O Poder Legislativo deve respeitar o princípio da moralidade?
21 de fevereiro de 2017, 8h00
A questão volta ao debate com a eleição do senador Edson Lobão, com amplo apoio do Planalto, como presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, a qual, dentre outras diversas atribuições, tem por função conceder parecer prévio sobre os projetos de lei que devem ser votados naquela casa legislativa, além de sabatinar as pessoas indicadas para compor o STF.
Em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lobao-afirma-que-anistia-a-caixa-2-e-constitucional,70001661823?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=manchetes), o senador Lobão afirmou que a anistia aos crimes de caixa dois é plenamente constitucional[1].
Daí a pergunta: o Princípio da Moralidade alcança a todos, ou apenas a administração pública? Observe-se que o caput do artigo 37, CF, é expresso apenas para esta.
Esse assunto tem relação com dois aspectos estudados pelo Direito Financeiro. A corrupção, que vem sendo muito discutida no Brasil atual, em especial no âmbito da operação "lava jato", e também faz parte daquilo que denominei de Direito Financeiro Eleitoral em outra coluna (http://www.conjur.com.br/2016-set-06/contas-vista-financiamento-campanhas-eleitorais-risco-cafe-society).
Sem o intuito de esgotar o assunto, quero trazer ao debate uma decisão do STF em que foi afirmado que o Princípio da Moralidade só vale para a administração pública, afastando expressamente sua aplicação para o Poder Legislativo. Remanescem daquela composição os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que votaram de forma divergente, como se verá.
Relembrando: a Lei 8.744/1993 concedeu anistia financeira aos eleitores que haviam deixado de votar no plebiscito feito naquele ano. Posteriormente, a Lei 9.274/1996 concedeu: 1) anistia financeira aos débitos dos eleitores que deixaram de votar nas eleições de 1992 e 1994, bem como aos membros das mesas receptoras que deixaram de atender à convocação da Justiça Eleitoral; e 2) anistia criminal aos “fatos definidos como crime no art. 344 da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral”. Essa norma eleitoral tipifica como crime “recusar ou abandonar o serviço eleitoral sem justa causa”, punindo-o com “detenção até dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa”.
Seguindo essa linha, o senador Gerson Camata (PMDB-ES) apresentou em 1999 o projeto de lei (PLS 81/99), onde, ao lado da usual anistia aos eleitores inadimplentes (artigo 1º), previa[2]:
Art. 2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas no período de 7 de abril a 25 de outubro de 1998.
Parágrafo único. A anistia referida neste artigo não se aplica a candidatos eleitos.
Pela redação, vê-se que se tratava de uma proposta de anistia financeira para os candidatos não eleitos, o que, por si só, já seria bastante discutível, pois não haveria justificativa plausível para tal conduta. Porém, assim foi aprovada no Senado Federal.
Ao chegar à Câmara dos Deputados, o referido projeto de lei recebeu o número 934/1999 e foi objeto de diversas emendas parlamentares, sempre com a utilização retórica da justificativa de ampliar a anistia aos eleitores (objeto do artigo 1º), mas alterando o teor do artigo 2º, que ampliava a anistia aos políticos — inclusive dos eleitos, o que se caracterizava como uma vantagem individual a eles, o que foi uma decisão de duvidosa moralidade, pois se tratava de uma vantagem autoconcedida, isto é, um privilégio, e não uma prerrogativa.
O texto final ampliou o período para abranger e anistiar também o ano de 1996. O texto foi aprovado por votação nominal na Câmara dos Deputados por 261 votos favoráveis, 110 contrários e 13 abstenções[3].
Em face das modificações, retornou ao Senado, que confirmou as alterações propostas e encaminhou o seguinte texto ao presidente da República, contemplando em seu artigo 2º ampla anistia financeira aos políticos que cometeram infrações eleitorais, tenham ou não sido eleitos:
Art. 2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas nos anos eleitorais de 1996 e 1998.
