Opinião

"Ilhas" dissonantes no STF formam colcha de retalhos potencialmente danosa

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25 de fevereiro de 2017, 10h58

Em excelente entrevista ao blog Os Constitucionalistas (posteriormente reproduzida no portal Justificando), o professor de Direito Constitucional Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo, quando questionado se seria o Supremo Tribunal Federal um arquipélago de ilhas, assim afirmou:

“Um ministro pode individualmente tomar decisões liminares que consumam efeitos irreversíveis, engavetar casos e jogá-los para um futuro indefinido, desengavetar casos que estavam aguardando julgamento há muitos anos ou poucos meses. O STF é refém dos caprichos de cada um dos seus ministros. Nada melhor define as “onze ilhas”.

Conforme levantado pelo ilustre jurista, e tantos outros de renome como Ives Gandra Martins, a Suprema Corte brasileira vive atualmente uma complexa realidade: (i) por um lado as decisões colegiadas destoam totalmente entre si, formando apenas um emaranhado numérico de votos por maioria; (ii) por outro lado 90% das decisões do STF são monocráticas.

Esse ambiente jurisdicional é benéfico para o ordenamento? Esse arranjo da Corte não compromete a competência do tribunal de “guardar a Constituição”?

Uma corte constitucional precisa ter, necessariamente, coerência e coesão argumentativa nas suas decisões, o que contribui para solidificar e garantir a eficácia dessas. Ter um colegiado de ministros que utilizam as mais diversas teses e fundamentações facilita um ambiente de caos hermenêutico, que permite, por exemplo, que o Senado Federal (como já vimos por duas vezes recentemente) simplesmente se recuse a cumprir uma decisão do Supremo.

Sabendo dessa fragilidade da decisão judicial, o senador Renan Calheiros pôde tranquilamente ignorar liminar proferida pelo ministro Marco Aurelio, pois já sabia de antemão que o arquipélago de ilhas decisionais alteraria o entendimento liminar.

Para elucidar essa situação acima exposta, elaboramos um quadro comparativo com trechos das liminares do ministro Celso de Mello (ou podemos dizer Ilha de Páscoa?) e do ministro Gilmar Mendes (Fernando de Noronha?) demonstrando as enormes divergências doutrinárias, jurisprudenciais e principiológicas das duas “ilhas decisionais” diante de um mesmo tema: a nomeação de uma pessoa para o cargo de ministro de Estado e o suposto desvio de finalidade do ato (com intuito de obter o foro privilegiado, garantindo supostamente maior proteção ao acusado).

Reconhecendo-se as nuances fático/probatórias que diferenciam o caso do ex-presidente Lula e do atual ministro Moreira Franco, as teses jurídicas defendidas nos mandados de segurança impetrados pelos partidos políticos Rede/PSOL (no caso Moreira) e PPS/PSDB (no caso Lula) eram muito semelhantes para que nos deparássemos com decisões tão discrepantes.

Nessa linha, analisando-se ambas liminares e iniciais, as diferenças fáticas apontadas poderiam ser relativas à situação das pessoas cuja nomeação foi questionada pelos partidos: (i) Lula já era formalmente investigado, havia sido alvo de interceptações telefônicas (ilegalmente divulgadas pelo juiz Sérgio Moro) e tinha pedido de prisão pendente; (ii) Moreira Franco foi citado em delações premiadas da empresa Odebrecht.

Ocorre que a nuance fática acima citada não implica, juridicamente, em situação diversa para os cidadãos/ministros de Estado, ao menos sob a ótica da Constituição Federal e legislação infraconstitucional, tese já firmada em diversos julgados do STF:

“em relação aos direitos e garantias individuais a todos assegurados, indistintamente, pela própria Constituição, com especial destaque, ante o seu caráter de essencialidade, para o direito fundamental de sempre ser presumido inocente até o trânsito em julgado de eventual condenação criminal (RT 418/286 – RT 422/307 – RT 572/391 – RT 586/338 – RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), valendo acentuar, ainda, que esse postulado constitucional – comum tanto ao Ministro de Estado quanto aos cidadãos em geral – mostra-se igualmente extensível à esfera eleitoral (ADPF 144/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) e ao plano administrativo, inclusive em matéria de investidura em cargos públicos (AI 741.101-AgR/DF, Rel. Min. EROS GRAU – RE 450.971- AgR/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – RE 1.006.604/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g)”

As diferenças de pensamento são, via de regra, salutares, mas a existência atual de “ilhas” dissonantes no Supremo Tribunal Federal mostra-se potencialmente danosa para o nosso ordenamento jurídico pátrio. E se uma dessas “ilhas” resolver entrar em erupção?

