Opinião

Retrotopia jurídica na pós-modernidade, um pensamento relativamente comum

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24 de fevereiro de 2017, 6h19

Recentemente, publicamos o artigo Advocacia-Geral da União na era dos ‘robôs-advogados, na revista eletrônica ConJur. Nesse texto, abordaram-se os desafios ao trabalho jurídico, numa “realidade profundamente instável, considerando os enormes avanços tecnológicos das últimas décadas”[1].

Nos dias subsequentes, foram-nos encaminhadas várias mensagens, com reflexões acerca do processo de automação das atividades jurídicas. Todavia, o que surpreendeu foi uma menção crítica ao referido artigo, na coluna semanal de um renomado pós-doutor. Este, ao comentar aquilo que designa como “jurista Nutella”, afirmou que vivemos “tempos duros”, “obscuros”, com “Direito fragilizado”, sugerindo então aos “alunos e demais juristas […] mergulharem nos livros”.

Em verdade, a mencionada coluna apresenta uma forma de pensamento relativamente comum, que se poderia denominar como retrotopia (usando aqui a acepção de Zygmunt Bauman)[2]. Ou seja, o colunista parece admirar um passado idealizado (imaginário), onde “a doutrina e as práticas jurídicas”, ainda imaculadas, não teriam sido “corroídas” pelos novos tempos.  

É inegável que vivenciamos profundas transformações, que afetam os diversos campos do conhecimento. Nesse cenário, não se é de estranhar que vários juristas demonstrem enorme perplexidade, chegando mesmo a questionar sua própria identidade, não raro moldada numa época em que “mergulhar nos livros” (preferencialmente os de capa dura), ostentar o título de “professor doutor”, ter bons contatos no fórum, exprimir uma linguagem prolixa e usar ternos bem cortados eram o modelo de sucesso. Tudo isso vem passando por mudanças, como já pudemos externar no mencionado artigo Advocacia-Geral da União na era dos robôs-advogados.

Por conseguinte, estes tempos pós-modernos suscitam uma sensível crise de identidade. Como afirma Zygmunt Bauman, “a fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas”. Assim, “em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, ‘estar fixo’ — ser ‘identificado’ de modo inflexível e sem alternativa — é algo cada vez mais malvisto”[3].

Nesse contexto, emerge um medo atroz, que domina as mentes de diversos juristas, inclusive autores renomados. Afinal, dentre os “perigos dos quais se tem medo (e também os medos derivados que estimulam)”, Bauman situa aqueles que ameaçam a “identidade de classe”. Segundo ele, “o ‘medo derivado’ é uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança […] e vulnerabilidade […]”[4].

Todo esse medo de alguns juristas é acentuado quando os fatos desmentem suas arraigadas concepções. Como bem define Thomas Sowell, “uma visão é nossa percepção de como o mundo funciona”[5]. E, num período histórico em que tantas visões parecem ultrapassadas, é natural que até mesmo renomados “doutores” se vejam confusos, optando por um dos seguintes caminhos:

a) ou o isolamento em suas respectivas comunidades pensantes, naquilo que Bauman (citando Lévi-Strauss) consideraria uma estratégia “antropoêmica”, consistente em “vomitar’, cuspir os outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios”[6];

b) ou, por outro lado, externar suas visões com maior estridência, optando pela polêmica e pelos holofotes, inserindo-se no retrato traçado por Theodore Dalrymple: “alguém para quem a adulação pública, embora sempre sob suas condições, constitui uma espécie de armação que mantém ereto todo o edifício da personalidade e impede o ego de sucumbir”[7].

Numa era de redes sociais, em que tantas pessoas suplicam pelos likes em suas postagens, não é de estranhar que até juristas renomados venham sucumbindo às tentações do ego, redigindo textos provocativos. Assim, mesmo um “pós-doutor” passa a adjetivar colegas como “juristas Nutella”, empregando “ironias e sarcasmos” nas suas publicações e chegando a ressaltar (sem falsa modéstia) que sua “coluna da semana passada bateu recordes de acesso”. Com efeito, o que importa é manter sua própria visão do mundo, sustentar sua própria identidade e refugar toda e qualquer crítica que lhe traga aquele medo do futuro, aquele “medo líquido” tão bem delineado por Bauman.

Alheios a uma realidade em constante mutação, alguns desses famosos juristas, com seus títulos doutorais, olvidam a necessária simbiose entre Direito e Sociologia. É esta última que vem elucidando os dilemas atuais, sem negá-los com frases de efeito ou tergiversações acadêmicas. Assim, sob o prisma sociológico, poder-se-ia designar a visão desses juristas como “retrô”, considerando seu fetiche por uma peculiar (e imaginária) “tradição jurídica”. Com postura empedernida, esses profissionais negam a seguinte constatação de Anthony Giddens: “Nenhum conhecimento sob as condições da modernidade é conhecimento no sentido ‘antigo’, em que ‘conhecer’ é estar certo”[8].

Por fim, é Zygmunt Bauman quem fornece a mais interessante lição aos referidos juristas (tão preocupados com o ranking de acesso às suas colunas ou com a quantidade de curtidas em suas postagens nas redes sociais). Questionado por um jornalista acerca do “recorde” de vendas dos seus livros no Brasil, um sereno (e sorridente) Bauman se limitou a afirmar: “Soube através de você sobre esses milhares de cópias; as editoras nunca me contaram…”[9].

Após décadas de pesquisa, Bauman não parecia preocupado em manter o edifício de sua personalidade ou ainda uma visão egoica, focada no sucesso das suas obras. Antes de morrer, o famoso pensador reconheceu, sem o medo e a ansiedade dos novos tempos, que “toda a felicidade se encontra na própria jornada”[10]. É uma pena que o eminente sociólogo não estivesse publicando uma coluna semanal, relembrando-nos (continuamente) o que é um verdadeiro senso de realidade.


[1] MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União na era dos robôs-advogados. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-30/rommel-macedo-advocacia-geral-uniao-robos-advogados>. Acesso em 23.fev.2017.
[2] Cf. BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Cambridge: Polity Press, 2017.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 22-35.
[4] ___. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 9-10.
[5] SOWELL, Thomas. Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas. Trad. Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É Realizações, 2012. p. 18.
[6] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 118.
[7] DALRYMPLE, Theodore. Qualquer coisa serve. Trad. Hugo Langone. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2016. p. 195.
[8] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991. p. 50.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Entrevista a Alberto Dines. Disponível em: < http://tvbrasil.ebc.com.br/observatorio/episodio/entrevista-com-zygmunt-bauman>. Acesso em 23.fev.2017.
[10]____. Entrevista a Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702004000100015>. Acesso em 23.fev.2017.  

Autores

  • Brave

    é advogado da União e mestre em Direito. Foi conselheiro seccional e presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012). Foi coordenador científico da pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, coordenador-geral substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, coordenador-geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e coordenador jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.

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