Diário de Classe

Por que devemos ler Nomos e Narração, de Robert Cover

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25 de fevereiro de 2017, 8h10

Spacca
“Vivemos em um nomos — um universo normativo. Nós criamos e mantemos constantemente um mundo de certo e errado, de legal e ilegal, de válido e inválido […] Nenhum conjunto de instituições jurídicas ou normas existe em separado das narrações que o situam e lhe proporcionam significado.”[1] O autor desse texto, bastante óbvio para aqueles que se dedicam aos estudos em Direito e Literatura, é um jurista estadunidense mundialmente reconhecido, porém ainda pouco estudado no Brasil: Robert Cover (1943-1986).

Nomos and Narrative é um de seus ensaios mais conhecidos — originalmente publicado em 1983, na Harvard Law Review (n. 97, v. 4) — e que apenas agora foi, finalmente, traduzido para a língua portuguesa (leia aqui). Mesmo passadas mais de três décadas desde o seu surgimento, o texto permanece atual, uma vez que o argumento desenvolvido é absolutamente original. A leitura é densa, porém fascinante (sobretudo no contexto da pós-graduação) e envolve algumas categorias que não fazem parte do cotidiano forense, o que dificulta uma compreensão imediata das múltiplas análises oferecidas, cuja complexidade demanda reflexão.

A questão central abordada nesse longo e importante ensaio de Cover, que recorre frequentemente à tradição hebraica, é o processo de construção dos significados que sustentam o mundo normativo que habitamos.

Na primeira parte do estudo (à qual vou me ater em razão dos limites desta coluna), Cover busca demonstrar a necessária vinculação que as normas e instituições jurídicas mantêm com as narrações. O Direito somente pode ser compreendido no contexto das narrativas, que lhe conferem sentido. Para ele, a criação dos sentidos jurídicos ocorre sempre através de um ambiente cultural, coletivamente. Todavia, Cover sustenta que, após esse processo criativo, a base social sobre a qual se dá a jurisgênese é usada para destruir o significado jurídico em nome do controle social.

A partir de comentário de Joseph Caro, um grande codificador do século XVI, Cover apresenta dois padrões ideais de normatividade: o “modelo paideico”, porque seria o criador do mundo, que pressupõe um corpo comum de preceitos e narrações, um modo compartilhado e pessoal de ser educado no interior desse corpus e um sentido de direção ou crescimento que se forma à medida que o indivíduo e sua comunidade elaboram as implicações de seu direito; e o “modelo imperial”, voltado à conservação do mundo, mediante o qual as normas são universais e aplicadas pelas instituições, sem haver a necessidade de serem ensinadas, ao menos enquanto se revelarem eficazes, não exigindo, portanto, grandes esforços pessoais.

Segundo Cover, enquanto os fatores que impulsionam a construção de um nomos estão inseridos no âmbito do modelo paideico, de uma comunidade forte com obrigações comuns, em que os compromissos interpessoais são caracterizados pelo entendimento recíproco, pelo reconhecimento de que os indivíduos possuem necessidades particulares e obrigações importantes que demandarão respostas específicas de cada pessoa; a manutenção desse universo normativo depende das capacidades do modelo imperial, em que as normas são universais e o seu cumprimento se dá para evitar a coerção e a violência.

Dito de outro modo, a tradição jurídica faz parte de um mundo normativo complexo. Ela não se resume a um corpus iuris. Há também uma linguagem e um mitologia próprias, ou seja, um conjunto de narrativas que situam o corpus iuris, estabelecendo padrões para o comportamento.

No mundo moderno, fundado na noção de Estado-nação, a organização social dos preceitos jurídicos aproxima-se do modelo imperial, enquanto a organização social das narrações que conformam a significação desses preceitos aproxima-se do modelo paideico.

Nesse contexto, configurando uma ampla base para sua interpretação, a Constituição é o centro sobre o qual muitas comunidades ensinam, aprendem e contam histórias. Ela é o texto de referência para as narrações constitutivas da normatividade dos diferentes grupos que convivem e compartilham um projeto de sociedade.

Entretanto, Cover lamenta que a maior parte da literatura sobre o significado constitucional remeta à atividade dos tribunais, restando uma pequena margem para outras interpretações, especialmente as não oficiais. Isso porque, ao limitar a interpretação, paradoxalmente, os juízes destroem o Direito que “poderia ser”. Como se isso não bastasse, toda interpretação oficial produz uma violência. Eis aqui um dos pontos — entre muitos outros — que seguramente justifica a leitura do texto de Cover.

Em suma, esse ensaio — ora traduzido e publicado no Brasil — é relevante porque, como explica Alberto Vespaziani (leia aqui), introduz a noção de narratividade como uma ponte que permite unir a descrição à prescrição. Se o formalismo jurídico reforça a clássica dicotomia entre os planos do ser (a realidade fenomênica desordenada) e do dever ser (as normas jurídicas que formam o ordenamento), a abordagem proposta pelos estudos em Direito e Literatura — e isso fica muito claro neste escrito de Cover — agrega uma dimensão narrativa, possibilitando que se conte “aquilo que foi, mas não é mais”; “aquilo que aqui não é, mas lá acontece”; e “aquilo que poderia ser”[2].


[1] COVER, Robert. Nomos e Narração. Trad. Luis Rosenfield. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 187-268, 2016, p. 187-188. DOI: http://dx.doi.org/10.21119/anamps.22.187-268
[2] VESPAZIANI, Alberto. O poder da linguagem e as narrativas processuais. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 69-84, 2015, p. 79. DOI: http://dx.doi.org/10.21119/anamps.11.69-84.

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