Quadro comparativo das decisões:

“Ilha de Páscoa” –
Celso de Mello

“Fernando de Noronha” – Gilmar Mendes

Medida Cautelar no MS 34.609/DF

Medida Cautelar no MS 34.070/DF e Medida Cautelar no MS 34.071/DF

Legitimidade ativa dos partidos políticos

“Cabe ter presente, no ponto, que o Plenário desta Suprema Corte (RE 196.184/AM, Rel. Min. ELLEN GRACIE), ao examinar a controvérsia constitucional pertinente à amplitude e aos limites da legitimação ativa dos partidos políticos para promoverem, em sede de mandado de segurança coletivo, a proteção de direitos e de interesses transindividuais, reconheceu que as instituições partidárias não dispõem de qualidade para agir, em juízo, na defesa de direitos difusos, pois, além de não existir autorização legal para tanto, o reconhecimento de tal prerrogativa em favor das agremiações partidárias, sem quaisquer restrições, culminaria por conferir a essas entidades a possibilidade de impugnarem qualquer ato emanado do Poder Público, independentemente de seu conteúdo material, desvirtuando-se, dessa forma, a finalidade jurídica do remédio constitucional ora utilizado no presente caso
(…)
Esse aspecto que venho de referir torna questionável a legitimação ativa “ad causam” de agremiações partidárias para a impetração de mandado de segurança coletivo, quando destinado à defesa de direitos ou de interesses difusos”

“A oposição tem claro interesse em levar ao judiciário atos administrativos de efeitos concretos lesivos a direitos difusos. E nosso sistema consagra a tutela de violações a direitos difusos como um valor a ser buscado, na perspectiva do acesso à jurisdição. No presente caso, estão em apreciação vários mandados de segurança em caráter coletivo impetrados por partidos políticos com representação no Congresso Nacional, não integrantes da base aliada, contra ato da Presidente da República. Logo, trata-se de uma via de defesa da ordem institucional que pode ser validamente desenvolvida e aceita.

Desvio de finalidade

A configuração desse grave vício jurídico, no entanto, que recai sobre um dos elementos constitutivos do ato administrativo, pressupõe a intenção deliberada, por parte do administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica ou divorciado do interesse (…) desígnio esse que não se presume, sob pena de subversão dos postulados referentes à presunção de legalidade, de veracidade e de legitimidade de que se reveste todo e qualquer ato emanado da Administração Pública. Nessa linha de entendimento, incumbe a quem imputa ao administrador público a prática desviante de conduta ilegítima a prova inequívoca de que o agente público, não obstante editando ato revestido de aparente legalidade, ter-se-ia valido desse comportamento administrativo para perseguir fins completamente desvinculados do interesse público.
(…)
Não constitui demasia assinalar, neste ponto, que o decreto presidencial ora impugnado, à semelhança de qualquer outro ato estatal, reveste-se de presunção “juris tantum” de legitimidade, devendo prevalecer, por tal razão, sobre as afirmações em sentido contrário, quando feitas sem qualquer apoio em base documental idônea que possa infirmar aquela presunção jurídica.”

“Aplicando essas noções ao caso em tela, tem-se que a Presidente da República praticou conduta que, a priori, estaria em conformidade com a atribuição que lhe confere o art. 84, inciso I, da Constituição – nomear Ministros de Estado. Mas, ao fazê-lo, produziu resultado concreto de todo incompatível com a ordem constitucional em vigor: conferir ao investigado foro no Supremo Tribunal Federal
(…)
E por que devem ser consideradas proibidas? Porque, a despeito de sua aparência de legalidade, porque, a despeito de estarem, à primeira vista, em conformidade com uma regra, destoam da razão que a justifica, escapam ao princípio e ao interesse que lhe é subjacente. Trata-se simplesmente de garantir coerência valorativa ou justificativa ao sistema jurídico e de apartar, com clareza, discricionariedade de arbitrariedade.”

Nomeação para obstruir investigações/obter foro privilegiado

E a razão é uma só: a mera outorga da condição político-jurídica de Ministro de Estado não estabelece qualquer círculo de imunidade em torno desse qualificado agente auxiliar do Presidente da República, pois, mesmo investido em mencionado cargo, o Ministro de Estado, ainda que dispondo da prerrogativa de foro “ratione muneris”, nas infrações penais comuns, perante o Supremo Tribunal Federal, não receberá qualquer espécie de tratamento preferencial ou seletivo, uma vez que a prerrogativa de foro não confere qualquer privilégio de ordem pessoal a quem dela seja titular.
(…)
Cumpre insistir, portanto, em que a investidura de qualquer pessoa no cargo de Ministro de Estado não representa obstáculo algum a atos de persecução penal que contra ela venham eventualmente a ser promovidos perante o seu juiz natural, que, por efeito do que determina a própria Constituição (CF, art. 102, I, alínea “c”), é o Supremo Tribunal Federal.”

“É muito claro o tumulto causado ao progresso das investigações, pela mudança de foro. E “autoevidente” que o deslocamento da competência é forma de obstrução ao progresso das medidas judiciais. Não se nega que as investigações e as medidas judiciais poderiam ser retomadas perante o STF. Mas a retomada, no entanto, não seria sem atraso e desassossego. O tempo de trâmite para o STF, análise pela PGR, seguida da análise pelo relator e, eventualmente, pela respectiva Turma, poderia ser fatal para a colheita de provas, além de adiar medidas cautelares. Logo, só por esses dados objetivos, seria possível concluir que a posse em cargo público, nas narradas circunstâncias, poderia configurar fraude à Constituição.”

*grifos nossos

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