Justiça preconceituosa

"Mesmo sem provas, acusado de tráfico e furto já começa o processo condenado"

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21 de fevereiro de 2017, 18h02

*Este é o sexto texto da série produzida pela ConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.

A Justiça Criminal é preconceituosa contra pobres e negros. Assim, quem é réu de tráfico de drogas praticamente já começa o processo condenado, mesmo que não haja provas e a acusação seja baseada apenas na palavra dos policiais. Com isso, o Judiciário é um dos principais responsáveis pela crise do sistema carcerário. Quem traça o diagnóstico é o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Técio Lins e Silva, sócio do Técio Lins e Silva, Ilídio Moura & Advogados Associados.

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“A Justiça Criminal é responsável pelo caos do sistema penitenciário, porque quase todos os juízes criminais, infelizmente, engrossam o coro. A maior parte deles não perde o sono com as condenações que dão, condenam mais do que absolvem. Esses aos quais me refiro não têm sentimento de culpa — são bem resolvidos, não têm superego em matéria penal, não sentem culpa pelo fato de condenarem inocentes. Esses magistrados não se importam se as provas são falsas, porque, na cabeça deles, esses réus são criminosos, são pobres”, critica.

O Ministério Público também tem grande parcela de culpa pelo caos prisional, aponta o advogado. Isso porque “maior parte de seus membros é conivente, coautor, cúmplice” da linha de produção de condenações. Em vez de exercer o papel de fiscal da lei, como deveria, segundo o criminalista Lins e Silva, o órgão age como “arauto da necessidade de se encarcerar”.

Uma forma de mudar essa mentalidade dos magistrados e integrantes do MP seria extinguir as varas de execução penal, avalia o presidente do IAB. Dessa maneira, os juízes criminais que proferissem a sentença também cuidariam do cumprimento das penas. E os mesmo ocorreria com os membros do MP que atuassem nos casos. Ao acompanhar o dia a dia dos presos, ressalta Técio Lins e Silva, tais profissionais entenderiam como funciona o sistema penitenciário, e poderiam passar a dar mais valor às progressões de regime, benefícios penais e punições alternativas à prisão.

O advogado bem que tentou fazer essa alteração no Rio. Quando foi secretário de Justiça do estado, no fim dos anos 1980, ele propôs a extinção das varas de execução penal e a transferência dessa competência para os juízes criminais. A medida foi aprovada, mas encontrou resistência dos magistrados. Entre a sessão final da Assembleia Constituinte da Carta Estadual de 1989 e a impressão do documento, foi inserido um dispositivo no documento recriando as varas de execução penal. Mais tarde, o advogado descobriu que os deputados estaduais não resistiram ao forte lobby do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Porém, a Justiça e a sociedade brasileiras não têm preconceito apenas com pobres e negros. Há uma carga cultural muito negativa com relação às drogas, destaca Lins e Silva. Ele sabe do que está falando: desde 1985, quando assumiu a presidência do Conselho Federal de Entorpecentes, órgão do Ministério da Justiça, ele convida a sociedade a refletir sobre os malefícios da guerra contra as drogas. Em artigo publicado em dezembro de 1985 na Revista de Domingo, do Jornal do Brasil, o criminalista já alertava para a “reação histérica, quase apoplética, que temos visto ultimamente, quando se trata de falar de drogas”. O caminho que ele propunha era outro: ampliar a discussão, desmistificar o assunto, e aprender a conviver com as diferenças.

Seu entendimento sobre esse tema não mudou: Técio Lins e Silva é favorável à regulamentação de todas as drogas. “O futuro é da compreensão, do livre arbítrio. (…) O uso delas é uma autolesão, é um problema de cada um, não é uma questão penal.” A seu ver, somente por essa via será possível acabar com o tráfico e os crimes relacionados a esse comércio de entorpecentes.

Lins e Silva recebeu a ConJur em seu escritório, localizado no Centro do Rio, onde estava acompanhado da advogada da banca Maíra Fernandes. O ambiente transborda história: é recheado de objetos do passado, como canetas-tinteiro e mata-borrões, e de fotos em preto e branco de seu pai, o advogado Raul Lins e Silva, e de seu tio, Evandro Lins e Silva. Este foi ministro do Supremo Tribunal Federal, mas sua carreira foi abruptamente interrompida quando foi aposentado à força pela ditadura militar em decorrência do Ato Institucional 5.

