Segunda Leitura

Pichação volta ao debate com medidas do prefeito de São Paulo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

19 de fevereiro de 2017, 11h15

Spacca
A iniciativa do prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), no sentido de lutar contra a pichação na cidade que administra, impulsionando a fiscalização e elevando o valor da multa de R$ 767,53 para R$ 5 mil, despertou polêmicas, como era de se esperar.

A pichação costuma ser feita, na maioria das vezes, contra o patrimônio privado. Mas nem por isso poupa os bens públicos, como se fez, por exemplo, em 30 de setembro de 2016, em São Paulo, no monumento às Bandeiras, localizado em frente ao Parque Ibirapuera, obra do escultor Victor Brecheret em homenagem aos bandeirantes paulistas, que foi pintado de vermelho.[1] 

A  Constituição protege a propriedade no artigo 5º, inciso XXV, e o patrimônio histórico e cultural no artigo 216. A proteção constitucional é complementada pelo Código Civil (artigos 186 e 927), pela Lei 9.605, de 1988 (artigo 65), pelo Decreto 6.514, de  2008, além de leis estaduais e municipais. Esta proteção dá à vítima do dano o direito de indenização civil e, ao Estado, o poder-dever de impor sanções administrativas, normalmente multa, e penais.

O interesse na proteção não é apenas do dono, mas de toda a sociedade.  Marcos Paulo de Souza Miranda observa que “a legitimação da tutela penal dos bens que integram o patrimônio cultural não se baseia na defesa de sua propriedade, mas fundamentalmente na função social de tais bens, uma vez que se busca a proteção do patrimônio cultural sob o seu aspecto imaterial, que é suprapatrimonial, ou seja, é desvinculado da ideia de titularidade sobre as coisas corpóreas que ostentam o valor protegido.”[2]

Porém o tema não é tão pacífico como seria de imaginar-se.  Enquanto muitos veem em tal atitude vandalismo puro e simples, outros há que defendem tal atitude como forma de expressão de arte ou mesmo de sentimento.

A pichação pode ser uma simples manifestação de rebeldia juvenil, protesto  ou exteriorização de inconformismo contra a sociedade. O aumento da população importa em tantas regras de conduta, que muitos buscam diferentes formas de buscar sensação de liberdade. Bom exemplo disto são os grupos de motociclistas que, ao fim de semana, saem a esmo pelas estradas, assumindo a aparência rebelde de Peter Fonda no filme Sem Destino, para na segunda-feira voltarem à rotina de suas vidas.

Naturalmente, os defensores da pichação concordam com esta forma de expressão, desde que os bens sejam de terceiros. Entre eles, com certeza, não estão os comerciantes do centro de Curitiba, que gastam R$ 150 por mês para manter uma patrulha de monitoramento noturno, nem a Prefeitura, que calcula despender anualmente R$ 1 milhão para manter limpos os bens pichados.[3]

Aliás, alguns países são pouco tolerantes com pichadores. Em Singapura, por exemplo, segundo Luiz Augusto C. Ventura, “existe, até hoje, uma regulamentação oficial que pune fisicamente quem comete alguns delitos. Essa punição consta de chibatadas (caning) aplicadas ao infrator por um carrasco com uma vara de bambu desfiada em uma extremidade”.[4] Em 5 de março de 2015 os alemães Andreas Von Knorre, de 22 anos, e Elton Hinz, 21, foram condenados a nove meses de prisão e a três chibatadas por pichações no metrô da cidade.[5]

O Brasil não admite a pena corporal, muito embora alguns proprietários pudessem ficar muito felizes quando fosse apanhado quem pichasse seu imóvel pela quarta ou quinta vez. Aqui, a sanção principal é a criminal, prevista no artigo 65 da Lei 9.605, de 1988, que dispõe que pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano é crime punido com detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 meses a 1 ano de detenção e multa. As penas são brandas e acabam se resumindo em prestação de serviços ou algo semelhante.

Pichar não é a mesma coisa que grafitar. Pichar é o ato de escrever ou desenhar rabiscos, nomes, propagandas, mensagens, em muros, paredes, monumentos, edifícios, construções enfim. Grafitar é fazer desenhos ou inscrições com grafite. O grafite, sim, pode ser uma manifestação artística e, muitas vezes, os municípios oferecem locais para que seja praticado. Mas, se for feito em qualquer local, sem qualquer permissão, constituirá crime, pois o proprietário não deve ser obrigado a suportar tal prática, ainda que de bom gosto.

O sujeito ativo do crime será a pessoa física, a vítima o proprietário, público ou particular e,  secundariamente, a sociedade, pois a limpeza e o bom trato das edificações têm influência no ânimo e no bem-estar das pessoas. Mas aqui está a principal dificuldade de punição do agente, pois a pichação é feita sempre na calada da noite, sem testemunhas.       