O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, vetou na íntegra o projeto de lei em 21 de dezembro de 1999[4]. O Congresso Nacional rejeitou o veto, tendo seu presidente, Antonio Carlos Magalhães, promulgado a Lei 9.996, em 14 de agosto de 2000[5].
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no STF com a ADI 2.306, com pedido de medida cautelar, que foi relatada pelo ministro Octavio Gallotti. Os principais argumentos utilizados foram os da violação ao Princípio da Moralidade Pública, a afronta ao Estado Democrático de Direito e à segurança jurídica, e atentar contra a coisa julgada eleitoral, pois as multas aplicadas já haviam transitado em julgado.
No julgamento da cautelar, em setembro de 2000, foi trazido ao debate pelo relator a questão da titularidade do dinheiro das multas, o que turvou os pontos centrais em discussão. O ponto de relevo ocorreu quando o ministro Moreira Alves afirmou que o Princípio da Moralidade era um princípio constitucional para a administração pública, e não para o Estado-Legislador, pois, “a não ser assim, poder-se-ia até considerar que a anistia de crime seria imoral”. O ministro Carlos Velloso, chegou a contestar a posição de Moreira Alves, argumentando que “anistiar filhos de parlamentares que tenham cometido crimes, ou os próprios parlamentares, ter-se-á praticado ato não condizente com a Moralidade administrativa”. Recebeu como resposta que tal hipótese não se referiria a moralidade, mas a “devido processo legal em sentido material”. A liminar foi concedida em 27 de setembro de 2000, por maioria de votos, no sentido de suspender os efeitos da norma.
Ocorre que, de vencido na cautelar, o argumento do ministro Moreira Alves passou a vencedor no julgamento de mérito da ADI 2.306, em 21 de março de 2002, relatado pela ministra Ellen Gracie, sucessora do ministro Gallotti, então aposentado.
O voto da ministra relatora foi pela improcedência da ADI, revertendo a medida cautelar antes concedida. Seu voto foi seguido pelos ministros Nelson Jobim, Moreira Alves, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão e Maurício Correa. Foram vencidos os votos dos ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Nery da Silveira e Marco Aurélio.
Os acirrados debates demonstram a maioria considerando a impossibilidade de aplicação do Princípio da Moralidade aos atos do Poder Legislativo, e a minoria defendendo sua aplicação a todos, de forma ampliativa. A transcrição de alguns trechos dos debates é reveladora das posições adotadas naquele julgamento paradigmático, e que foi o primeiro — e até onde sei, o único — a se debruçar sobre anistias financeiras eleitorais:
Ministro Nery da Silveira — Ninguém pode descumprir a legislação eleitoral, especialmente os candidatos que estão buscando o poder. Essas infrações, todos sabemos, causam a desigualdade dentro do processo eleitoral.
[…]
Ministro Moreira Alves — Não levo a esse radicalismo, porque o problema, aqui, é o de saber se o princípio da moralidade se aplica, ou não, ao Poder Legislativo. Pela nossa Constituição, não…
Ministro Sepúlveda Pertence — Pode até mudar de nome, mas há abuso do Poder Legislativo.
Ministro Moreira Alves — Não há abuso do Poder Legislativo.
Ministro Nery da Silveira — Ministro, tudo, aquilo que estiver em descompasso com os princípios da Constituição não há de merecer acolhida.
Ministro Moreira Alves — Quais são esses princípios?
Ministro Nery da Silveira — V. Exa. entende que o sistema democrático não é princípio básico da Constituição?
Ministro Moreira Alves — Por acaso o sistema democrático necessita de voto obrigatório? Por que os países democráticos não têm voto obrigatório? Se o voto não fosse obrigatório, não poderia haver multa.
Ministro Nery da Silveira — Anistia aos eleitores, até admitiria, mas não a admito quanto aos candidatos que cometem infrações, tornando desigual o processo eleitoral.
