Contradições de Tomás Antônio Gonzaga e as relações entre política e Direito
19 de fevereiro de 2017, 8h05
Ao que consta, teria escrito as Cartas Chilenas, Marilia de Dirceu e um Tratado de Direito Natural; este último foi encontrado em fins do século XIX, por Teófilo Braga, historiador português. Gonzaga participou da Inconfidência Mineira, pelo que foi penalizado com o degredo para a África[1]. Essas informações, básicas para todo brasileiro medianamente educado, constam de uma ideologia que se compartilha desde a Proclamação da República e do consequente culto ao movimento mineiro, exatamente no contexto da busca de heróis e da formação de um panteão.
Tomás Antônio Gonzaga conviveu com a crise do antigo regime, especificamente a transição da era pombalina para a chamada viradeira, como se conheceu o regime absolutista instaurado com a ascensão de D. Maria I ao trono português. Gonzaga pretendia lecionar em Coimbra, e certamente por isso seu livro sobre Direito Natural foi dedicado ao Marquês de Pombal. Porém, em sua fase brasileira, no contexto da Inconfidência, Gonzaga fez oposição à rainha de Portugal e às instituições portuguesas[2]. Essa contradição marca sua trajetória.
A premissa do Tratado de Direito Natural consiste na existência de Deus, de onde derivaria toda a ordem, conduzida pelo rei. Para Gonzaga, Deus infundiu no coração dos homens as leis pelas quais devemos nos guiar. Deu-nos liberdade para conformarmos (ou não) nossas ações com essas leis; isto é: “Fez tudo o que era necessário para que o homem se fizesse merecedor de uma glória eterna ou de um eterno castigo”. O Direito Natural, segundo Gonzaga, decorreria da natureza posta por Deus, em face da qual o homem mereceria a glória ou o castigo. O Direito Civil, por sua vez, decorreria da sociedade, obrigando àqueles que vivemos nessa sociedade real; não se trata de um conceito metafísico.
Em seu Tratado, Gonzaga fixou os princípios necessários para o Direito Natural e para o Direito Civil (parte I). Explorou a imputação das ações, forte na percepção de que “toda ação só se pode imputar ao seu autor”. Dividiu as leis em proibitivas (que proíbem e fixam penas para os transgressores) e em preceptivas (mandam e estabelecem sanções positivas e negativas). Em seguida (parte II), argumentou pela necessidade de uma religião revelada. Defendeu, no entanto, direitos plenos e absolutos para os governantes. Na conclusão (parte III), condensou uma teoria de legística, explicando o conceito e as características das leis, seus modelos de interpretação, privilégios, costumes, bem como fórmulas de dispensa, de ab-rogação e de revogação da lei. Trata-se de uma versão teológica do Direito Natural moderno. Gonzaga fora influenciado pelos teóricos do Direito Natural clássico, a exemplo de Hugo Grotius (1583-1645) e de Samuel Pufendorf (1632-1694), ainda que os impugnasse eventualmente.
Na primorosa edição da Martins Fontes[3], há uma provocante questão assentada pela historiadora Keila Grinberg: “Será que [Gonzaga] acreditava nas ideias que expressava no texto ou apenas as utilizava como recurso da consecução do cargo?”. O livro de Gonzaga, acredito, fora escrito com o objetivo de obter uma cátedra em Coimbra. O propósito do livro era demonstrar o funcionamento da sociedade com base em Deus e no poder divino do monarca. Essas ideias são absolutamente opostas às ideias do futuro inconfidente. Especialmente em matéria fiscal, porquanto, para Gonzaga:
“O príncipe, que tem poder de obrar tudo o que é necessário para a conservação da República, há de revestir-se do direito de pôr tributos como meio necessário para semelhante conservação. Como poderá conservar uma República sem armas e sem magistrados? Como se poderão conservar os magistrados e a milícia sem estipêndios? Como se poderão distribuir por eles os merecidos e necessários estipêndios, se o povo não concorrer com públicas contribuições?”.
Keila Grinberg bem colocou o problema, questionando: “Quem for ler o Tratado de direito natural procurando encontrar as ideias do inconfidente (…) levará um susto: não só não as encontrará, como (…) achará um Gonzaga diferente, moderado, que tenta conciliar a monarquia e as prerrogativas do rei com os fundamentos do direito natural”. Nessa pergunta há um desafio para uma série de reflexões, entre outras, a propósito das relações entre os intelectuais e o poder. Isto é, a partir da experiência histórica do poeta e burocrata, que inicialmente se comportou como um louvaminheiro, pranteando o Marquês de Pombal, que depois ingressou na burocracia, ainda que não conseguisse a cátedra em Coimbra, e que posteriormente ocupou postos no Brasil, onde caiu em desgraça, e em Moçambique, onde viveu seus últimos anos.
Essa nota, em torno do livro de Gonzaga e da indagação de Keila Grinberg, sustenta que não há desafetação nos textos jurídicos, que formulações conceituais são aríetes de retórica, e que a política é que dá o tom para a experiência jurídica, ainda que alguns ingênuos (bem-intencionados) acreditem em ancestral máxima romana que abreviava o Direito a uma arte, relativa ao bom e ao justo.
[1] Central e fundamental para conhecimento da trajetória de Gonzaga, sobre todos os aspectos, Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, Adelto Gonçalves, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Trata-se de livro seminal para o conhecimento da época e das circunstâncias de Tomás Antônio Gonzaga.
[2] O tema da Inconfidência e seus contornos judiciais foi explorado por Ricardo Tosto e Paulo Guilherme M. Lopes, O Processo de Tiradentes, São Paulo: Editora ConJur, s.d.
[3] O Tratado de Direito Natural, Tomás Antônio Gonzaga, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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