A pichação é crime que deixa vestígios e por isso, em tese, exige perícia (Código de Processo Penal, artigo 158). No entanto, se ela for provada por fotografia ou filme, não deixando dúvidas sobre a sua existência, a perícia é dispensável. Não é necessário fazer prova do que é incontroverso.     

Se a construção atingida pertencer à União ou ferir seus interesses (como a  Igreja do Centro Histórico de Salvador, considerada pela Unesco patrimônio da humanidade), a competência será da Justiça Federal. Nas demais hipóteses, a competência será da Justiça Estadual. Em uma ou em outra hipótese, a denúncia será oferecida no Juizado Especial, porque se trata de crime punido com pena máxima de um ano. É possível haver transação, que nada mais é do que um acordo. Neste se exigirá, certamente, que o infrator repare o dano causado (artigo 27 da Lei 9.605/1998).

Não havendo transação, o acusado responderá processo criminal, podendo, ao final, ser absolvido ou condenado. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal decidiu que “preso o agente logo após a ocorrência de pichação com tinta ainda fresca enquanto empreendia fuga do local, encontrado com as mãos sujas da mesma tinta e material utilizado também para a pichação, robusta e suficiente a prova para a condenação.[6]

Não raramente o infrator pode ser menor de 18 anos. Nesta hipótese ele será encaminhado ao Juizado da Infância e Juventude. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em caso envolvendo menor, decidiu ser “adequada a aplicação da medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade, pelo período de 01 mês, pois observa os princípios do ECA, características pessoais dos representados e do ato infracional.[7]

Com relação à indenização civil e ao pagamento da multa, a grande questão é se o infrator tem bens para garantir a execução. Sim, porque se ele não tiver bens não será punido por seu ato. Isto provavelmente não acontecerá com o jornalista Pedro Amaral de Souza, de 26 anos, que no dia 17 de janeiro de 2017 “foi detido por guardas civis metropolitanos na Praça da Sé e conduzido até a 8ª Delegacia de Polícia localizada no Brás, na região central, por pichar um monumento feito em bronze, com 3,5 metros de altura, que fica em frente à Catedral”.[8] O detido, provavelmente, terá como responder pela multa e indenização civil por pichar a estátua do apóstolo Paulo, porque é filho de um diplomata, diretor-geral do Instituto Rio Branco, em Brasília.

Outro aspecto a ser considerado é como fazer a cobrança se o infrator for menor. Do ponto de vista da infração administrativa, pais ou tutores serão corresponsáveis se tiverem agido em conluio com o menor ou, pelo menos, com negligência. Mas, se não forem coautores ou omissos, não poderão ser responsabilizados.

Do ponto de vista civil, a responsabilidade estende-se solidariamente aos pais ou tutores (CC, artigo 1.518, inciso I). É dizer, mesmo que o menor nada mais tenha do que um lata de spray, a vítima, seja um particular ou o Poder Público, poderá requerer em Juízo indenização a ser paga pelos pais ou tutores, não só pelo dano patrimonial (gastos com a recuperação do bem ao estado anterior) mas também pelo dano moral.

A polêmica está longe de chegar ao seu final. A iniciativa do prefeito de São Paulo é corajosa, enfrenta problema que, regra geral, todos evitam. Mas é preciso que a sociedade apoie sua posição, pois não se pode esperar que as autoridades tudo resolvam.

No mais, seria oportuno que os pichadores levassem em conta a recomendação de Rubem Alves, na “Carta aos Pichadores”, quando diz: “Nossas cidades estão tão feias e desumanas: lixo, fuligem, gases, barulho, tráfego alucinado, buzinas, crime, mendigos, crianças abandonadas… Vocês bem que poderiam ajudar. Quem é capaz de fazer as coisas que vocês fazem, tão admiráveis e tão feias, tem forças para fazer coisas admiráveis e bonitas!”.


[1] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html, acesso em 16/2/2017.
[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 206.
[3] Jornal Gazeta do Povo, Vida e Cidadania, 17/2/2017, p. 15.
[4] Revista Eletrônica do Centro dos Capitães  da Marinha Mercante, nº 133, 15/10/2015, p. 5. Em: http://centrodoscapitaes.org.br/Revistas%20eletronicas/2015/Revista%20Eletronica%20133%2015102015.pdf, acesso em 15/2/2017.
[5] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/03/alemaes-sao-condenados-em-cingapura-por-vandalismo.html
[6] BRASIL. TJDFT, APJ 20060710259452, Relator Juiz. Carlos P. Soares Neto, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, j. 11.11.2008, DJ 18.12/.008 p. 136.
[7] TJRS, AC 70055513535, 8ª. Câmara Cível, Rel. Alzir Schmitz, j. 31/10/2013.
[8] http://vejasp.abril.com.br/cidades/filho-de-embaixador-e-detido-por-pichar-monumento-no-centro/, acesso em 17/2/2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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