Opinião

A ampla liberdade de imprensa não se confunde com um vale-tudo

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20 de fevereiro de 2017, 17h09

Sou assíduo defensor de uma ampla e quase irrestrita liberdade de imprensa. Amesquinhá-la, por qualquer motivo, implica em retirar da sociedade um instrumento poderoso de proteção contra eventuais poderes autoritários estatais, que sempre tendem à expansão.

Não consigo, todavia, concordar com algumas das recentes posturas adotadas por parte da imprensa, sobretudo quando o que está em discussão são questões atinentes a processos penais.

Como foi amplamente divulgado, dois jornais foram alvo de decisão liminar (posteriormente cassada pelo tribunal) que os impedia de veicular qualquer informação, impressa ou digital, relativa à ação penal tramitando contra indivíduo que supostamente extorquiu Marcela Temer, atual primeira-dama do país.

É evidente que parece ser legítimo informar à sociedade acerca da existência de um procedimento penal para apurar crime cometido em desfavor de alguém. Porém, conduta completamente diferente é mencionar o conteúdo das gravações (ainda que de uma forma velada) que estavam em poder do extorsionário.

Logicamente que há uma nítida diferença entre, de um lado, noticiar a existência de uma ação penal e, de outro, revelar fatos que dizem respeito à intimidade de um indivíduo e angariados de forma ilícita.

Nem se há de dizer que o processo é público e, portanto, de acesso irrestrito a qualquer pessoa. A uma, porque o próprio nome da vítima fora suprimido e trocado por um codinome qualquer nos autos, deixando claro que a intenção do magistrado, no caso, era justamente impedir que se conhecesse a real identidade da pessoa chantageada.

A duas, porque, ainda que tivesse equivocadamente o juiz deixado de tomar as devidas precauções de sigilo, caberia ao jornal ter a responsabilidade de não divulgar suposta conversa adquirida por meios absolutamente criminosos e que foram confiadas ao Judiciário.

A propósito, não faria sentido algum, até por um exercício de lógica simples, condenar o extorsionário por ter fraudulentamente obtido acesso a informações que dizem respeito à intimidade de uma pessoa e aplaudir o trabalho da imprensa que divulga o conteúdo desses dados oriundos de delitos. Ambas as condutas são graves e merecem repúdio.

Ao fim e ao cabo, haveria um verdadeiro desestímulo por parte da vítima em noticiar fatos criminosos que violam sua intimidade, se posteriormente torna-se público aquilo que era objeto da extorsão.    

Para além desse caso específico, outra questão que vem gerando preocupação são os inúmeros vazamentos das delações premiadas ocorridas na denominada operação "lava jato". A lei é expressa quando rege que o termo de delação (e, por mais razão ainda, o conteúdo dos depoimentos), por ser evidência frágil e unilateral, somente se tornará público após o recebimento da denúncia (artigo 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.850/13).

Incontáveis são os casos em que são divulgadas supostas informações prestadas por delatores, as quais implicam criminalmente outras pessoas, sem sequer esses depoimentos terem passado pelo crivo do Judiciário. No dia seguinte, abrimos os jornais ávidos para verificar o que um personagem do esquema criminoso falou sobre outro, ainda que tal delação nem tenha sido submetida à primeira etapa de homologação por parte do juiz.

Não se trata de restringir a atuação da imprensa, que logicamente tem o direito inclusive de resguardar o sigilo da fonte. Cuida-se apenas e tão somente de reconhecer que, ainda que tenha em mãos notícias de grande repercussão e potencial interesse nacional, somente obtiveram acesso a referidos documentos por uma afronta à lei.

De se registrar, por fim, que não tenho qualquer simpatia com aqueles cujas intimidades foram supostamente violadas. Contudo, há de se proteger a dignidade dos indivíduos, por mais abjeta que possam ser suas condutas, no limite da lei. A imprensa, nosso genuíno quarto Poder da República, pode e deve muito, mas que não se torne ela também irrefreável.

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