Carismático, Técio Lins e Silva é um bom contador de histórias. Volta e meia ele se empolga ao narrar um fato, arregala os olhos por detrás dos óculos de grau redondos e gesticula incessantemente. Orgulhoso de seu cargo, sempre traz espetado em seu paletó um broche vermelho do IAB.

Em entrevista à ConJur, o criminalista descreveu sua experiência política, explicou a “terapia de choque” que aplicava em seus alunos e atacou a decisão do STF que autorizou a execução da pena após condenação em segunda instância.

Leia a entrevista:

ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Técio Lins e Silva
— Evidentemente viola. Toda doutrina, todos os especialistas, todos os professores dirão que viola, que a prova policial é insuficiente para a condenação. Quem consultar a jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal encontrará o ministro Aliomar Baleeiro, há 50 anos, dando Habeas Corpus para trancar processos, para anular condenações fundadas exclusivamente na prova policial. Só que o preconceito na Justiça Criminal é tão gigantesco que a possibilidade de um réu ser absolvido em crime contra o patrimônio ou crime de drogas é minúscula, é quase impossível.

O acusado de furto, de roubo, de tráfico de drogas já começa o processo condenado. O juiz já começa condenando, pouco importa se a prova é policial, se tem prova, se não tem prova, se tem laudo, se não tem laudo — ele já entra disposto a condenar. A Justiça Criminal é responsável pelo caos do sistema penitenciário, porque quase todos os juízes criminais, infelizmente, engrossam o coro. A maior parte deles não perde o sono com as condenações que dão. Condenam mais do que absolvem. Esses aos quais me refiro não têm sentimento de culpa — eles são bem resolvidos, não têm superego em matéria penal, não sentem culpa pelo fato de condenarem inocentes. Esses magistrados não se importam se as provas são falsas, porque, na cabeça deles, esses réus são criminosos, são pobres. Estamos falando em um estrato social — os negros, os pobres — que é a clientela do sistema penal. Muitos dos acusados de tráfico são meninos, são atravessadores, não são traficantes na expressão legítima do valor da palavra. As palavras têm um conteúdo, um valor, um peso.

Aqui no Brasil, traficante é qualquer moleque que é preso com três baseados, porque um é para uso, mas dois, três, são para vender, então é traficante. A covardia que se pratica contra essa população é gigantesca, é responsável por essa crise do sistema penitenciário. O sistema penitenciário é abastecido de injustiçados, de criminosos sem nenhuma potencialidade. Claro que entrando no terror em que se transformou o sistema penitenciário já há muitos anos, fica difícil não se juntar a criminosos de verdade. O sistema penitenciário sempre foi o patinho feio das administrações — sempre foi muito difícil conseguir sensibilizar os governadores ou presidentes a investir nas prisões. Digo isso com autoridade, porque fui secretário de Justiça e administrador das cadeias do Rio de Janeiro de 1987 a 1990. Eu conheço a dificuldade de fazer qualquer projeto decente nas cadeias, como colocar escolas, implementar oficinas para presos, e a dificuldade de se firmar parcerias com empresários.

Havia um juiz de execução criminal, o mais genial que o Brasil conheceu, mas que está esquecido, chamado Francisco Horta. Ele era juiz de execução penal, maldito no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e que acabou se aposentando para não ser punido. Ele era um homem extremamente generoso, mobilizava a comunidade, fazia os chamados “mutirões do amor” para atender presos desvalidos. Ele tinha uma capacidade única de compreender o sistema penitenciário. No primeiro governo de Antônio de Pádua Chagas Freitas (PMDB) no antigo Estado da Guanabara (1971-1975), Horta negociou com as autoridades estaduais a aprovação de uma lei que possibilitava antecipar a liberdade antes do cumprimento total da pena. Uma lei generosíssima, que soltou muita gente, sem tornar a sociedade mais violenta do que antes. Pelo contrário: essa lei dava esperança ao preso, que sabia que se tivesse um bom comportamento, poderia ser liberado antes. Isso está completamente interligado com o mundo das drogas, que enche as prisões, e tem progressão de regime mais demorada, pelo fato de o crime ser considerado hediondo. Com a convivência nos presídios, as pessoas acabam realmente se integrando ao mundo do crime organizado.

ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Técio Lins e Silva
— Não. A questão da droga está embutida em uma gigantesca questão cultural. Não é uma questão penal, é uma questão de cultura. Na Califórnia (EUA), há muitos e muitos anos o porte para uso próprio está descriminalizado. Eles autorizam o porte de cerca de 50 gramas. E recentemente legalizaram também o comércio de maconha no estado. Mas aquela já era uma quantidade bastante razoável considerando o uso, e isso não aumentou a violência. Vários outros estados americanos já não enfrentam a questão da droga como questão penal. E isso também ocorre em outros países, como Portugal, Holanda, Uruguai. Essa é a tendência. O filósofo alemão Rudolf von Ihering dizia que a história da pena é a história de sua constante abolição. Essa é a história do futuro da humanidade, na contramão da cultura universal de encarceramento. Isso começou na Idade Média.

Antes da Idade Média, o sujeito era punido corporalmente: recebia castigos ou era exibido e executado. A penitenciária surgiu como uma solução humanitária. Os iluministas diziam que era preciso parar de matar. [Pensaram]: “Agora vamos tirar a liberdade da pessoa, vamos prendê-la, vamos esconder o corpo do criminoso, e não mais exibi-lo, como era feito nas praças públicas”. Timidamente, nós chegamos às medidas substitutivas da pena privativa de liberdade. Mas os juízes são tímidos, não as aplicam. Hoje é muito mais fácil mandar para a cadeia do que depois ter que ficar tomando conta dos condenados, cuidando das execuções. Essa evolução do sursis processual, de evitar o processo, de o sujeito fazer acordo, pagar uma cesta básica, anda em uma lentidão extraordinária, mas é o caminho da humanidade. Não tem conversa, Ihering estava certo. Então, esse raciocínio encarcerador é um raciocínio de retrocesso. É a contramão da história, é a volta para a Idade Média.

O futuro é da compreensão, do livre arbítrio. Poucos anos atrás, era impossível discutir a questão das drogas sob o ponto de vista da cultura, sob o ponto de vista do livre arbítrio, sob o ponto de vista de que o uso delas é uma autolesão, é um problema de cada um, não é uma questão penal. A própria legislação brasileira evoluiu nesse sentido. O usuário não vai para a cadeia, o que é uma evolução extraordinária — embora os policiais muitas vezes enquadrem usuários como traficantes. Mas se hoje se puser uma votação dessas no Congresso, os parlamentares vão voltar a botar o usuário na cadeia. Hoje o pensamento predominante é do encarceramento, é do retrocesso da legislação atual. Basta lembrar as condenações dos dias de hoje em matéria de crimes econômicos. São penas inimagináveis de 30, 40, 50, 70 anos!

ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Técio Lins e Silva
— Claro que não. É como o álcool, o tabaco, os remédios… A água pode ser feita de droga: se você beber água demais, pode morrer afogado. A mesma coisa com a alimentação. As pessoas se drogam com comida, bebida, com seus maus hábitos. Vários países já compreenderam que isso é autolesão, que isso é um problema de cada um. Aqui no Brasil pode beber, tomar um porre de cachaça, pode cair na sarjeta que tudo bem, não vai para a cadeia, vai para o hospital. Agora, se queimar um baseado, vai para a polícia e para o juiz, vai ter que se explicar, e se tiver dois baseados, corre o risco de ser considerado traficante. Já vi casos de jovens enquadrados como traficantes por compartilharem um cigarro de maconha com os amigos, com a namorada. E isso está na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006): oferecer, entregar a consumo. Não tenho dúvida de que, no futuro, as drogas vão deixar de ser reguladas pelo Direito Penal. O Direito Penal não resolve essa questão. Sem o Direito Penal, resolveria inclusive o problema do tráfico de drogas. Vide o que aconteceu quando proibiram o álcool nos EUA, nas décadas de 1920 e 1930. Surgiram grandes criminosos, como Al Capone, havia um grande tráfico de bebida, aumentou a criminalidade, as mortes cresceram. Aconteceram muitas desgraças porque o álcool era proibido.

