias penal e de improbidade administrativa. 

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    é vice-presidente da ADPF – Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal e autor dos livros: Do Processo Administrativo Disciplinar e da Sindicância, Fórum/BH/MG, 5. ed., 2009, 1ª reimpressão – 2011; O Direito Administrativo Disciplinar Interpretado pelos Tribunais, Fórum, BH/MG, 2008; A Improbidade Administrativa, Enriquecimento Ilícito, Sequestro e Perdimento de Bens, Fórum, BH/MG, 2011; Direito Disciplinar Aplicado, Fórum, BH/MG, 2016.

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    é advogado militante formado pela Universidade Católica de Brasília em 2004, com especialização em Direito Tributário. É pós-graduado, lato sensu, em Direito Público pelo Instituto Processus de Cultura Jurídica, com conclusão em 2007. Tem artigo publicado na Editora Plenum, nº 53, Caxias do Sul/RS, Janeiro de 2017.

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