[…]
Ministro Moreira Alves — O ministro Celso de Mello está lembrando que até a corrupção eleitoral tem sido anistiada.
(…)
Ministro Marco Aurélio — Na espécie, essa lei não é revestida de razoabilidade, de proporcionalidade; é contrária ao regime democrático, à República, e instaura um verdadeiro incentivo a que não sejam cumpridas, nas eleições — estamos próximos a uma eleição que se anuncia trepidante —, as decisões da Justiça Eleitoral, partindo-se para o campo do faz-de-conta. Tenho como envolvido – perdoem-me aqueles que pensam de forma diversa – o princípio da moralidade, conjugado, no art. 37 da Carta da República, com o princípio da eficiência do Estado em atuação da maior importância, porque, repito, está ligada àqueles que dirigirão os destinos do Estado.
Em suma, foi vencedora a posição adotada pela relatora, e a lei foi considerada constitucional, acarretando anistia financeira inclusive para os políticos eleitos que cometeram infrações eleitorais nos anos de 1996 e 1998. A maioria vencedora no STF não levou em consideração — a despeito de expressa e formalmente alertada — de que se tratava de uma anistia que os políticos estavam se autoconcedendo (artigo 2º), e não apenas de uma anistia a terceiros, eleitores e mesários (artigo 1º).
Nitidamente, o STF utilizou uma visão absolutamente restritiva e formal quanto ao Princípio da Moralidade, afirmando que sua validade se restringia à administração pública, e não a todas as pessoas, físicas e jurídicas, públicas e privadas. Aqui residiu o grave erro de percepção da maioria vencedora, segundo meu ponto de vista.
O fato é que esse julgamento praticamente validou uma espécie de vale-tudo financeiro eleitoral ocorrido anteriormente, pois não foi coibido no devido modo e tempo, e apontou certa linha de conduta para as eleições posteriores, nas quais essa espécie de vale-tudo financeiro eleitoral se manteve — e se mantém. Basta ler as páginas políticas dos jornais e sites, que pululam notícias sobre a criminalização do caixa dois eleitoral, que o senador Lobão quer ver aplicada aos atuais parlamentares acusados na operação "lava jato".
Como visto, daquele julgamento ainda remanescem no STF o ministro Celso de Mello (que votou confirmando a tese de que o Princípio da Moralidade se aplicaria apenas à administração pública) e o ministro Marco Aurélio (que votou pela aplicação desse Princípio a todos).
Se aprovada a anistia ao caixa dois eleitoral, haverá quem a submeta ao STF? E como votarão os ministros remanescentes e os atuais?
Como você votaria, caro leitor, se estivesse no lugar deles e fosse ministro do STF?
[1] Foi perguntado pelos repórteres Julia Lindner e Caio Junqueira ao senador Lobão: “Discutiu-se muito na Câmara dos Deputados no ano passado a chamada anistia ao caixa 2. A Câmara está voltando a articular isso. O sr. apoia?”, e a resposta foi: “A figura da anistia existe. Todo ano, o presidente anistia alguns presos por conta disso ou daquilo. Houve a lei da anistia durante o regime militar. Resta saber se anistia tal ou qual é conveniente. Vou aguardar que a Câmara decida lá, quando vier para cá nós avaliaremos. O que eu quero dizer é que é constitucional a figura da anistia, qualquer que ela seja. Anistia não se faz somente para isso, outros crimes podem ser anistiados”.
[2] A íntegra do processo legislativo está disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=81DDA0D09D1D7C77D1283FB0480A85E2.proposicoesWeb2?codteor=1128224&filename=Dossie+-PL+934/1999>. P. 1.
[3] A íntegra do processo legislativo está disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=81DDA0D09D1D7C77D1283FB0480A85E2.proposicoesWeb2?codteor=1128224&filename=Dossie+-PL+934/1999>. P. 52.
[4] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/VETO_TOTAL/1998_1999/vet1990-99.htm>.
[5] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9996.htm>.
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