ConJur — Que modelo o senhor defende em relação às drogas? A descriminalização do uso, a legalização só da maconha ou a legalização de todas as drogas?
Técio Lins e Silva
— Tem que regulamentar todas as drogas. O Estado não tem nada com isso. Não se pode tratar essa questão penalmente. É preciso regulamentá-la como se regulamenta o álcool, o tabaco, os medicamentos. Quantos anos levaram para permitir uma droga para salvar a vida das pessoas que contem tetraidrocanabinol, porque é derivada da maconha? Quantos anos tivemos que lutar por isso? A Holanda já lida com essa delicada questão do uso de drogas há décadas. Infelizmente não vou viver esse tempo, mas eu não tenho a menor dúvida que o caminho da humanidade é esse de compreender as opções feitas pelas pessoas. Nada me convence de que botar na prisão a pessoa que fez a opção de usar uma droga seja o caminho. E qual é o subproduto disso? É o traficante. Se você proibir água, você vai ter tráfico de água, vai ter guerra de quadrilha, vai ter crimes. Cigarro é liberado. Pode comprar à vontade, pode fumar 10 maços de cigarro por dia. Mas não pode fumar o cigarro que tem a substância tetraidrocanabinol. Por que não pode?

ConJur — Como foi a sua experiência como presidente do Conselho Federal de Entorpecentes do Ministério da Justiça?
Técio Lins e Silva
— Eu presidi o Conselho Federal de Entorpecentes de 1985 a 1987 [no governo de José Sarney], no início da Nova República, quando falar em droga gerava um preconceito gigantesco. A Lei de Tóxicos (Lei 6.368/1976) tinha uma regra inacreditável: exigia uma autorização do Conselho Federal de Entorpecentes do Ministério da Justiça para falar de drogas. Tinha que mandar o texto da sua fala ao órgão, e ele era submetido ao plenário do Conselho Federal de Entorpecentes para ser aprovado. Ou seja, um padre que fosse fazer um sermão, uma homilia sobre drogas tinha que mandar o discurso para avaliação. Um professor que fosse dar uma aula sobre drogas tinha que submeter o texto da sua aula ao Conselho Federal de Entorpecentes. Isso não foi no século XIX, foi há 30 anos. Assim, a primeira medida que eu tomei no órgão foi propor uma resolução revogando a lei nessa parte. A Nova República restabeleceu a liberdade de pensamento — passou a ser possível falar sobre qualquer assunto; se houver excesso, vai responder nos termos da lei. Mas a lei exigia essa autorização, embora eu possa dizer que descumpria a lei. Praticava desobediência civil.

ConJur — Aumentar os investimentos em varas de execução penal ajudaria a resolver a crise do sistema prisional?
Técio Lins e Silva
— A execução penal padece também desse preconceito que explode os presídios, responsável pelas explosões dos presídios. No Rio de Janeiro, por exemplo, só há uma vara de execução penal. Na época em que fui secretário de Justiça do estado [de 1987 a 1990, no governo Moreira Franco (PMDB)], tinha um juiz para 500 mil processos — hoje devem ser milhões. Nesses três anos eu conheci muito as dificuldades da vara de execução penal. Mas a situação poderia ser melhor. No fim dos anos 1980, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou para a Assembleia Legislativa uma mensagem de lei para alterar o código de organização do Judiciário estadual. Como secretário de Justiça, eu administrei o oferecimento de uma emenda a esta lei para extinguir as varas de execução. A lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Assim, tais varas foram extintas, e a execução penal passou a ser feita pelo juiz da condenação. Como existiam 100 varas criminais na época, nós multiplicaríamos por 100 o número de juízes, integrantes do Ministério Público e defensores públicos que iriam controlar a execução penal e cuidar dos condenados. O sistema iria funcionar com base no Evangelho: “Quem pariu Mateus que o embale…”. Condenou, vai passar o resto da vida atendendo a mulher do preso que vai pedir para ele visitar a família no Natal, a mãe do preso que vai pedir a liberação dele para ir ao enterro do pai…

Então, os juízes teriam que lidar com as mazelas do sistema e do cumprimento da pena enquanto a pessoa estivesse presa. Essa lei entrou em vigor. Mas o presidente do TJ-RJ encomendou a um juiz auxiliar da presidência um parecer normativo sobre a lei, e este afirmou que ela era inconstitucional por vício de iniciativa. Segundo o TJ-RJ, só o Poder Judiciário poderia propor alterações em sua estrutura, embora tal emenda tenha sido apresentada por um deputado estadual. Mas quem propôs a lei não foi o governador, não foi um deputado, foi o Judiciário. Assim, o presidente do TJ-RJ determinou que os juízes não cumprissem a lei. Como eu era também chefe da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, reuni os defensores e estabelecemos que o órgão tinha que exigir o cumprimento dessa lei. E eles passaram a exigir que a execução fosse do juiz da condenação, e não da extinta vara de execução penal, e começaram a confrontar a ordem do presidente do TJ-RJ impetrando Habeas Corpus. Uma juíza que na época atuava no tribunal do júri, por exemplo, resolveu aplicar essa lei. Logo em seguida foi chamada para conversar, e avisaram que se ela continuasse aplicando esta lei, sairia da área criminal e seria transferida para a Vara de Família, da qual ela tinha horror. Mesmo assim, a juíza disse: “Minha consciência diz que eu tenho que aplicar essa lei”. Não demorou para ela ser transferida para a Vara de Família, o que a forçou a antecipar sua aposentadoria.

Em seguida veio a Assembleia Constituinte estadual. Como secretário de Justiça, eu acompanhava os trabalhos, e discutia as questões com o deputado Elmiro Coutinho (PMDB), que era o relator da constituinte. Pois bem, aí a Constituição estadual foi promulgada em 1989, e imprimiram aquelas duas edições originais que são assinadas por todo mundo. Aí eu, como Secretário de Estado de Justiça, recebi o texto original, em uma edição encadernada, deslumbrante. Quando fui lê-la, me deparei com uma pérola no artigo 169: “Fica criado o Juizado das Execuções Penais provido por juízes togados, nas comarcas do estado do Rio de Janeiro, com o concurso da Curadoria e Defensoria Pública nos seus feitos, regulamentado por lei ordinária, proposta por mensagem do Poder Judiciário”. Ou seja, as varas de execução penal foram extintas por uma lei estadual sancionada, mas retornaram pela Constituição estadual, algo inacreditável. Um órgão jurisdicional de um único estado brasileiro criado pela Constituição. E isso ocorreu por meio de um penduricalho que foi introduzido entre a redação final da Constituição e a impressão na Imprensa Oficial.

Anos depois, o próprio deputado Elmiro Coutinho revelou que tal dispositivo foi inserido no texto constitucional por pressão dos juízes, que era para acabar com as discussões com relação ao fim das varas de execução penal. O Poder Judiciário então conseguiu restabelecer o seu poder, o seu preconceito em relação à execução penal. A vara de execução penal sempre foi o patinho feio da Justiça. Quando começaram a informatizar a Justiça do Rio, o sistema operacional das varas de execução penal era diferente dos sistemas do tribunais, e eles não se comunicavam. Revelo uma curiosidade do meu estado do Rio de Janeiro, único estado da federação que não possui Secretaria de Justiça, extinta por decreto governamental no primeiro dia do primeiro governo do ex-governador Sergio Cabral [PMDB]. Foi extinta, inexplicavelmente, a secretaria da cidadania, a mais antiga pasta do Poder Executivo no país, desde a República.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a execução da pena tem que se dar imediatamente apos a condenação em segunda instância, independentemente de ainda haver possibilidade de se recorrer. Ou seja, antes do trânsito em julgado. Logo, o STF não considerou estar em vigor o artigo 283 do Código de Processo Penal, que determina que o sujeito só pode ser recolhido para cumprir pena após o trânsito em julgado da condenação, o que é uma cláusula pétrea da Constituição. Por seis votos a cinco, o Supremo negou a liminar concedida pelo relator dessas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, o ministro Marco Aurélio, e por um voto, dado pela presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, entendeu que o sujeito condenado em segunda instância tem que ir para a cadeia. A mesma presidente, minha querida e estimada amiga, que agora quer esvaziar as cadeias, quer que os juízes das varas de execução penal encontrem medidas para diminuir o fluxo carcerário e quer fazer mutirões carcerários. Mas o votinho dela aumentou a possibilidade de se engordar o sistema penitenciário com presos ainda não condenados definitivamente. Essas coisas são eternas na vida da Justiça Criminal.

Como eu disse, o sistema penitenciário sempre foi o patinho feio dos governos. Nenhum governo se preocupou seriamente em reformar as penitenciárias, melhorá-las, estabelecer condições carcerárias decentes.
Eu dei aula de Direito Penal durante muitos anos. Eu via que os alunos sempre tinham essa ideia de “ah, precisa prender, arrebentar, aplicar pena de morte”. Então passei a fazer um tratamento de choque com eles. Todos os anos levava a turma para ir passar um dia em uma penitenciária, a Esmeraldino Bandeira, que tinha dois mil presos na época. Eu combinava com o diretor do sistema penitenciário, com o diretor da cadeia e levava os alunos lá, onde eles passavam o dia para ver como era a vida de um preso. Anos depois, encontrei uma senhora que me deu um abraço e disse “eu sou desembargadora aposentada em Brasília, e o senhor mudou a minha cabeça. Eu fui juíza criminal, e quando ia condenar, eu me lembrava quando o senhor nos levou à cadeia. Aí pensava duas vezes no tamanho da pena, porque aprendi o que ela significava”. O juiz não sabe o que significa o tamanho da pena que dá — para ele, tanto faz se são cinco, 10 anos, 15 anos. Essa é a dura, triste, insolúvel realidade. Basta ler os jornais!

Eu ouço falar em medidas para resolver a crise do sistema carcerário desde criança, pois sou filho de um advogado criminal. Há 53 anos [tempo de carreira] eu ouço essa mesma conversa fiada. Já participei de várias CPIs, fui chamado para depor em várias CPI do sistema penitenciário. Não acontece nada, elas não tiveram nenhum resultado. Participei de dezenas de simpósios, seminários. Advoguei para presos políticos na ditadura militar, passei a vida inteira nas auditorias militares visitando presos, lutando pela liberdade dos presos políticos, dos inimigos do governo. Na minha ficha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), tinha um documento considerado subversivo: um roteiro de aula sobre a pena privativa de liberdade. Veja o preconceito de falar em pena privativa de liberdade. Então quando você me diz que quer conversar sobre a crise penitenciária, me dá uma gastura, porque eu ouço essa conversa há 53 anos — sem nenhum resultado. Não muda absolutamente nada. Pelo contrário: o que nós vemos hoje é o endurecimento penal, é a criminalização de novas condutas, é o aumento de penas, ainda sob a panaceia da pena como grande solução do sistema penal brasileiro. Infelizmente, esse é o discurso que predomina, estimulado pela imprensa — pela televisão, pelo rádio, pelos jornais, pelos blog, pelas redes sociais.

ConJur — Que medidas podem ser aplicadas diminuir as rebeliões em presídios e para desarticular as facções criminosas?
Técio Lins e Silva
— A extinção das varas de execução penal do Rio era uma tentativa nesse sentido. Era uma ousadia, para mudar a regra do jogo. Mas essa ousadia foi vencida pela pelo Poder Judiciário, que é avesso a qualquer mudança que mexa com as suas estruturas. Aí vai continuar tendo motim em presídio. Eu fui administrador penitenciário do Rio por três anos, e posso dizer que não vi nenhum motim nesse período. Houve apenas uma tentativa de fuga de um preso famoso, na antiga Penitenciária Milton Dias Moreira, no Centro do Rio.  Mas soubemos disso com antecedência. Então conseguimos abater o helicóptero, e o preso não logrou a fuga.

Eu não vivi motim porque trabalhamos muito contra essa separação de presos por facções, que virou a regra do sistema. Quem entra na cadeia tem que dizer qual é o seu grupo, se é PCC, se é Terceiro Comando, se é Comando Vermelho. Aí ele é encaminhado para a galeria daquela agremiação. Quem diz que "não é nada" vai para a parte dos neutros. É muito difícil, mas nós trabalhamos pela neutralização dessa situação, visando acabar com esse negócio de presídio da facção tal, presídio da facção tal, galeria da facção tal. Aos poucos fomos sendo bem-sucedidos. Separamos jovens, aqueles condenados pela primeira vez, colocamos velhos e doentes próximos à saída das prisões. Com muita dificuldade, conseguimos, não digo melhorar, mas pelo menos contornar a tragédia que é o sistema penitenciário. Então a saída é por aí. Mas com a extinção da Secretaria de Justiça do Rio pelo então governador do Estado, isso ficou mais difícil.

ConJur — Como o senhor avalia as medidas anunciadas pelo governo Michel Temer para combater a crise nos presídios, como a construção de cinco novos presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam o sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios?
Técio Lins e Silva
— Incompetência, ignorância sobre o assunto, preconceito e mentiras para enganar a opinião pública. Militar não pode ser usado para isso, é contra a Constituição convocar as Forças Armadas para tratar da questão carcerária. Isso poderia dar impeachment. Não é com a mentalidade de construir cadeias que o sistema será transformado. Se fosse assim, seria melhor construir um muro em torno das nossas fronteiras, botar uma placa “presídio brasileiro”, e pronto. Seria mais fácil. Não é por aí. É preciso despenalizar, descriminalizar, trabalhar com alternativas à pena privativa de liberdade. E é preciso mudar a cultura do Judiciário, que tem grande responsabilidade nessa crise carcerária.

O Supremo Tribunal Federal contribuirá muito para essa crise por estabelecer uma regra mudando a lei penal brasileira, mudando a Constituição, que encarcera o inocente, ou aquele cuja condenação ainda não transitou em julgado. Ele pode ser absolvido mais adiante, ele é presumido inocente até o fim do processo. É um absurdo prender antes da decisão condenatória transitada em julgado. O Judiciário também é responsável pelo exército de presos provisórios, que são 40% da população carcerária. Quem botou esses presos lá? Quem mantém esses homens lá? São os juízes. Eu te digo, com toda a minha experiência de vida, que se abrirem as portas das cadeias e liberarem 60% dos presos, só irá aumentar o número de desempregados, não irá aumentar a violência. Agora, o juiz não solta, o tribunal não solta. Porque vai ter editorial criticando. A Justiça fica com medo…

ConJur — Qual é o papel do Ministério Público na crise carcerária?
Técio Lins e Silva
— O Ministério Público tem culpa? Claro, a maior parte de seus membros é conivente, coautor, cúmplice. Porque o MP tem sido o arauto, ele que anuncia a necessidade de prender, de encarcerar. O MP é responsável por esse discurso medieval, antiquado, indigno e contra o Brasil, contra os brasileiros. Olha essa notícia que acabou de sair: “Janot pede que deem agilidade à homologação das delações da Odebrecht”. Como? O Judiciário estava em recesso, a operação “lava jato” não tinha relator no Supremo, mas não interessa. Ele está exalando ódio, quer aumentar as prisões a qualquer custo.

O papel do Ministério Público é defender a pacificação nacional, defender a lei, é o fiscal de lei, fiscal da fiel execução da lei. Mas aqui não. O Ministério Público, infelizmente, tem se colocado como parte comprometida com o resultado acusatório. E acha que não tem nenhuma responsabilidade pela crise carcerária. Eu não vi o Ministério Público fazer mea-culpa dessa crise, porque é ele que estimula, é ele que pede ao juiz para endurecer, para não soltar. Claro que não são todos os seus membros que agem dessa forma, mas, como instituição, o Ministério Público tem uma maneira equivocada de enxergar essa questão. O Ministério Público deveria estar pedindo o cumprimento legal da pena, defendendo aqueles que não tiveram presunção de inocência. Mas o Ministério Público é contra a presunção da inocência, ele quer mandar pra cadeia mesmo o presumido inocente. Para ele, o réu é presumido culpado. É uma coisa horrorosa.

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